Crimes Fiscais

Precisamos falar sobre a Súmula Vinculante 24 do STF

A necessária revisão de seu conteúdo diante da sua obsolescência prática

democracia
Crédito: Dorivan Marinho

Como condição de procedibilidade ou como condição objetiva de punibilidade, o fato é que o término do processo administrativo tributário é um marco quase intransponível para o início do processo penal pelo crime de sonegação fiscal desde que a Súmula Vinculante n. 24 do STF foi aprovada. “Quase” porque já existem alguns precedentes relativizando esse mandamento.[1] A pergunta que se faz agora é: há acerto nessa flexibilização sinalizada pelo Supremo Tribunal Federal?

Algumas premissas precisam ser estabelecidas para que se possa responder à questão.

O Direito Penal Tributário busca no Direito Tributário conceitos indispensáveis à definição dos crimes da Lei n. 8.137/90, sobretudo no que tange ao artigo 1º, que traz a previsão do elemento normativo “tributo”.

A definição de tributo está no artigo 3º do Código Tributário Nacional. A questão subjacente é: como surge essa obrigação? O artigo 142 do Código Tributário Nacional preceitua que a forma de constituição do crédito tributário é o lançamento, de forma que sua definição é essencial para solucionarmos o problema aqui apresentado.

O lançamento é o “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador” e é levado a cabo por meio de um processo administrativo fiscal, regulamentado pelo Decreto nº 70.235/72 no âmbito da União. Essas normas abarcam tanto o procedimento de fiscalização e autuação – ação fiscal – quanto o processamento da impugnação e recursos – fase litigiosa. De acordo com referido decreto, o auto de infração poderá ser impugnado e essa manifestação de inconformidade será julgada pela Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamentos. Ainda, se o contribuinte seguir discordando da decisão, poderá apresentar recurso ao CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

O processo de formação do crédito tributário dura cerca de 5 (cinco) anos e poderá ser rediscutido perante o Poder Judiciário, o que pode levar mais tantos outros anos.[2] Nesse período, o patrimônio do futuro devedor pode ser esvaziado e as provas para uma eventual persecução penal enfraquecem tendo em vista os efeitos deletérios do tempo.

Como anunciado no início do texto, o fato é que o processo administrativo tributário é indispensável para o processo penal fiscal e, por conta dessa relação, o artigo 83 da Lei nº. 9.430/96, já previa que a Receita Federal só poderia encaminhar representação fiscal para fins penais ao Ministério Público depois de proferida a decisão final na esfera administrativa sobre a exigência fiscal do crédito correspondente.

Depois de uma discussão sobre o eventual condicionamento da ação penal pública de titularidade do Ministério Público em virtude dessa lei, o julgamento da ADI 1571/DF definiu que o Ministério Público poderia deflagrar ação penal tributária caso tivesse acesso a outros meios de prova.

O julgamento final dessa Ação Direta de Inconstitucionalidade ocorreu no mesmo dia do celebrado HC 81.611/DF (10 de dezembro de 2003), precedente central da Súmula Vinculante nº 24 e houve a preocupação de se inserir na ementa final observação assegurando que não havia contradição entre as decisões. Embora o HC 81.611/DF tenha definido que faltaria justa causa para a ação penal quando o lançamento estivesse pendente de decisão definitiva do processo administrativo, ficou claro que eventual denúncia não seria condicionada à representação da autoridade administrativa.

Em 2009, após alguns anos de consolidação da jurisprudência, foi proposta a criação de Súmula Vinculante que, embora se inspire no mencionado leading case, não o reflete por completo em sua nebulosa redação.  A discussão entre os ministros do Supremo Tribunal Federal na ocasião da aprovação do enunciado revela certa discordância sobre as razões pelas quais a ação penal dependeria do término do processo administrativo para ser iniciada. Houve consenso, porém, sobre a consequência: impedimento de processar o cidadão antes de findo o processo administrativo fiscal.

Uma das razões do encontro de vontades foi a política tributária adotada pelo Estado, que permite a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Significa dizer que se a reparação do eventual dano tem o condão de fazer cessar ou impedir a persecução do indivíduo que tenha perpetrado uma das condutas puníveis pelo artigo 1o da Lei nº 8.137/90, não faria sentido processá-lo criminalmente antes da estabilização do lançamento e da opção de quitar seu débito.

Se levada ao pé da letra, a Súmula Vinculante nº 24 impede qualquer tipo de ato da persecução penal antes do término do processo administrativo tributário, já que antes do lançamento definitivo do tributo não haveria a subsunção dos fatos ao elemento normativo do tipo: tributo. No entanto, como bem destacou o então Ministro do STF Joaquim Barbosa na discussão sobre a proposta da Súmula, era clara a tendência à obsolência do enunciado e a necessidade de revisão do seu significado.

Atualmente, a única possibilidade de compatibilizá-la com a sistemática do ordenamento é entender que a conclusão do processo administrativo seria um instrumento para provar essa existência de maneira cabal, mas que os primeiros atos de documentação do lançamento já configurariam elementos de prova da existência do crime.

Nesse sentido, o desenrolar do procedimento administrativo fiscal tem uma efetiva função comprobatória. Nos termos da tese desenvolvida por Rogério Taffarello, o lançamento definitivo estaria para o delito de sonegação fiscal assim como o exame de corpo de delito está para um crime de lesão corporal.[3] Trata-se da prova da materialidade, que configura a justa causa para a ação penal nos crimes tributários.

Portanto, na maior parte dos casos, o processo penal será inútil e a condenação difícil antes do término do processo administrativo fiscal.[4] No entanto, esse não deve ser um impedimento absoluto para qualquer início de investigação por sonegação. Há casos em que o início da persecução penal é possível e necessário, ainda que não tenha sido concluída a fase administrativa.

É possível imaginar situações em que a existência do crédito é quase certa, havendo dúvida apenas quanto a seu valor. A quantidade de elementos informativos sobre o contexto delituoso atinge um standard satisfatório de “causa provável” mesmo sem o término do procedimento de lançamento. Em geral, esse contexto será observado quando houver mais de um crime praticado em concurso e quando a investigação criminal já tiver sido iniciada por algum outro fato.

Por exemplo: se uma organização criminosa pratica o delito de sonegação fiscal e também o de lavagem de dinheiro. Considerando que o processamento da lavagem independe da condenação pelo crime antecedente (e que também temos a organização criminosa figurando nessa função), teríamos uma situação em que a persecução da lavagem do dinheiro produto de sonegação seria deflagrada não apenas antes da condenação, mas do próprio término do processo administrativo fiscal.

Nessas circunstâncias, o caminho natural em que a autoridade administrativa promove a notícia crime para o órgão acusatório ou polícia judiciária é alterado e os fatos geradores são descobertos no contexto de uma persecução penal sobre outros delitos. Imagine-se uma investigação sobre corrupção na qual é feita uma colaboração premiada. Um processo penal já pode estar em andamento quando a Receita Federal é chamada para efetuar o lançamento dos tributos devidos naquele contexto fático que, claramente, envolveu a supressão dolosa de tributos. Faria sentido separar a persecução penal de crimes cometidos em concurso e não permitir a barganha com relação aos delitos fiscais também?

A autorização do início da persecução penal em momento anterior ao término do processo administrativo fiscal em circunstâncias excepcionais tem diversas vantagens. Em primeiro lugar evita que o acusado seja submetido a dois processos diversos, concentrando os custos psicológicos e financeiros decorrentes da condição de investigado e réu. Ainda, estar-se-ia homenageando a decisão da ADI 1571/DF, segundo a qual a atuação do Ministério Público não deve ficar condicionada à representação fiscal para fins penais do órgão administrativo. Seria, também, uma forma de maximizar a eficiência do processo penal, realizando os atos instrutórios em momento mais próximo da ocorrência dos fatos investigados, além de acautelar o patrimônio para a reparação do dano.

Mais sensível é a decisão sobre a possibilidade de propositura da denúncia que exige um standard probatório mais consistente do que o necessário para o início da investigação e para o deferimento de meios de obtenção de prova invasivos.  No entanto, parece coerente não segregar a ação penal sobre os fatos conexos respeitando os princípios que inspiraram a previsão do artigo 76 do Código de Processo Penal e considerar possível a propositura da denúncia e o requerimento de medidas cautelares patrimoniais desde que atingido o mínimo suporte probatório, ou seja, a justa causa. Não se trata da prova além de dúvida razoável que se exige para a condenação, a qual dependeria do término do processo administrativo fiscal.[5] Trata-se apenas da propositura e eventual recebimento da denúncia com vistas a assegurar a eficiência do processo em casos excepcionais, evitando a perda de elementos de prova, o retrabalho (economia processual), o risco ao patrimônio e a prescrição dos demais crimes.

Partindo do pressuposto que eficiência consistiria em obter os melhores resultados com a máxima garantia dos direitos individuais e coletivos envolvidos, é patente que a insistência da interpretação e aplicação literal da Súmula Vinculante nº 24 do STF desconsidera a própria eficiência que deve pautar a atuação do poder público, pois permite que o fator tempo prejudique e às vezes inviabilize o resultado de apurar os fatos da melhor maneira possível (até como filtro de acusações infundadas) e, se for o caso, promover a reparação do dano da vítima. Isso sem mencionar a incoerência de eleger o erário como bem jurídico relevante ao mesmo tempo em que se permite a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo a qualquer tempo.

A alteração da redação da Súmula é uma possibilidade para estabelecer a regra segundo a qual a existência da justa causa é indispensável para o início da ação penal por crime tributário. Essa justa causa, em geral, dependerá da decisão definitiva do processo administrativo fiscal. Todavia, também deve ser prevista a possibilidade de, excepcionalmente, a justa causa ser atingida em momento anterior, notadamente nos casos em que a investigação anterior sobre outros crimes revelar a ocorrência da sonegação como certa, restando apenas a definição do valor.

A solução mais racional, entretanto, talvez seja a inserção dessas regras, bem como a pormenorização de seus efeitos (sobre a prescrição, por exemplo), na forma de novos artigos da Lei nº 8.137/90. Assim, seria criado um microssistema de processo penal tributário no ordenamento jurídico brasileiro com limites bem estabelecidos de modo a assegurar a eficiência da persecução, incluindo a segurança jurídica e garantia dos direitos fundamentais do investigado ou acusado por essa modalidade de crime.

 

Este artigo é parte integrante da iniciativa “Crimes Contra Ordem Tributária: Do Direito Tributário ao Direito Penal”, coordenada por Gisele Barra Bossa (FDUC, CARF) e Marcelo Almeida Ruivo (FDUC, FEEVALE).

Organização Executiva: Luiz Roberto Peroba e Mariana Monte Alegre de Paiva (Pinheiro Neto Advogados), Eduardo Perez Salusse (Salusse, Marangoni, Parente e Jabur Advogados), Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos (Barros de Arruda Advogados) e Alexandre Wunderlich (Alexandre Wunderlich Advogados).

 

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[1] Ver STF – 1ª T. – ARE 936.953 – relator Min. Roberto Barroso – j. 24.05.2016. os precedentes referem-se a indícios da prática de outros delitos de natureza não fiscal.

[2] Curty, Leonardo Menezes. Aos 44 anos, o processo administrativo fiscal em terapia: a crise da meia idade do PAF e o existencianlismo como vetor para sua solução. Disponível em: https://jota.info/colunas/contraditorio/aos-44-anos-o-processo-administrativo-fiscal-em-terapia-20022017. Acesso em 17.11.2017.

[3] Taffarello, Rogério Fernando. Impropriedades da Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal e a insegurança jurídica em matéria de crimes tributários. In Franco, Alberto Silva e Lira Rafael de Souza. Direito Penal Econômico: questões atuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 323-325.

[4] Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Do chamado ‘lançamento definitivo do crédito tributário’ e seus reflexos no processo penal por crime de sonegação fiscal. In Revista brasileira da advocacia – RBA, São Paulo, v. 0, n. 1, p. 263-291., jan./mar. 2016, p. 280-283.

[5] Nesse caso, o término do processo administrativo fiscal seria questão prejudicial ao julgamento do processo.