Gustavo Diniz Junqueira

Rodrigo Pardal

O presente artigo busca analisar, em curtas palavras, o novo crime de importunação sexual, com foco para a análise de suposta abolitio criminis na contravenção de importunação ofensiva ao pudor.
Em 24 de setembro de 2018 entrou em vigor a Lei 13.718/18 que, dentre outras mudanças, criou o delito do artigo 215-A denominado “Importunação sexual” e revogou a contravenção penal antes prevista no artigo 61 do Decreto-Lei 3.688/41 denominada “Importunação ofensiva ao pudor”.
A lei foi, em grande parte, impulsionada por clamor popular a partir de situações envolvendo sujeitos que em transporte coletivo acariciavam partes íntimas de vítimas ou se masturbavam em contexto semelhante. Não obstante, o caráter simbólico da mudança, se fazia necessária dogmaticamente a existência de um tipo penal intermediário entre a contravenção mencionada (excessivamente branda) e o delito de estupro, de elevada gravidade, hediondo, que não se aplicava, via de regra, a tais casos. Destarte, atender-se-ia à noção de proporcionalidade tanto em sua vertente de impedir intervenção excessiva (ao incidir no estupro) quanto em sua vertente de evitar “proteção” deficiente, para os que creem nesta (ao incidir na importunação ofensiva ao pudor).
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O ponto central é discutir qual a consequência da alteração legislativa para os sujeitos que praticaram a contravenção penal antes do advento da lei em estudo. Destarte, analisar-se-á se houve abolitio criminis ou se a contravenção penal continuará a gerar seus efeitos para os que a praticaram anteriormente, o que só se justificaria pelo reconhecimento de continuidade normativo típica, pois, a referida contravenção foi formalmente revogada, o que em regra traria como consequência a abolitio criminis, com a extinção da punibilidade em relação aos autores da referida contravenção, bem como afastaria todos os efeitos penais de eventual sentença condenatória.
Com escopo de se resolver tal situação de rigor a adoção do critério da continuidade normativo-típica que parte da análise do próprio tipo para verificar se a conduta continua sendo criminosa. A escolha do critério não é arbitrária: a proposta de Taipa de Carvalho é consagrada e comentada por vários autores brasileiros, e já foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos, como na sucessão de leis advinda do Estatuto do Desarmamento (v.g. HC 86 856, Relator (a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).
Uma primeira situação é aquela em que há alargamento da punibilidade por supressão de elementos especializantes<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>. Ora, dizer que a nova lei é mais genérica em relação à lei antiga é afirmar que esta é mais específica e, portanto, abarca menos situações que a nova lei. Desta feita, a lei nova genérica tem um campo de incidência maior e, por isto, qualquer fato praticado sob a vigência da lei anterior também está amparada pela lei nova. Há efetivamente uma continuidade normativo-típica nesta hipótese. Tudo que a anterior norma abarcava persiste ao alcance na nova lei, e a descrição típica é ora ainda mais abrangente.
Contudo, pode ocorrer de não haver relação de especialidade entre as leis e haver uma troca de elementares. Uma elementar que existia no primeiro tipo deixa de existir e é trocada por outra diversa, presente no novo tipo. Aqui, justamente em razão desta permuta, inexiste qualquer identidade típica, vez que a conduta anterior jamais se adequaria na nova norma e a recíproca é verdadeira. Se determinadas condutas eram incriminadas na nova legislação são irrelevantes, há descriminalização, ainda que acompanhada da criminalização de novas condutas. Portanto, condutas previstas na lei anterior são despenalizadas, havendo nesta hipótese abolitio criminis.
Por fim, possível a redução da punibilidade pela adição de elementos especializantes, já que esta, se comporta como uma lei especial em relação a anterior e, portanto, passa a exigir mais elementos para a caracterização do crime, reduzindo seu campo de incidência. Importante ressaltar que das três hipóteses mencionadas apenas nesta há divergência na doutrina estrangeira, conforme pontua Taipa de Carvalho<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>, vez que parcela dos autores sustenta haver despenalização (posição sustentada por Taipa) e há outra corrente sustentando que não há abolitio na especialização. Verificados os critérios, passemos a análise da legislação. Verificados os critérios, passemos a análise da legislação.
No que tange à contravenção penal, a redação era a seguinte:
“Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. Pena — multa de duzentos mil réis a dois contos de réis”
Já, o crime em vigência tem a seguinte redação:
“Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Pena — reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave”.
De início convém pontuar o óbvio, que a lei atual é prejudicial e não pode retroagir para alcançar os fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, já que se trata de novatio legis in pejus.
Sob um aspecto a lei nova suprimiu o elemento espacial existente na contravenção penal, qual seja, a exigência de que o ato seja praticado em lugar público ou acessível ao público. Portanto, teria ampliado o espectro de punição, já que em havendo elementares a menos exige-se o preenchimento de um menor número de elementares para a adequação típica, o que facilita a incidência penal. Portanto, a lei passaria a abarcar mais hipóteses, afastando, sob um primeiro prisma, a abolitio.
Possível concluir ainda que o fato da conduta ser praticada contra alguém e sem seu consentimento já constava na redação e alcance normativo da infração anterior, pois, a importunação — verbo anterior — permite concluir que não há consentimento.
No entanto, a lei nova acrescentou um elemento subjetivo expresso, qual seja, a finalidade de satisfazer lascívia própria ou de terceiro. Neste ponto, reduziu-se o espectro de punição, vez que com a inserção de elementares, exige-se o preenchimento de mais componentes para que a conduta torne típica. Portanto, a lei passaria a abarcar menos hipóteses.
Caso tivesse ocorrido o fenômeno denominado continuidade normativo-típica a conduta anterior continua sendo relevante penal, o que se daria caso a lei nova alargasse a punibilidade suprimindo elemento especializante existente na lei anterior, como dito. Ou seja, seria mantida a punibilidade, pois, a lei antiga seria especial em relação à lei nova.
Ocorre que no presente caso se deu uma permuta de elementos constitutivos do tipo penal. Foi suprimida especificação do local e acrescido específico elemento subjetivo do injusto. Não há que se falar em especialidade já que houve inserção e supressão de elementos diversos, portanto, nenhuma lei é especial em relação a outra, tampouco é possível em abstrato concluir se teve o raio de incidência ampliado ou reduzido, já que se suprimiu elementar do tipo antigo e foi acrescida elementar diversa no novo tipo.
Não há propriamente uma sucessão de leis penais, mas segundo Taipa de Carvalho a entrada em vigor da lei nova determina a despenalização da conduta anterior. Portanto, houve em verdade abolitio criminis da conduta anterior prevista na Lei de Contravenções Penais, não havendo que se falar em continuidade normativo-típica no presente caso.
O próprio Superior Tribunal de Justiça pressupõe para que se dê a continuidade normativo-típica mera migração topográfica do mesmo conteúdo típico, conforme se extrai do seguinte julgado:
“Caso mantido, no entanto, o caráter proibido da conduta, apenas se deslocando topograficamente o conteúdo criminoso dentro do mesmo diploma legal ou até́ mesmo para outra lei, depara-se, em verdade, com o princípio da continuidade normativo-típica, o qual, por sua vez, não possui o condão de tornar o ato impunível <a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>”.
O contrário da situação narrada no julgado, no presente caso não houve mero deslocamento topográfico do mesmo conteúdo, o que já afasta de pronto esta hipótese de continuidade normativo-típica, restando apenas a abolitio criminis.
Portanto, conclui-se que a nova lei ao revogar o artigo 61 do Dec. Lei 3.688/41 gerou a descriminalização para as imputações relativas à referida infração penal, cabendo ao juízo do processo de conhecimento reconhecer tal caso não tenha havido coisa julgada ou caso esta tenha ocorrido, incumbe ao juízo da Execução Penal fazê-lo nos termos do artigo 66, I da Lei 7.210/84 e Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Pág. 217.
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Pág. 218 e 225.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> AhRg no HC 376.098/RJ. Como vimos, a continuidade normativo-típica não se limita a esta hipótese, sendo apenas esta uma delas, vez que se houver um novo tipo especializante também há abolitio criminis segundo Taipa de Carvalho.
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JOTA

Uma análise do novo crime de importunação sexual e suas consequências

Suposta abolitio criminis na contravenção de importunação ofensiva ao pudor

Uma análise do novo crime de importunação sexual e suas consequências