André Luiz Maluf

A crise financeira que assola o país tem gerado consequências jurídicas sem precedentes. A dívida pública alcançou patamares tão elevados que diversas medidas nunca antes pensadas, como a exoneração de servidores estáveis prevista na Constituição (art. 169, §4º), já são cogitadas por diversos entes da federação. Limitação de empenho e a proibição de celebrar operações de crédito são consequências imediatas da extrapolação dos limites legais. O caso dramático do Estado do Rio de Janeiro é elucidativo, de modo que foi criado projeto de lei (2345/17) para alienar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE. Não bastasse a delicadeza do cenário, a realização de sequestros pelo Judiciário sem respaldo na Constituição ou na legislação prejudica a gestão administrativa e, por conseguinte, a coletividade. 
Não são raros os sequestros de verbas públicas realizados em contraposição ao previsto na Constituição e nas Leis que tratam do regime jurídico em face da Fazenda Pública (Lei 8437/92 e Lei 9494/97). O ordenamento somente admite o sequestro de verbas públicas em algumas hipóteses. Três estão previstas no texto constitucional, no caso dos precatórios exclusivamente para as hipóteses de i) preterimento do direito de precedência; ii) de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito; iii) não liberação tempestiva dos recursos - art. 100, §6º c/c art. 103 e 104, I do ADCT. Outra é disposta na Lei dos Juizados Especiais da Fazenda pública (Lei 12153/09) – art. 13, §1º. Além das normas previstas no ordenamento, também é admitido o sequestro na hipótese de não fornecimento de medicamentos, através de controvertida criação jurisprudencial (STJ. 1ª Seção. REsp 1.069.810-RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 23/10/2013 - recurso repetitivo). Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral de tema semelhante, que poderá inclusive impactar àquele entendimento do Superior Tribunal de Justiça: a Corte irá analisar se é possível ou não autorizar o sequestro de verbas públicas para o pagamento de crédito alimentício a portador de doença grave, sem observância à regra dos precatórios prevista na Constituição Federal (Tema 598). 
Não há admissibilidade constitucional e legal para a medida constritiva fora dessas hipóteses. 
O pagamento através de precatórios e requisições de pequeno valor é uma garantia da Fazenda Pública conferida pelo Constituinte, no sentido de proteger o ente público de sequestros que prejudiquem a gestão municipal e orçamentária. É decorrência, portanto, do próprio regime jurídico dos bens públicos e do regramento de Direito Público que norteia o ordenamento jurídico no tocante à Fazenda Pública. 
Mostra-se inviável para qualquer gestor cumprir o seu múnus institucional face aos sequestros arbitrários sem previsão. A realização de despesa pública depende de um trâmite burocrático específico, previsão orçamentária e um diálogo entre Legislativo e Executivo para que não haja prejuízo ao equilíbrio orçamentário, e consequentemente, à coletividade. A decisão judicial constritiva cria um verdadeiro subterfúgio para o devido processo legal administrativo-financeiro previsto na Constituição e nas leis de regência. 
É possível identificar diversos casos controversos sobre o sequestro de verbas públicas, sobretudo em Municípios de pequeno e médio porte cuja atuação junto às instâncias superiores, ou até mesmo aos Tribunais locais, encontra limitações logísticas e institucionais. Inúmeros julgados elucidam a problemática. 
Em janeiro do corrente ano de 2017, na comarca de Teresópolis proferiu-se decisão interlocutória onde foi determinado o sequestro de verbas públicas para o pagamento de vale alimentação de servidores no valor total de R$ 2.263,800,00 (dois milhões, duzentos e sessenta e três mil e oitocentos reais), como forma de sanção pelo suposto não cumprimento de decisão anterior que determinava a realização de licitação. Tal decisão inviabilizou completamente a gestão municipal e orçamentária, bem como a prestação de serviços públicos essenciais pelo Município, além de contrariar decisões do Supremo Tribunal Federal e criar nova hipótese de sequestro não prevista no texto constitucional. 
A decisão determinou ainda que fosse realizado o sequestro de qualquer verba, com exceção de saúde e educação, não fazendo ressalva quanto às demais, ainda que de natureza federal, ou oriundas da repartição das receitas constitucionais, ou de tributos vinculados, ou de qualquer natureza. Ademais, a decisão interlocutória estabeleceu que o valor de mais de 2 milhões fosse destinado ao Sindicato autor para que este repartisse o montante aos servidores respectivos. 
Tudo isso antes mesmo da sentença de primeiro grau. 
Ressalte-se que o próprio juízo reconsiderou sua decisão. O magistrado constatou a situação de fragilidade financeira do Município e o ente público comprovou a realização do procedimento licitatório que tinha dado ensejo àquela constrição. Todavia, em razão daquele sequestro para o pagamento do vale alimentação, houve um atraso no pagamento dos servidores ativos e inativos municipais em cerca de duas semanas.
Também foi proferida na mesma comarca decisão em dezembro de 2016 determinando o sequestro de verbas públicas no valor de R$2.246.635,21 (dois milhões, duzentos e quarenta e seis mil, seiscentos e trinta e cinco reais e vinte e um centavos)  para o pagamento dos proventos dos inativos do Município de Teresópolis, novamente antes da sentença, do trânsito em julgado ou da expedição de qualquer precatório. Ressalte-se que no dia anterior ao sequestro o Município já havia realizado o pagamento dos inativos. Em suma, novamente a medida prejudicou o ente público e a coletividade atrasando o cumprimento de outras obrigações.
Nota-se, portanto, que o Judiciário não possui a devida capacidade institucional para a previsão dos efeitos sistêmicos de suas decisões, como muito bem critica Rodrigo Brandão[1] com base em Cass Sustein e Adrian Vermule. As decisões citadas não reconhecem que o Judiciário não possui a devida habilitação para tomar a melhor decisão em matéria orçamentária (conhecimento das despesas, receitas e da realidade administrativa e social), tampouco realizam o prognóstico dos efeitos sistêmicos que não foram pré-determinados (atraso nos pagamentos dos servidores e sequestro de verba que poderia ser utilizada para outras finalidades públicas). 
A cautela e a deferência devem ser buscadas pelo Judiciário, sobretudo em tempos de consequencialismo decisório, como adverte José Vicente Mendonça[2].    
Em outro julgado recente, no dia 19 de dezembro de 2016 o Ministro Gilmar Mendes deferiu liminar em Reclamação (26026) para suspender o bloqueio de verbas públicas do Município de Lagoa dos Gatos (PE) que fora realizado em razão dos atrasos no pagamento de servidores. Segundo o Ministro relator: 
“Anoto, ademais, que o ato reclamado vai de encontro aos princípios constitucionais vinculados à ideia de segurança orçamentária. No caso, em especial, ao princípio da legalidade orçamentária, princípio de limitação do poder do Estado e, ao mesmo tempo, de direcionamento das atividades administrativas. (...) Assim, tendo em vista a urgência que o assunto requer, dado o perigo de lesão grave ao orçamento municipal, defiro a medida liminar para determinar o imediato desfazimento do bloqueio das contas de titularidade do Município de Lagoa dos Gatos, Pernambuco, e, no mais, do consequente sequestro de renda pública, até o julgamento final do mérito da presente reclamação. Comunique-se. Após, remetam-se os autos ao Procurador-Geral da República. Publique-se.”
O Supremo Tribunal Federal também suspendeu em 26 de agosto de 2016 sequestro efetuado em face de verbas do Município de Guarulhos no bojo da Reclamação 16899-SP.
Em 27 de julho de 2016, o Min. Ricardo Lewandoski suspendeu decisão da justiça alagoana que determinou o bloqueio de R$ 7,1 milhões dos cofres do Município de Canapi (AL). A decisão foi tomada na Suspensão de Liminar (SL) 1006, ajuizada pelo Município para questionar o sequestro das verbas públicas. O ministro constatou haver no caso violação à ordem pública administrativa e ao princípio da legalidade na decisão da justiça alagoana que determinou o bloqueio de verbas destinadas à educação. O juízo de primeira instância determinou o bloqueio de valores proveniente de repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) nas contas do Município de Canapi, para garantir o pagamento de dívida com o Instituto de Previdência dos Servidores Públicos de Canapi (Iprev).
Em 10 de junho de 2014 o Supremo concedeu liminar na Reclamação 17821, ajuizada pelo Município de Maceió (AL), e suspendeu os efeitos de decisão da Justiça do Trabalho que determinou o bloqueio de verbas públicas para garantir o pagamento de direitos trabalhistas devidos a funcionários terceirizados. 
O principal precedente utilizado pelo Supremo para suspender os sequestros é a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.662/SP. A decisão foi proferida no sentido de admitir o sequestro de verba pública somente no caso de inobservância da ordem cronológica de apresentação do precatório. Em igual sentido, inúmeros outros precedentes[3]. 
Na <a href="http://www.stf.jus.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?PROCESSO=1987&amp;CLASSE=Rcl&amp;cod_classe=403&amp;ORIGEM=IT&amp;RECURSO=0&amp;TIP_JULGAMENTO=M">Rcl 1.987</a>, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 1º-10-2003, Plenário, DJ de 21-5-2004, foi ratificado o entendimento de que a única situação suficiente para motivar o sequestro de verbas públicas destinadas à satisfação de dívidas judiciais alimentares é a relacionada à ocorrência de preterição da ordem de precedência, a essa não se equiparando o vencimento do prazo de pagamento ou a não inclusão orçamentária. Na mesma linha: <a href="http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=601134&amp;idDocumento=&amp;codigoClasse=4041&amp;numero=3539&amp;siglaRecurso=AgR&amp;classe=SS">SS 3.539-AgR</a>, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-7-2009, Plenário, DJE de 21-8-2009 e <a href="http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?id=540723&amp;idDocumento=&amp;codigoClasse=536&amp;numero=6043&amp;siglaRecurso=AgR&amp;classe=Rcl">Rcl 6.043-AgR</a>, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 25-6-2008, Plenário, DJE de 8-8-2008.
Também já decidiu a Corte que o vencimento de prazo legal para pagamento de precatório não é motivo suficiente para dar ensejo ao sequestro de verbas públicas, uma vez que não se equipara à preterição da ordem de precedência (<a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=3604673">Rcl 2.425</a>, rel. min. Dias Toffoli, julgamento em 6-3-2013, Plenário, DJE de 8-4-2013.)
A República Federativa do Brasil possui mais de 5.500 Municípios, 26 Estados, o Distrito Federal e a União. Não é difícil constatar que a medida constritiva que afeta a Fazenda Pública fora das hipóteses previstas no texto constitucional causa grave insegurança jurídica de proporções amplas prejudicando o desempenho ordinário das atividades do Poder Público. Em muitos casos, inclusive, a medida atrasa o próprio cumprimento das obrigações da administração, face ao entrave causado por um sequestro ou um bloqueio judicial, ainda que bem intencionado. 
Ademais, é possível identificar que os sequestros ensejam grave insegurança jurídica eis que podem ser realizados sem previsão constitucional ou parâmetros. Dos casos analisados verificamos que uma decisão judicial, inclusive interlocutória, antes da sentença ou trânsito em julgado, pode determinar o sequestro ou bloqueio de verbas públicas pelos mais diversos motivos: pagamento de vale-alimentação, pagamento de aposentaria dos inativos, pagamento de vale-transporte, pagamento de verbas trabalhistas, pagamento dos servidores ativos e etc. 
Infere-se que, ao fim e ao cabo, o sequestro é deferido pelo Judiciário de acordo com o caso concreto, segundo a discricionariedade do magistrado. Tal realidade é insustentável para qualquer administração. A controvérsia, portanto, não é apenas atual, mas também constante, de modo que um posicionamento definitivo da Suprema Corte através da edição de um enunciado vinculante tem o potencial de resolver a questão garantindo a necessária segurança jurídica.
Neste sentido, o Município de Teresópolis, no bojo da Reclamação 26.171-RJ, Rel. Min. Rosa Weber, com amparo na Lei 11.417/06, art. 3º, §1º, incidentalmente, realizou <a href="http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5150379" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Proposta de Súmula Vinculante – PSV 127</a> com o objetivo de fazer cessar os sequestros arbitrados fora das hipóteses previstas pelo ordenamento que violam as inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
Trata-se de medida essencial em razão do atual momento pelo qual passa o país, além da nítida insegurança jurídica causada pelas diversas decisões. Conforme demonstrado naquela proposta, estão presentes todos os requisitos autorizadores exigidos pelo ordenamento: i) controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que gere grave insegurança jurídica; ii) relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica; iii) existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional.
Destarte, o Município propõe o seguinte teor, que poderá ser aprimorado ou mesmo alterado, preservando sua finalidade, conforme os debates realizados pelos Ministros da Corte Suprema e a participação dos Interessados que se habilitarem: PSV - “É inconstitucional o sequestro de verbas públicas quando realizado fora das hipóteses previstas na Constituição”.
Não se busca encerrar o debate com o presente artigo, tampouco afirmar que ordenamento não pode ser objeto de evolução. A interpretação jurisdicional, contudo,  deve ser feita dentro da moldura jurídica posta, levando em conta o texto constitucional e legal. A Proposta de Súmula Vinculante realizada é o início de uma árdua jornada. Trata-se, em verdade, de um fio de esperança para aqueles que ainda creem que o Judiciário não deve atuar sem standards e lutam pela prevalência da coerência e da integridade na jurisprudência (art. 926, do Código de Processo Civil). Se os Tribunais se propõem a garantir o respeito aos precedentes, a segurança jurídica deve ser seu centro gravitacional.  
O Supremo Tribunal Federal tem a possibilidade de editar um enunciado que certamente irá impactar a Fazenda Pública nas três esferas da federação. A aprovação da Proposta garantirá a necessária segurança jurídica, o respeito às reiteradas decisões da Corte, a supremacia constitucional e o bem-estar da própria coletividade.
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[1] Cf. BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial v. Diálogos Constitucionais. 2012, p. 325-328.
[2] Cf. MENDONÇA, José Vicente. Dois Futuros (e meio) para o projeto de lei do Carlos Ari. Disponível em:  <a href="https://www.academia.edu/31119048/Dois_futuros_e_meio_para_o_projeto_de_lei_do_Carlos_Ari">https://www.academia.edu/31119048/Dois_futuros_e_meio_para_o_projeto_de_lei_do_Carlos_Ari</a>
[3] AP 503, rel. min. Celso de Mello, j. 20-5-2010, P, DJE de 1º-2-2013; Rcl 6.735-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 18-8-2010, Plenário, DJE de 10-9-2010; Rcl 6.800-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 8-10-2009, Plenário, DJE de 29-10-2009; Rcl 3.970-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-9-2009, Plenário, DJE de 23-10-2009; Rcl 5.928, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 20-8-2009, Plenário, DJE de 11-9-2009; Rcl 3.084, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 29-4-2009, Plenário, DJE de 1-7-2009.

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JOTA

O dever do Supremo de garantir a segurança jurídica

Súmula vinculante e o sequestro de verbas públicas

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