Thiago Gurjão

Notícias sobre Mianmar não costumam ser muito frequentes no cotidiano brasileiro. Recentemente, porém, o país marcou presença no noticiário e nas redes sociais, com o golpe de estado promovido por militares em 1º de fevereiro. O golpe viralizou com o flagrante involuntário em um <a href="https://www.youtube.com/watch?v=yEHiTjViicE" target="_blank" rel="noopener noreferrer">vídeo</a> de uma instrutora de exercícios, que pode ser vista dançando enquanto tem como cenário o desfile de veículos militares rumo à tomada do poder.
Mas a tragédia em Mianmar vem de longa data e vai muito além do golpe e da dança viral. As graves violações de direitos humanos na história recente do país passam pela exploração sistemática de trabalho forçado e pelo massacre dos rohingya, grupo étnico violenta e sistematicamente perseguido no país. O genocídio dos rohingya tem sido objeto de trabalho e preocupação de diversos organismos internacionais: além de responsabilizar os autores, ainda é preciso fazer cessar os atos de perseguição.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Nesse sentido, um relatório publicado em 2019 chamou pouca atenção por aqui: “Os interesses econômicos dos militares” de Mianmar<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> mapeia a intrincada rede de negócios que os Tatmadaw – o nome oficial das Forças Armadas de Mianmar – montaram a partir da ocupação, por décadas, de postos importantes na estrutura do Estado.  O relatório demonstra que as organizações controladas por militares beneficiaram-se de negócios estratégicos – e milionários - em setores como mineração, inclusive obrigando aqueles que queriam fazer negócios no país a estabelecer parcerias com organizações controladas por pessoas ligadas aos Tatmadaw.
Ao mesmo tempo em que se beneficiam dessas práticas, os Tatmadaw propagavam um discurso de ódio contra os rohingya e implementavam medidas de perseguição. O relatório revela que para fortalecer a luta contra o “inimigo” os militares realizavam eventos públicos, nos quais pediam a empresas e atores privados contribuições financeiras, que ingressavam em uma obscura contabilidade extraoficial para financiamento de ações de perseguição às minorias.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, a falta de democracia, transparência e mecanismos de accountability permitia o controle de negócios em setores-chave da sociedade por militares ou seus parceiros.</blockquote>
Ao mesmo tempo, a propagação de discurso de ódio contra um “inimigo” criava, indiretamente, mais poder simbólico para o autoritarismo e, diretamente, justificava a arrecadação de mais recursos privados, cuja gestão era controlada pelos mesmos grupos.
Assim, tem-se a tempestade perfeita em que problemas na representação democrática, a propagação de discurso de ódio e a violação sistemática de direitos humanos não são apenas odiosos, mas também lucrativos e potencializadores de mais lucros e mais negócios escusos para seus autores.
Os achados do relatório sobre Mianmar não são isolados. Outros relatórios de missões sobre violações de direitos humanos no Yemen<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e Sudão do Sul<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> revelam a apropriação de recursos públicos, inclusive de ajuda humanitária, tanto para financiar os conflitos e violações de direitos humanos em curso, como para benefício pessoal das pessoas e grupos no exercício do poder.
É verdade que o uso de retórica associada a um certo pânico moral diante de “inimigos” -geralmente imaginários ou construídos - para favorecer determinados grupos ou interesses políticos não é exclusividade de situações de conflito ou ruptura institucional. Em países como Polônia<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> ou Filipinas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, há relatos que indicam que uma retórica anticorrupção baseada em um pânico moral tem servido a retrocessos em matéria de proteção de direitos humanos e/ou à criação de um ambiente que na verdade favorece ou potencializa práticas de corrupção.
Em países nos quais existem instituições nacionais ou regionais no exercício de competências e poderes efetivos, como é o caso da Polônia, existem caminhos que podem ser percorridos, dentro do marco da respectiva institucionalidade, para preservar e proteger a sociedade e os cidadãos ante ameaças à democracia e aos direitos humanos.
Quando tais instituições não estão operacionais, ou caso se omitam ou sejam cooptadas, o relatório sobre Mianmar aponta o caminho: não apenas os responsáveis diretos, mas também aqueles que se beneficiaram e/ou contribuíram financeiramente para as violações de direitos humanos, devem ser levados a julgamento no Tribunal Penal Internacional, com fundamento no art. 25 (c) do Estatuto de Roma.
Portanto, os relatórios das Nações Unidas e as experiências internacionais nos ensinam que violações sistemáticas de direitos humanos, discursos baseados em pânico moral contra “inimigos” da vez, desfiles de tanques, golpes e ameaças à democracia quase sempre escondem alguém obtendo vantagens por trás dos blindados. E os mesmos relatórios também ensinam o que fazer quando as instituições de Estado se omitem ou são coniventes: aqueles que praticaram os atos, os que para eles contribuíram ou os que deles se beneficiaram financeiramente devem ser levados a julgamento em Haia pelos crimes contra a humanidade praticados, quando for o caso.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>
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[1] “The economic interests of the Myanmar military. Independent International Fact-Finding Mission on Myanmar”.  A/HRC/42/CRP.3, 5 de agosto 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Final report of the Panel of Experts on Yemen”. S/2021/79, 25 de janeiro de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “Report of the Commission on Human Rights in South Sudan”.   A/HRC/40/CRP.1, 21 de fevereiro de 2019.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Krajewska, A., Makowski, G. Corruption, anti-corruption and human rights: the case of Poland’s integrity system. Crime Law Soc Change 68, 325–339 (2017)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “<a href="https://www.forbes.com/sites/panosmourdoukoutas/2020/01/24/duterte-is-turning-philippines-into-a-more-corrupt-and-less-democratic-state/?sh=67eba6276850" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Duterte Is Turning Philippines Into A More Corrupt And Less Democratic State</a>”. Forbes, 24 de Janeiro de 2020.

golpe de estado

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JOTA

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