Rodrigo Mudrovitsch

Felipe Fernandes de Carvalho

O avanço das formas de criminalidade econômica forçou a consolidação de novos meios de prova para a aferição da materialidade e autoria delitiva. Novos instrumentos processuais foram desenhados com o específico escopo de viabilizar a apuração desse tipo de ilícito, o qual, diferentemente da criminalidade ordinária, não deixa vestígios claros dentro do plano fático. Nesse cenário, como instrumento de consecução dos objetivos de uma política criminal moderna, o instituto do acordo de colaboração premiada possui relevância ímpar. Esse instrumento permite quebrar o pacto associativo de organizações criminosas – por meio do qual boa parte do Direito Penal econômico é desenvolvido –, concedendo benefícios para que aqueles que as integram escancarem a estrutura delas.
Por ter as suas origens no sistema anglo-saxão, o estudo do instituto da colaboração premiada ainda necessita de desenvolvimento no Brasil. A partir da análise do caso Hughes v. United States, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos na primeira segunda-feira deste mês, objetiva-se revelar uma faceta relevante do plea bargaining no Direito estadunidense, consistente na possibilidade de modificação dos termos pactuados a partir de uma mudança no cenário fático-jurídico, e indicar os seus possíveis impactos na compreensão da colaboração premiada no âmbito nacional.
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Naquele caso, Hughes foi imputado pela prática dos delitos de tráfico de drogas e de porte ilegal de armas e optou por realizar um acordo com a Procuradoria de Justiça a ir a julgamento judicial. O modelo do acordo de Hughes está previsto no ordenamento americano na Rule 11(c)(1)(c) da Federal Rules of Criminal Procedure<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e é comumente denominado de “Acordo Tipo C”. Esse tipo de avença possui uma certa similitude com as colaborações premiadas que vêm sendo feitas no Brasil, vez que o acusado e a Procuradoria de Justiça definem, com exatidão, a sanção apropriada para o caso concreto.
Nos Estados Unidos, a sanção a ser ajustada entre o acusado e a Procuradoria de Justiça, mesmo no âmbito de um Acordo Tipo C, deve deter como parâmetro a matriz de escalonamento de pena norte-americana, definida pela Federal Sentencing Guidelines Commission (FSGC). Assim, a corte local poderá rejeitar o acordo (i) se a sanção ajustada não estiver dentro da margem da matriz ou (ii) se, estando a sanção fora dos parâmetros da matriz, não houver uma justificativa razoável e específica para tanto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nesse ponto, vale destacar que a FSGC possui obrigação de, periodicamente, revisitar a sua matriz de escalonamento de penas para todos os delitos, consoante o §994(o) do U.S. Code.
No caso concreto, a sentença de 180 meses de prisão ajustada entre Hughes e a Procuradoria foi fixada considerando a matriz de sanção da FSGC, que estipulava que a reprimenda para essa imputação deveria variar de 188 a 235 meses, embora não estivesse expressamente prevista na redação do acordo a correlação entre a pena acordada e a sanção recomendada.
Menos de 2 meses após a celebração e homologação desse acordo, já após o início da execução da reprimenda por Hughes, a FSGC modificou a matriz e reajustou a reprimenda correspondente, para que variasse de 151 a 188 meses, indicando, ainda, que esse novo escalonamento deveria ser aplicado retroativamente para aqueles que foram judicialmente condenados.
Após ver a sua pretensão de redução da pena negada pela Corte de Apelação do 11º Circuito Federal estadunidense, sob o argumento de que o acordo tomou como base a matriz então vigente, mas não se vinculou textualmente a ela, Hughes recorreu à Suprema Corte dos Estados Unidos.
Ao fazer a sua análise, a Suprema Corte entendeu, por maioria de 6 votos, que Hughes tem direito à redução da reprimenda acordada com a Procuradoria de Justiça. O principal fundamento da decisão consiste no fato de que, invariavelmente, a Procuradoria de Justiça e o Poder Judiciário devem tomar como baliza a matriz de sanção da FSGC na celebração e na aceitação de acordos, ainda que do Tipo C. Desta feita, mesmo que o acordo não mencionasse diretamente a matriz da FSGC, a modificação desta, com expressa menção de aplicação retroativa, deve surtir efeitos na pena ajustada entre as partes.
Esse precedente possui um significado histórico bastante relevante para os Estados Unidos, na medida em que a Suprema Corte se deparou com casuística similar em outro julgamento, Freeman v. United States, de 2011, o qual terminou empatado e, por isso, não conteve uma solução prática incontroversa.
Em razão das incompatibilidades sistêmicas, não é possível realizar uma importação indiscriminada dos resultados desse julgamento para o Direito brasileiro. Nada obstante, ele permite fazer uma reflexão a respeito do instituto da colaboração premiada.
O precedente norte-americano indica a possibilidade de revisitação, em favor do acusado, dos termos do quanto pactuado em um acordo de colaboração premiada, a depender de uma modificação do cenário fático-jurídico. Deve-se questionar, portanto, qual seria o reflexo de uma redução da pena de um tipo penal a partir de uma mudança legislativa, no cumprimento de uma sanção pactuada em um acordo de colaboração premiada.
Embora a natureza dos Acordos Tipo C venha sendo operacionalizada no Brasil, não há no ordenamento jurídico nacional a sua previsão legal, o que vem a acarretar alguns problemas. Cita-se, por exemplo, que da inexistência de regulamentação legal decorre a ausência de imposição normativa entre uma correlação do benefício acordado e a reprimenda prevista no tipo penal correspondente, embora seja algo intuitivamente necessário.
Solucionando problemas como esse, a orientação conjunta nº 1/2018 da 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal declina que a sanção acordada entre as partes deve ser fixada a partir da natureza dos fatos narrados (cláusula 18) e da gravidade da ofensa (cláusula 20). Ou seja, as partes, dentro de uma negociação de acordo de colaboração premiada, devem aferir se a reprimenda pactuada está dentro do que a legislação indica como sanção adequada para o tipo penal praticado pelo colaborador, utilizando-a como um parâmetro.
Nesse viés, em alusão ao precedente Hughes v. United States, a redução da sanção de um tipo penal por meio de uma modificação legislativa tem o condão de modificar o que foi pactuado no acordo de colaboração premiada celebrado sob a égide da antiga legislação.
Mais do que antecipar um possível debate envolvendo os acordos de colaboração premiada no Brasil e a modificação da lei penal em favor do acusado, o precedente Hughes v. United States permite também inferir que as modificações fático-jurídicos ocorridas após a celebração do acordo autorizam a revisitação dos termos pactuados. À medida em que relevantes acordos de colaboração vêm sendo celebrados no Brasil, esse tema deve ser debatido nos próximos anos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> (c) Plea Agreement Procedure.
(1) In General. An attorney for the government and the defendant's attorney, or the defendant when proceeding pro se, may discuss and reach a plea agreement. The court must not participate in these discussions. If the defendant pleads guilty or nolo contendere to either a charged offense or a lesser or related offense, the plea agreement may specify that an attorney for the government will:
(C) agree that a specific sentence or sentencing range is the appropriate disposition of the case, or that a particular provision of the Sentencing Guidelines, or policy statement, or sentencing factor does or does not apply (such a recommendation or request binds the court once the court accepts the plea agreement).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> É o que preceitua o §6B1.2(c) do United States Sentencing Commission Guidelines Manual.

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JOTA

Precedente norte-americano indica possibilidade de revisitação em favor do acusado

Suprema Corte dos EUA e a revisão dos termos de um acordo de colaboração

Precedente norte-americano indica possibilidade de revisitação em favor do acusado