Lucas Azevedo Paulino

Em 1943, o jurista e político João Mangabeira afirmou, em sua obra biográfica em homenagem a Rui Barbosa, que o Supremo Tribunal Federal entre 1892 e 1937 havia sido “o órgão que mais falhou à República”. João Mangabeira havia sido preso em 1936, com o recrudescimento autoritário já na véspera do autogolpe do Estado Novo, e ficou detido por 15 meses, quando assistiu mais uma vez ao Supremo falhar na missão – idealizada por Rui Barbosa no momento da criação do tribunal no contexto de elaboração da primeira Constituição republicana de 1891 – de garantir os direitos individuais e defender a Constituição contra os arbítrios do poder político.
Assim como não conteve os abusos da ditadura de Floriano Peixoto, tampouco das sucessivas imposições arbitrárias de estado de sítio pelos presidentes da República Velha, o Supremo Tribunal Federal também não exerceu os controles devidos contra os desmandos da Era Vargas. Diante desse contexto, João Mangabeira, com sua pena ácida, registrou que “o órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de terror, quando, exatamente, mais necessitava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem de seus defensores”. Ainda completou que o Supremo, que deveria ser o guarda supremo da Constituição “contra as tempestades do arbítrio, recuava, nos dias de tempestuosos, de sua sagrada missão”.
Citando Rui Barbosa, Mangabeira ainda provocou que se houvesse sete magistrados – para configurar a maioria no tribunal constitucional – com coragem moral para enfrentarem o governo com o propósito de garantirem as liberdades e defenderem a Constituição, esses poderiam salvar o regime, cuja guarda lhes fora confiada. Mas, segundo ele, jamais aparecera uma maioria de ministros comprometidos com a Constituição e o destino da República.
João Mangabeira faleceu em 27 de abril de 1964 e ainda testemunhou poucas semanas antes do seu óbito mais uma vez o Supremo falhar: ao convalidar o golpe de Estado dos militares em 31 de março. É importante ressaltar, contudo, que houve um esforço pelo STF de garantir os direitos individuais e políticos dos opositores perseguidos nos primeiros anos do regime autoritário. No entanto, a ditadura militar não tardou para retaliar e subjugar o tribunal: primeiro com o AI-2 de 1965, aumentando o número de ministros para tentar controlar sua maioria; depois com o AI-5 e a subsequente cassação de ministros do STF.
É na Nova República, regida pela Constituição de 1988, que vai se concretizar a expectativa de Rui Barbosa e João Mangabeira com um Supremo Tribunal Federal forte, que vai controlar os abusos do poder político e garantir com maior efetividade os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.
Nos últimos anos de erosão democrática e das maiores ameaças de golpe de Estado desde a redemocratização pelo grupo de extrema direita que governou o Brasil entre 2019 e 2022, a maioria do STF exerceu com vigor seu papel de última trincheira da democracia e de guardião do Estado democrático de Direito, conforme determina o comando do art. 102 da Constituição. Orientado por uma concepção de democracia militante e combativa, teoria jurídica realista adequada para momentos de crise constitucional, o Supremo – junto ao Tribunal Superior Eleitoral – conseguiu agir em legítima defesa da democracia e impor freios às desventuras autoritárias, elevando o custo do golpe.
Enquanto isso, o Congresso Nacional pouco fazia, para além de notas de repúdio e descontentamento, para conter os abusos de poder do governo anterior. Com a ressalva, por óbvio, da oposição parlamentar minoritária e aguerrida, que lograva êxito mais acionando o Poder Judiciário que na própria arena política.
Todavia, esse mesmo Congresso agora atua para retaliar o Supremo Tribunal Federal com a proposição da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2391567">PEC 50/2023</a>, chamada de “equilíbrio dos Poderes”, que propõe a prerrogativa ao Poder Legislativo de sustar decisões do Supremo; e da <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135817">PEC 16/2019</a>, que propõe instituir o mandato de oito anos para ministros da corte – discussão açodada com período curto, desconsiderando seus efeitos colaterais, como o fenômeno da “porta giratória”, preocupação já existente em outros órgãos públicos, do agente público já agir no ofício pensando no retorno ao mercado.
Essa reação do Congresso que visa enfraquecer o tribunal ocorre não pelos vícios do Supremo, mas por suas virtudes, na medida em que visam contestar decisões recentes que garantiram ou ampliaram direitos fundamentais: direitos dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas (<a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/marco-temporal-quem-ocupou-terra-de-boa-fe-tem-direito-a-indenizacao-decide-stf-27092023">contra o marco temporal</a>); estabelecimento de limites objetivos <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/ao-vivo-stf-retoma-julgamento-da-descriminalizacao-do-porte-de-drogas-no-brasil-24082023">para distinguir usuários de traficantes de maconha</a>, descriminalizando os primeiros; e o início da discussão sobre a garantia dos direitos reprodutivos às mulheres, com a <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/rosa-weber-vota-para-que-aborto-deixe-de-ser-crime-no-brasil-e-julgamento-e-interrompido-22092023">descriminalização do aborto</a> até a 12ª semana.
É válido questionar, além disso, a inversão de prioridades do debate público. Pelo já revelado das investigações sobre o golpismo após as eleições de 2022, as Forças Armadas foram o órgão que mais falhou – mais uma vez – com o Brasil, ao persistir com seu pretorianismo histórico: seja pela participação ativa de oficiais na conspiração golpista, seja por omissão, ao não coibir e responsabilizar aqueles que participavam. O problema mais grave atual é como fortalecer o arcabouço institucional para que as Forças Armadas se submetam de vez ao Estado democrático de Direito. Infelizmente, nem o Legislativo nem o Executivo eleitos atuam com a diligência e a firmeza necessárias acerca disso.
Nem tudo são flores. Para um debate honesto sobre a corte, é importante reconhecer que o Supremo continua falhando em algumas ocasiões. Errou em não exercer o controle tempestivo dos abusos processuais e violações de direitos fundamentais da Operação Lava Jato, o que contribuiu para o processo de erosão institucional do país.
Erra também agora ao não reestabelecer a ortodoxia dogmática plena sobre as garantias do devido processo legal, inclusive para aqueles que as desprezam, como os participantes da recente tentativa de golpe entre novembro de 2022 e janeiro de 2023, sobretudo considerando que a transição do poder já foi assegurada e o golpismo derrotado.
Erra ao não desenvolver regras éticas mais robustas que coíbam conflitos de interesse ou evitem excessos midiáticos e, por vezes, politizados de membros da corte. Erra ao não desenvolver procedimentos internos que limitem o poder individual de ministros e encorajem a colegialidade deliberativa do tribunal. Sobre esse último aspecto, convém destacar que a CCJ do Senado acaba de aprovar a <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148030">PEC 8/2021</a>, que estabelece prazos para pedidos de vistas e limita decisões monocráticas no Supremo. Essa, sim, pode representar um avanço incremental para fortalecer a autoridade e legitimidade da corte.
O diálogo interinstitucional entre Poderes e o debate crítico à atuação da nossa corte constitucional devem ser promovidos no sentido de aperfeiçoar o seu funcionamento, não para enfraquecê-la. Graças à coragem da maioria dos ministros do STF podemos comemorar neste mês de outubro a vigência dos 35 anos da Constituição de 1988 sob um Estado democrático de Direito. Para manter essa celebração nas próximas décadas, precisamos da permanência de um tribunal constitucional forte dotado de capacidade institucional para defendê-la, caso outras ameaças de populismo autoritário e subversão do Estado de Direito surjam no futuro.

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JOTA

Diálogo entre Poderes e debate crítico devem ser promovidos para aperfeiçoar funcionamento do STF, não enfraquecê-lo

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