Thiago M. Queiroz Moreira

O julgamento do HC do ex-presidente Lula escancarou novamente o STF ao público, expondo comportamentos de seus ministros e artimanhas processuais que quem estuda ou acompanha o Tribunal mais de perto está cansado de observar. Os integrantes do STF possuem enorme discricionariedade para decidir conforme lhes convêm, com uma grande variedade de casos, decisões anteriores em sentidos diversos e momentos processuais que podem convenientemente utilizar em prol de suas preferências pessoais. O resultado, já denunciado por quem estuda o STF, principalmente pelos professores Conrado Hübner Mendes e Virgílio da Silva, é um Tribunal que estimula o comportamento individual e, via de regra, é incapaz de produzir decisões colegiadas claras e consistentes. 
Tente extrair um posicionamento institucional do Supremo sobre a prisão após segunda instância com base na decisão de quarta-feira (04/04). Em síntese, temos um 6x5 pela possibilidade de prisão. Contudo, pelos argumentos de Rosa Weber, o STF divide-se atualmente num 6x5 contra o encarceramento após decisão de segunda instância. Dentro dessa maioria que não se afirmou ontem, um dos integrantes considera ser possível, mas excepcional, prender após decisão de Tribunal local (Gilmar Mendes), outros defendem com maior veemência a presunção de inocência até o trânsito em julgado (Marco Aurélio, Celso de Mello e Lewandowski) e uma terceira posição sustenta a tese de prisão após decisão do STJ (Toffoli). Rosa Weber integraria essa maioria confusa se o processo de ontem tivesse “outra capa”, conforme Marco Aurélio fez questão de repetir durante seu voto.
Ministros do STF têm casos de sobra para julgar. Por ano, mais de 100 mil processos são apreciados no Tribunal. Mas não se preocupem com o desgaste físico e a saúde mental dos nossos excelentíssimos julgadores, pois, além do time de assessores em cada gabinete, boa parte dos casos segue formas padronizadas de decisão em bloco. Esse grande volume de processos cria, na verdade, uma oportunidade valiosa para eles: continuamente, ações e recursos sobre temas diversos e relevantes para vida política do país chegam ao STF e os ministros têm grande autonomia para escolher, muitas vezes isoladamente, sobre o quê e quando decidir. Em 2016, por exemplo, Gilmar Mendes deferiu sozinho uma liminar para impedir a posse de Lula como ministro do governo Dilma, colocou o processo na sua gaveta e se mandou para Portugal. O fim dessa história nós já conhecemos. Em ação semelhante, que contesta a nomeação de Moreira Franco para o ministério de Temer, não vimos o mesmo rigor e celeridade no STF. Também em 2016, quando alguns parlamentares começaram a cogitar uma mudança de sistema de governo no Brasil, Lewandowski, em outro exemplo, resolveu pautar para julgamento uma ação de 1997 sobre parlamentarismo. Que timing! Ainda em 2016, Barroso, com o apoio da maioria da 1ª Turma do STF, ao julgar pedido de relaxamento de prisões num HC, decidiu que aborto durante os três primeiros meses de gravidez não é crime. Quando Gilmar denunciou essa conduta de Barroso no Plenário, vimos o chilique do ministro que se diz a “vanguarda iluminista” contra a “mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. Um show à parte... Independente do mérito de cada uma dessas decisões, salta aos olhos que diferentes processos e temas estão disponíveis aos ministros do Supremo para decidirem como e quando der na telha.
Voltando ao HC de Lula, tivemos uma sequência de artimanhas digna de registro nos anais do Tribunal. O tema de fundo, prisão após segunda instância, divide o STF desde 2009 e, conforme vimos, existe uma nova maioria na Corte (6x5) que se posiciona contra prisão antes de trânsito em julgado (ou ao menos antes de decisão do STJ). Provavelmente ciente dessa nova posição majoritária, Marco Aurélio enviou em dezembro do ano passado para a presidente do Tribunal, Cármen Lúcia, duas ações diretas de constitucionalidade (ADCs) sobre o tema que estavam sob sua relatoria. A presidente, que faz parte do time que quer prender logo depois da segunda instância, não mostrou interesse em incluir as ações do seu colega na pauta do STF (é competência do presidente do Tribunal pautar as decisões a serem julgadas no Plenário). Afinal, para que pacificar um assunto tão importante? Talvez seja melhor deixar que cada ministro decida, por conta própria, se irá ou não conceder liminar contra prisão em segunda instância. Talvez seja melhor deixar que a 1ª Turma mande prender, enquanto a 2ª Turma manda soltar. Melhor para quem? Fato é que Cármen Lúcia não queria mudar o status quo, ainda mais agora que a condenação do Lula foi confirmada pelo TRF4.
Fachin, relator do HC do Lula, também não quer mudar o status quo. Mas ele faz parte da 2ª Turma do STF, aquela que costuma soltar. Composta por Dias Toffoli, Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello, todos contrários à prisão após segunda instância, certamente essa Turma iria deferir o pedido do ex-presidente. Tentando evitar tal resultado, ao invés de seguir a ordem normal de processamento do HC que deveria ser apreciado pela Turma, Fachin resolveu enviá-lo para o Plenário do STF, onde os ministros que fazem parte da 1ª Turma, aquela que costuma prender, também votam. Uma jogada e tanto, que se valeu do pretexto de que o Tribunal decidiu em caráter provisório o assunto e os ministros precisavam chegar a um posicionamento colegiado. Nas palavras de Fachin: “Há, portanto, relevante questão jurídica e necessidade de prevenir divergência entre as Turmas quanto à questão relativa à possibilidade de execução criminal após condenação assentada em segundo grau de jurisdição”. Perceba o argumento: encaminhar para o Plenário para superar as divergências, ou seja, fixar a jurisprudência do Tribunal.
Ao receber o HC enviado por Fachin, Cármen Lúcia se recusou a pautar o caso. Manifestou-se publicamente, disse que não iria “apequenar” o Tribunal e que não cederia a pressões. Pressões de quem? Por acaso quem queria ver Lula preso não pressionou para que as ADCs e o HC de Lula não fossem julgados? Veículos de comunicação não pressionaram? Na verdade, a presidente escolheu a qual pressão ceder. Mas agiu sozinha, falando em nome do Supremo e ignorando a preferência da maioria de seus pares. A reação não tardou. Os ministros mais antigos da Corte, Celso de Mello e Marco Aurélio, partiram para o confronto aberto contra a presidente, cobrando o julgamento das ADCs que poderiam colocar um ponto final no assunto. Cármen recuou, mas não cedeu. Ao invés de submeter ao Plenário as ações que poderiam consagrar a jurisprudência do STF (6x5 contra a prisão), Cármen pautou o HC de Lula. Ao julgar esse caso específico, os ministros poderiam dizer que não estavam decidindo se iriam mudar ou não a jurisprudência do Tribunal, mas sim que iriam aplicar a jurisprudência vigente no Supremo. Mas, espera aí. Não foi o fato de o STF estar dividido, com cada ministro e cada Turma julgando de um jeito, que levou Fachin a submeter o caso de Lula ao Plenário ao invés da 2ª Turma? O objetivo não era estabelecer um entendimento do Supremo sobre o assunto? Era, mas depois da artimanha da presidente, o alcance do HC diminuiu: foi rebaixado de aspirante a precedente para caso comum, que deve subordinar-se à jurisprudência existente na Corte (aquela jurisprudência que, em regra, ministros não respeitam e cada um julga de um jeito, e que está prestes a mudar com o julgamento das ADCs). 
A estratégia da presidente deu certo. O alvo era Rosa Weber, que é manifestamente contrária à prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, mas que, em julgamentos de HC na 1ª Turma, segue decisão anterior do Tribunal que autoriza o cumprimento antecipado da execução criminal. Convenientemente, Rosa optou por sacrificar sua posição pessoal em nome do colegiado. Um ato heróico! Só se esqueceu que o colegiado estava ali, na sua frente, reunido para manter ou rever a jurisprudência sobre o tema. Não foi esse motivo que tirou o caso da 2ª Turma e passou para o Plenário? Acho que Fachin esqueceu de avisar Rosa. Mas Toffoli não se esqueceu, porque lembrou em seu voto que também segue o precedente do STF, só que, por estar reunido em Plenário para debater novamente a questão, poderia retomar sua posição original e votar de acordo com sua própria convicção. Resta saber se, afinal, o STF pode ou não reunir-se no Plenário diante de um caso concreto para rever jurisprudência decidia em caráter liminar? Não sabemos a resposta e, ao que tudo indica, nem os ministros sabem. Fachin e Tofolli parecem achar que sim. Rosa, Cármen e Barroso (que falou sobre isso em seu voto) acham que não. Qual regra vale para o Supremo? Não há regra. Parece ser conveniente para cada ministro deixar tudo assim, confuso, dúbio e incerto. Na hora de decidir um caso específico, cada um escolhe qual caminho seguir.
Agora que Moro já determinou a prisão de Lula, quem poderia criticar Marco Aurélio por uma liminar que impedisse a prisão até julgamento definitivo das ADCs? Depois de tantos ardis dentro do Tribunal, seria este um pecado capital? O Supremo não se respeita, não se lastra pela Constituição e já não é respeitado. A pressão vem do meio político, vem das instâncias inferiores do Judiciário na forma de abaixo-assinados, entrevistas e jejuns, vem da imprensa e, agora, até das Forças Armadas. Incapaz de responder com um mínimo de coerência aos casos polêmicos que enfrenta, fica cada dia mais difícil respeitar a autoridade do STF. No fim, quando a ação é incandescente, a astúcia costuma ser determinante. Se relator e presidente estão alinhados, aí o resultado é certo.

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JOTA

Incapaz de responder com um mínimo de coerência aos casos polêmicos, fica mais difícil respeitar autoridade do STF

Supremo matreiro

Incapaz de responder com um mínimo de coerência aos casos polêmicos, fica mais difícil respeitar autoridade do STF