Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro

O art. 3º, §4º, da Lei nº 7.444 e os dispositivos regulamentares constantes de Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral que permitem o cancelamento do título dos eleitores que não realizaram a tempo o cadastramento biométrico obrigatório violam os princípios da democracia, da cidadania e da soberania popular, mediante o alijamento de uma considerável parcela do eleitorado do exercício de seu direito fundamental ao voto.
Segundo as informações do TSE, entre 2016 e 2018, foram cancelados 3.368.447 títulos eleitorais em razão do não comparecimento dos cidadãos ao cartório eleitoral, para fins de recadastramento. É como se toda população do Distrito Federal, por exemplo, fosse alijada do exercício de determinado direito fundamental.
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Ainda que os dados de cancelamento automático de títulos em período anterior também impressionem (1.618.488, de 2014 a 2016; e 1.190.141, de 2012 a 2014), o quantitativo resultante do recadastramento realizado no biênio de 2016-2018 (3.368.447) demonstra patamar de possível cerceamento do direito de voto em extensões incompatíveis com a cláusula da universalidade do direito de sufrágio, prevista no art. 14, caput, da CF88.
<blockquote class="western jota-article__eye">Além da magnitude do número de cidadãos cerceados em seu direito de voto, a afronta ao princípio da universalidade do sufrágio decorre da imposição de gravíssima medida de proibição de exercício de direito fundamental, sem ao menos o envio de uma comunicação individual ao eleitor em qualquer fase do procedimento, apenas por conta do não atendimento a medida burocrática.</blockquote>
Essa violação fica mais nítida quando considerado que, de acordo com informações do próprio Tribunal Superior Eleitoral, os índices de descarte de participação popular caem substancialmente caso o eleitor tome o devido conhecimento do chamamento da Justiça Eleitoral. Tanto é que quase metade dos títulos cancelados no período de 2014 a 2016 já foi regularizada até a data de hoje. Tal padrão indica ser possível que, mesmo não tendo sido avisados pela Justiça Eleitoral, cerca de um milhão e setecentos mil eleitores hoje com o título cancelado e impedidos de escolher seus representantes nas eleições que se avizinham terão regularizado seu cadastramento para as eleições de 2020.
Assim, fica evidente que a razão do alto número de cidadãos cuja participação política foi descartada pelo automático cancelamento dos títulos é o absoluto desconhecimento do eleitor sobre o chamamento público da Justiça Eleitoral. Se o Estado não logra êxito em fazer chegar aos cidadãos a convocação do cadastro biométrico, esse ônus não pode e não deve ser arcado somente pelo eleitor. A partir do momento em que a dificuldade de comunicação do Estado compromete o voto de quase três milhões e meio de pessoas, é imperioso repensar os procedimentos.
A dimensão e os custos do grandioso projeto de implementação da biometria no Brasil fizeram com que sua implementação ocorresse de forma necessariamente gradual. Hoje, cerca de 50% do eleitorado está “biometrizado”, ou seja, mais de 73 milhões e meio de eleitores serão identificados, no momento de votação, pela sua digital, enquanto que idêntico número de eleitores ainda será identificado mediante a apresentação de seu respectivo documento.
Essa situação revela um paradoxo insuperável: como proibir três milhões e meio de eleitores de votarem legitimamente mediante apresentação de seus documentos, se nada menos do que a metade de todo eleitorado votará da mesma forma? Cria-se cidadãos de primeira e de segunda categoria, em clara ofensa ao princípio da igualdade material, já que alguns poderão votar apenas apresentando seu documento (50% do eleitorado), mas ouros não poderão votar dessa mesma forma no mesmo pleito, exclusivamente em razão do não atendimento à convocação geral feita pelo Poder Público, sem qualquer comunicação individual e pessoal encaminhada ao eleitor.
Nesse contexto, em que a implementação do cadastro biométrico ocorre gradualmente, o cancelamento automático do título (a pressupor comunicação pessoal) e a proibição de utilização de documentos de identificação deveriam ocorrer também de forma gradual, a fim de evitar o tratamento assimétrico entre cidadãos na mesma eleição e a permitir que os eleitores cujos títulos foram cancelados possam votar apresentando seus documentos – como fará a metade do eleitorado nacional.
Medida dessa natureza contribuiria para aplacar o comprometimento do direito ao voto das parcelas marginais da sociedade. O procedimento de concretização do projeto biométrico, com o cancelamento dos títulos eleitorais dos que não comparecem ao chamamento público eleitoral, converteu-se em política que, a despeito de neutra em seus fins e geral em seus destinatários, tem onerado de forma muito particular parcelas específicas do eleitorado.
<blockquote class="western jota-article__eye">Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, nada menos que 1.504.464 dos 3.368.447 títulos automaticamente cancelados referem-se a eleitores do Nordeste. </blockquote>
Ou seja, quase metade dos títulos eleitorais cancelados concentra-se numa única região do Brasil, qual seja, o Nordeste, região com o menor IDH. O Sudeste, cujo eleitorado é o maior do país, com mais de 63 milhões, contou com 708.746 títulos cancelados – não é nem metade do total de cancelamentos ocorrido no Nordeste.
Esse percentual de 4% do eleitorado nordestino cujo título foi cancelado revela que, por circunstâncias sociais e econômicas, o cancelamento automático dos títulos eleitorais de indivíduos que não atenderam ao chamamento da Justiça Eleitoral é medida restritiva de direitos fundamentais que incidiu, com especial onerosidade, sobre determinada parcela de cidadãos, justamente os mais vulneráveis.
É essa parcela mais vulnerável do eleitorado que não foi atingida pelo chamamento do Estado, para fins de recadastramento biométrico. 
Os ônus ordinários por essa inequívoca falha do Estado em alcançar seus cidadãos em situação de maior vulnerabilidade não podem ser deslocados exclusivamente para os próprios cidadãos atingidos, sob pena de perpetuação e aprofundamento de suas posições de marginalidade.
Essa gritante assimetria confirma ao aplicador da norma que, no plano dos fatos, uma lei geral e neutra tem gerado encargos excessivos a uma parcela específica determinada da população, o que justifica a atuação interventiva do Poder Judiciário, mediante a adoção de instrumentos para restabelecer o parâmetro da igualdade na fruição da liberdade.
Eventuais óbices burocráticos e operacionais não revelam razão constitucional legítima a permitir que situação claramente ofensiva à liberdade, à universalidade e à igualdade do sufrágio siga surtindo seus efeitos, com o alijamento do processo democrático de mais de três milhões e trezentas mil pessoas, das quais quase 50% concentra-se na região mais pobre do país, em típica situação de especial comprometimento a direitos de grupos vulneráveis, de “minorias discretas e insulares” (Justice Stone, United States v. Carolene Products Company).
<blockquote class="jota-article__eye">Num regime que se quer livre, protetivo, democrático e plural, não é de se admitir a restrição automática de direitos fundamentais de uma parcela específica da população (particularmente concentrada dentre os mais pobres), se a concretização do cadastro biométrico pode se dar sem que tal consequência deletéria se opere.</blockquote>
A plena possibilidade de conciliação prática da universalidade, liberdade e igualdade do sufrágio, com a finalidade estatal legítima de consolidação da biometria no país, impõe à máquina pública a adoção de todas as adequações que se fizerem necessárias (que, no caso, pode se resolver no campo do encaminhamento de comunicações pessoais e, nesse meio tempo, com a identificação do eleitor mediante apresentação de documentos), pois a frustração de direitos de índole fundamental não pode ser motivada por questões de comodidade administrativa por parte do Estado.
Evidentemente que a reinclusão, no cadastro eleitoral, dos mais de 3.300.000 eleitores indevidamente excluídos do direito ao voto, bem assim a adoção todas as medidas necessárias para tanto, gerarão custos adicionais aos cofres públicos e imporão, ainda, o repensar de estratégias de segurança e de fiscalização. 
A geração de custos e gastos, contudo, é inerente à própria concretização dos direitos fundamentais previstos na Carta Política, razão pela qual não se viabiliza ao Estado a invocação de alegações pragmáticas, de natureza meramente econômica ou operacional, para fins de total esvaziamento do direito fundamental ao voto.
A adoção de um regime protetivo de direitos fundamentais gera inevitavelmente custos, pois todos os direitos, em alguma medida, “são positivos”, impondo ao Estado o inescapável dever de adotar condutas que permitam o seu efetivo exercício (HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberties depends on taxes. New York: Norton &amp; Company LTD, 1999. p. 35 et seq).
Finalmente, há, a ser sopesado, o fator tempo. 
A gravidade, a extensão e a profundidade da situação de inconstitucionalidade narrada na inicial – com o alijamento sumário de 4% do eleitorado nordestino do direito ao voto, com a exclusão de 3.300.000 de eleitores do pleito que se avizinha, com risco de comprometimento da própria autenticidade das urnas –, com todo respeito, impõem a sincera mobilização e todo o empenho necessário à sua superação.
Assim, uma primeira medida alternativa que não chegou a ser cogitada pelo TSE, mas que seria possível no contexto concreto, seria a impressão apenas de uma listagem suplementar de eleitores habilitados, a serem encaminhadas exclusivamente às zonas eleitorais que contem com eleitores cancelados devido ao mero ao não comparecimento ao cadastramento biométrico, ao invés da reimpressão integral de todos os cadernos de votação.
São 1.248 os Municípios em que tais situações se verificaram, nos termos das informações prestadas pelo E. TSE (fls. 24 das informações). A impressão apenas de um caderno suplementar (sem necessidade de reimpressão de todo o caderno de votação) e seu envio apenas às Zonas Eleitorais afetadas certamente demandaria menos do que os 10 dias cogitados pela unidade técnica, o que viabilizaria a reinclusão dos eleitores afastados ainda a tempo do primeiro turno de votações.
A segunda medida alternativa seria o acolhimento da proposta formulada pelo TSE, no sentido da recarga das urnas, sem a necessidade de reimpressão dos respectivos cadernos de votação. Consoante as próprias informações do E. Tribunal Superior Eleitoral, nos termos do art. 111, § 1º da Resolução/TSE 23.554/2017, “basta a presença da inscrição do eleitor na urna para que este possa ser admitido a votar” (“Só serão admitidos a votar os eleitores cujos nomes estiverem cadastrados na seção eleitoral. § 1º. Poderá votar o eleitor cujo nome não figure no Caderno de Votação, desde que os seus dados constem do cadastro de eleitores da urna”).
A própria Resolução do E. Tribunal Superior Eleitoral já prevê, como possível, sem qualquer nota de anomalia ou excepcionalidade, a situação de o eleitor constar no cadastro na urna, mas não no caderno de votações, garantindo, em casos tais, o direito de voto, solução pode e deve ser adotada no presente caso.
Em terceiro e último lugar, pode-se cogitar da concessão de medida cautelar pela Suprema Corte, para que sejam prontamente iniciados (e há tempo para tanto, mesmo no calendário mais conservador, seguidos os prazos indicados pelo próprio TSE) todos os procedimentos necessários para que os eleitores cujos títulos foram sumariamente cancelados em razão do mero não comparecimento ao Cartório Eleitoral possam participar ao menos do segundo turno de votações, a se realizar em mais de um mês.
As três medidas alternativas, e outras tantas que certamente serão concebidas pelo STF, revelam que é possível, em maior ou menor medida, mitigar ou fazer cessar os efeitos inconstitucionais derivados dos atos impugnados na ADPF 541. 
A maximização da garantia da universalidade do sufrágio, entendemos, é valor que deve nortear e inspirar a máquina pública, porque pressuposto necessário da própria realização e concretização do valor da democracia.

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Superação da inconstitucionalidade do cancelamento automático de título eleitorais

Três saídas possíveis