Marina Pita

<p>Muita gente acha que está fazendo sua parte para a proteção do meio ambiente ao reciclar embalagens e descartar corretamente o que consome. Mas esta é só uma pequena parte do conceito de consumo consciente. Desde a conferência apelidada de Rio 92, Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, foram estabelecidos três pilares para combinar proteção ambiental, eficiência econômica e hábitos de consumo. As palavras escolhidas para representar a proposta foram: reduzir, reutilizar e reciclar.</p>
<p>Posteriormente foi incluído mais um “R” da sustentabilidade no consumo: “repensar”, que deve ser a primeira ação do consumidor. Ou seja, avaliar se há necessidade do item, se é preciso consumir um novo. Ou seja, reciclar seria apenas uma última ação. E, porém, por mais que esta lista de ações seja direcionada para os consumidores, existem barreiras que, sozinhos, não podem transpor. É preciso uma articulação, incluindo governamental.</p>
<p>É neste escopo de discussão que apareceram e seguem crescendo os movimentos pelo “direito a reparar”. Ou, no português cotidiano, direito ao conserto. Há muitos aspectos interessantes do direito ao conserto e seus mais recentes desdobramentos. Como parte da série “<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/repensando-direitos-autorais">Repensando Direitos Autorais</a>” vamos tratar de como esta propriedade intelectual afeta a capacidade da sociedade se organizar para realizar consertos.</p>
<h3>Direito autoral e reparos nos EUA</h3>
<p>Um dos elementos importantes para permitir o conserto de dispositivos cada vez mais complexos é a informação. Como consertar um equipamento ou dispositivo é uma informação constante em manuais cuja circulação tem sido evitada, inclusive pelo argumento da proteção de direitos autorais. O mesmo vale para a indisponibilidade para terceiros de sistemas de análise de problemas. Não estão disponíveis e apenas a firma proprietária tem o direito de executar a análise de erros. Esta escassez artificial, já que no atual momento de avanço sócio-técnico seria possível criar cópias de um manual de reparo a custo quase zero ou compartilhar um software de execução de análise de erros, apontam os movimentos pró-reparo, tem criado mercados cativos de grandes companhias.</p>
<p>A concentração no mercado de consertos foi destacada de uma seleta lista de setores em que a concentração atingiu níveis preocupantes nos EUA, de acordo com a <a href="https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2021/07/09/executive-order-on-promoting-competition-in-the-american-economy/">ordem executiva da administração Joe Biden</a>, de 2021, e que merece atenção das autoridades regulatórias para reverter a situação que prejudica consumidores e a economia.</p>
<p>O relatório de Biden cita preocupação específica com reparo de equipamentos agrícolas: “Fabricantes de equipamentos poderosos, como fabricantes de tratores, usam ferramentas de reparo, software e diagnósticos proprietários para impedir que terceiros realizem reparos. Por exemplo, quando certos tratores detectam uma falha, eles param de operar até que um revendedor os desbloqueie. Isso obriga os agricultores a pagar taxas aos revendedores por reparos que eles mesmos poderiam ter feito, ou que uma oficina independente poderia ter feito mais barato”.</p>
<p>A Associação por Reparos, uma entidade estadunidense, responsável pelas ações de ativismo da iFixit, uma comunidade global para apoiar pessoas a realizarem consertos, <a href="https://pt.ifixit.com/">oferece um sistema para publicação e co-criação de manuais, de forma a tentar contornar o problema da escassez artificial de informação</a>. Também oferece venda online de peças. Mas, a entidade lembra que enfrenta, além disso, uma outra forma de usar o direito autoral para impedir o conserto de equipamentos.</p>
<p>Modificar um software pode ser considerado uma violação da lei de direitos autorais dos EUA. Isso porque o Digital Millenium Copyright Act (DMCA), de 1998, tornou ilegal contornar medidas de “proteção tecnológica”. O objetivo era impedir pirataria dos dispositivos, ou cópias, mas tem sido usada, como no caso dos celulares, para impedir diversas mudanças, inclusive reparos. Por lá, os movimentos têm trabalhado para que o órgão regulador de direitos autorais — algo que, vale dizer, não existe no Brasil — estabeleça exceções específicas para reparos.</p>
<p>“Tivemos algum sucesso, mas as exceções limitadas que recebemos não permitem que as pessoas compartilhem as ferramentas ou softwares necessários para esses reparos,” explicou a iFixit. O trabalho e energia despendidos para obtenção de exceções para o conserto e a possibilidade de reversão dessas autorizações excepcionais por normas infralegais também leva à avaliação da necessidade de uma mudança legislativa que observe o direito ao conserto. Em fevereiro deste ano, <a href="https://www.congress.gov/bill/117th-congress/house-bill/6566/all-actions?q=%7B%22search%22%3A%5B%22freedom+to+repair+act%22%2C%22freedom%22%2C%22to%22%2C%22repair%22%2C%22act%22%5D%7D&amp;s=2&amp;r=1&amp;overview=closed#tabs">um projeto de lei foi apresentado para criar uma exceção legal para a circunvenção de sistemas de proteção tecnológica quando o objetivo é o conserto</a>, mas a proposição não avançou na análise pelos congressistas estadunidenses.</p>
<h3>Europa e ecodesign</h3>
<p>Não é apenas nos Estados Unidos que crescem as pressões pela garantia do direito ao conserto, com implicações legais que envolvem limitações aos direitos autorais. Um <a href="https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2022/698869/EPRS_BRI(2022)698869_EN.pdf">relatório do Parlamento Europeu publicado em janeiro </a>apresenta uma visão do avanço no bloco e das percepções dos consumidores quanto ao direito de conserto e aponta para um avanço no escopo de esforços regulatórios para permitir o reparo de dispositivos.</p>
<p>A Diretiva de Ecodesign da União Europeia esteve, até 2019, voltada para melhorar o desempenho energético dos produtos. Até que, <a href="https://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document/EPRS_BRI(2022)733524">em março deste ano, foram apresentadas novas propostas para a normativa de ecodesign</a>, incluindo servidores e produtos de armazenamento de dados, lavadoras de roupas e de louças, refrigeradores, dispositivos eletrônicos, como celulares e tablets, e lâmpadas. As novas exigências propostas na Diretiva de Ecodesign a serem avaliadas pelo Parlamento Europeu incluem disponibilidade de peças de reposição por mínimo de anos após os últimos itens terem sido colocados para venda no mercado, entrega de peças de reposição em 15 dias e acesso a informações de manutenção, incluindo manuais, para os profissionais da área.</p>
<p>No Parlamento Europeu, a proposta foi remetida à Comissão do Meio Ambiente, Saúde e Segurança Alimentar (ENVI), que nomeou como relatora Simona Bonafè (S&amp;D, Itália). No Conselho Europeu, a proposta está em fase preparatória.</p>
<h3>Direitos autorais, reparo e limitações</h3>
<p>O tema, além de interessante, é bastante revelador sobre como os direitos autorais permeiam uma série de debates contemporâneos — neste caso, as políticas de sustentabilidade, estímulo ao consumo e à produção responsáveis. Além disso, revela como o direito autoral e seu impacto social e econômico mudam a depender do contexto tecnocientífico. Atos que pareciam banais até pouco tempo, como consertar um equipamento, caso abordado neste texto, mas também gravar um filme ou música, emprestar, doar ou vender um livro usado, ganham grande complexidade a partir de novos arranjos produtivos e modelos de negócios, combinados com os avanços sócio-técnicos.</p>
<p>Neste complexo contexto sociotécnico, não existem direitos absolutos. São os objetivos da sociedade, pactuados por meio dos processos democráticos e registrados na Constituição, que devem guiar o direito e os legisladores. Ainda que revestido de um caráter natural — nasce um autor, nasce seu direito exclusivo à exploração da obra — há um interesse social legítimo e capaz de limitar o direito autoral: o da perseguição da sustentabilidade, preservação do meio-ambiente e mitigação dos impactos climáticos sistêmicos.</p>


conserto de tele

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Uma relação improvável e cada vez mais íntima

Sustentabilidade, direito ao conserto e direitos autorais

Uma relação improvável e cada vez mais íntima. Clique aqui para saber mais sobre esse cruzamento no âmbito dos direitos autorais.