Fabrício Sarmanho de Albuquerque

As súmulas administrativas representaram uma incrível vitória do administrado, que sempre exigiu do Estado uma previsibilidade, em nome da segurança jurídica. Frutos de uma clara atitude de self restraint, essas súmulas precisam de um critério objetivo de aplicação, dentro de uma lógica proposicional. O subjetivismo na sua aplicação levaria à sua total ineficiência.
Diferentemente das súmulas dos tribunais, que apenas sintetizam os precedentes da Corte, as súmulas administrativas são normas em sentido estrito, que se tornam vinculantes pela edição de portarias, atos administrativos normativos. A Advocacia-Geral da União (AGU), por exemplo, edita súmulas, nos termos da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp73.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lei Complementar n. 73/1993</a>, que podem gerar sanções no caso de descumprimento.
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos?utm_source=Banner%20Tributos&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Súmulas buscam estabelecer formulações lógicas simples que sintetizam julgados complexos, reproduzindo no enunciado o extrato das conclusões dos julgamentos que as inspiraram. Segundo o art. 926 do Código de Processo Civil (CPC), os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência para mantê-la estável, íntegra e coerente, sendo que, ao editar enunciados de súmulas, devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a submissão às súmulas foi uma grande vitória dos contribuintes e a previsão regimental que torna obrigatória a sua observância não configura uma repressão ditatorial ao livre convencimento dos julgadores. Essa previsão impede que a administração pública desrespeite as súmulas administrativas que editou, situação que deixaria o contribuinte em posição de extrema insegurança jurídica.
Mas, como impedir que um agente público, como um auditor-fiscal ou um conselheiro, afaste indevidamente uma súmula administrativa vinculante por meio da justificativa hermenêutica? É isso que tentaremos responder.
O primeiro passo consiste em guiar a interpretação da súmula segundo a tônica de seus precedentes. A Súmula Carf número 11 estabelece que “Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”. O primeiro acórdão citado pela súmula é o de número 103-21113, que prevê em sua ementa que ”havendo a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, não ocorre a prescrição”. Essa afirmativa justificou todos os outros nove acórdãos que constam da súmula e também representa o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (vide REsp 840.111, dentre outros).
A lógica da súmula é clara. Se a administração pública está impedida de exercer sua pretensão, pela suspensão da exigibilidade do crédito, não pode ser apenada com a prescrição, que alcança apenas aqueles que, podendo, se quedam omissos e "dormem no ponto” (dormientibus non succurrit ius). Em termos de lógica proposicional, estamos diante de uma fórmula muito simples de “implicação”, também chamada “condicional”:
Se A, então B. Ou (A-&gt;B). Ou “A implica B”
Se o crédito está suspenso -&gt; então não há decurso de prazo prescricional
Transformamos, dessa forma, os pressupostos da súmula Carf número 11 em uma formulação lógica bem simples, que pode ser objetivamente analisada. Para a lógica proposicional, se tivermos uma situação em que A é verdadeiro e B é falso, chegamos a uma negação da proposição. Em outras palavras, se chegarmos a uma situação em que o crédito está suspenso, mas o prazo prescricional continuou a correr, nós violamos essa simples proposição condicional.
O <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6759.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%206.759%2C%20DE%205,que%20lhe%20confere%20o%20art." target="_blank" rel="noopener noreferrer">Decreto nº 6.759/2009</a> (regulamento aduaneiro) em seu art. 768 estabelece que “a determinação e a exigência dos créditos tributários decorrentes de infração às normas deste Decreto serão apuradas mediante processo administrativo fiscal, na forma do Decreto nº 70.235, de 1972”, norma específica que afasta as normas gerais de processo administrativo. Por tal motivo, as multas aduaneiras ficam com exigibilidade suspensa durante o trâmite dos processos no CARF. Sendo assim, aplicando nossa fórmula (A-&gt;B), se a instauração do contencioso administrativo nas multas aduaneiras suspende a exigibilidade do crédito (A), então não há decurso de prazo prescricional (B).
Agora passamos a um segundo passo, que consiste em saber até que ponto o aplicador da súmula está fazendo uma distinção (distinguishing) e a partir de que momento ele já está discordando da súmula, momento no qual deve propor a superação ou a revisão do enunciado (overruling). Entendemos que a lógica proposicional também define com clareza essa linha divisora. E para isso verificaremos três situações possíveis.
A primeira situação é aquela em que o julgador encontra um caso concreto em que o pressuposto (A) está presente, motivo pelo qual ele aplica (B). Seria o caso em que um julgador, entendendo que se as multas aduaneiras possuem a previsão de suspensão de exigibilidade (A), exatamente igual à dos créditos tributários (usando expressamente Decreto n. 70.235/1972, em substituição à Lei 9.784/1999), deve ser aplicada a assertiva (B), segundo a qual não há transcurso de prazo prescricional. Aqui a súmula Carf nº 11 será aplicada às multas aduaneiras, situação que prevaleceu por décadas no Carf, em julgamentos sempre unânimes.
A segunda situação é aquela em que o julgador se depara com um caso concreto no qual o pressuposto (A) não está presente. Vamos imaginar que em uma situação hipotética houvesse um crédito XYZ que, mesmo submetido ao rito do processo administrativo fiscal (PAF), não estivesse, por qualquer motivo, sujeito à suspensão da exigibilidade. Nesse caso, valendo-se da prerrogativa do distinguishing, caberia ao julgador dizer que, apesar da literalidade da súmula Carf nº 11, naquele caso concreto não está presente o pressuposto dos julgados que a inspiraram. O julgador, então, deixaria de aplicar a súmula porque o texto literal do enunciado não deve ser aplicado cegamente.
Para que fique mais claro, vamos dar um exemplo recente em que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou distinguishing. A súmula 693-STF diz que “não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada”. A proposição lógica que motivou a súmula é aquela segundo a qual não cabe HC em situações que não envolvem violação à liberdade de locomoção (superação da Doutrina Brasileira do HC, de Ruy Barbosa). No julgamento do RHC n. 194952, em 13.4.2021, porém, a 2ª Turma do Tribunal aceitou o remédio, mesmo tratando-se de discussão sobre multa, por entender que naquele caso ela poderia afetar a progressão do regime prisional, interferindo diretamente na liberdade. Trata-se de claro distinguishing, pois a hipótese concreta não se adequa à fórmula proposicional encontrada na súmula.
A terceira e última situação é aquela em que o julgador discorda do enunciado lógico extraído dos precedentes da súmula. O intérprete entende que (A) não implica, necessariamente (B), pois há alguma exceção (C) que contraria a proposição lógica e mesmo assim é verdadeira. É o caso daquele julgador que entende, por exemplo, que a Lei n. 9.873/1999, que prevê a prescrição intercorrente para ações punitivas gerais, regidas pela Lei n. 9.784/1999, também poderia ser aplicada às multas aduaneiras, apesar da suspensão da exigibilidade do crédito. Esse julgador está concluindo que a formulação lógica da súmula (A-&gt;B) está falsa e precisa ser revista, pois houve uma quebra naquilo que a lógica proposicional chama de "tabela da verdade”. Nesse caso, o julgador ultrapassou a linha divisória, deixando de fazer distinguishing e passando a desejar que ocorra o overruling, que no caso das súmulas Carf tem um rito adequado no Ricarf (art. 74).
Em síntese, se surge um caso em que, apesar do rito do PAF, não há a suspensão da exigibilidade, estamos mesmo diante de uma situação de distinguishing. Mas se temos a convicção de que nem sempre a suspensão da exigibilidade impede que haja prescrição intercorrente, pois há exceções no caso de ações punitivas, estamos defendendo a revisão da súmula, e não fazendo uma simples distinção em caso concreto.
<blockquote class="jota-article__eye">Se não estabelecermos essa linha divisória, tudo poderá ser apelidado de distinguishing, mesmo que claramente não o seja.</blockquote>
Finalizando nosso estudo, passamos a duas breves questões práticas. A primeira diz respeito ao tal “crime de hermenêutica”. Renomados juristas consideram um absurdo tolher os conselheiros da possibilidade de discordarem das súmulas e votarem pela sua superação. Quando assim se pronunciam, porém, estão utilizando a sistemática judicial, em que os Tribunais primeiro superam os textos sumulados e depois se reúnem para ajustar o enunciado, reformando ou cancelando. Isso aconteceu recentemente, no dia 13.4.2021, quando o STF, julgando o MS n. 35.410, proibiu o Tribunal de Contas da União (TCU) de realizar controle de constitucionalidade, superando a súmula 347, editada em 1963. Como de costume, o Tribunal primeiro supera o entendimento e um dia, quem sabe, irá reunir a Comissão de Jurisprudência para atualizar a súmula (art. 32, IV, do RISTF). A súmula 690-STF, por exemplo, foi superada no julgamento do HC 86.834, em 2006, mas até hoje não foi formalmente cancelada.
No contencioso administrativo isso nunca poderia acontecer, pois o Carf é um órgão da própria administração pública, que em hipótese alguma pode começar a desrespeitar suas próprias súmulas, deixando para um futuro remoto a atividade de atualização. As súmulas administrativas, no caso do Carf, orientam os administrados e são uma garantia para os planejamentos fiscais das empresas, por exemplo. Nunca poderia a fiscalização deixar de aplicar uma súmula favorável ao contribuinte, entendendo que está aprimorando a hermenêutica, para só depois sugerir uma atualização do texto sumular.
<blockquote class="jota-article__eye">No caso do Carf, o art. 74 do Regimento Interno confere ao Pleno o poder de revisar ou cancelar as súmulas, depois de provocado pelas confederações, por exemplo. Assim, dentro da sistemática própria do contencioso administrativo, é preciso que a prática saudável do overruling seja direcionada primeiro ao Pleno, para só então produzir efeitos nas turmas ordinárias.</blockquote>
E essa diferença tem uma clara razão de ser. As súmulas administrativas do Carf são normas tributárias. Aprovadas por Portaria do Ministério da Economia, quando vinculantes, elas se tornam, nos termos do art. 100 do CTN, normas complementares. Sendo atos normativos, a desconsideração de enunciados de súmula em julgamentos nas turmas ordinárias, sob o fundamento de que estão ultrapassados, violaria o próprio princípio da legalidade e quiçá a súmula Carf nº 2.
A segunda questão prática também exige uma análise a partir das peculiaridades do PAF. Há quem defenda que há uma diferença entre se permitir o debate da aplicação da súmula 11 do Carf, em declaração de voto, e efetivamente se afastar a súmula, agora no julgamento de mérito. Defendem que nunca se poderia impedir um conselheiro de discordar da súmula nº 11, ainda que no final o veredito seja pela manutenção da súmula.
Acontece que, nesse caso, a preliminar de conhecimento da matéria e o mérito se confundem. Salvo em um caso extremo de bipolaridade, nenhum conselheiro que em preliminar processual de conhecimento da matéria entenda haver peculiaridades para excluir a aplicação súmula nº 11 votará, na questão de mérito, contrariamente à sua convicção. Aqui o debate nos faz lembrar uma antiga temática do recurso extraordinário perante o STF, no qual ao conhecimento do recurso extraordinário por violação direta à constituição antecipa a própria discussão de mérito. Conhecimento e mérito, nesses casos, se confundem.
É importante, por fim, destacar que a aplicação de lógica formal à lógica jurídica não exclui valorações pós-positivistas. Como bem traduz PERELMAN, em seu Lógica Jurídica (Martins Fontes, 2000), “nada impede, no final das contas, que o raciocínio judiciário seja apresentado sob a forma de um silogismo, mas tal forma não garante, de modo algum, o valor da conclusão”.
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PL do carf

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JOTA

Súmulas administrativas são normas em sentido estrito, que se tornam vinculantes pela edição de portarias 

Súmula 11 do Carf: quando termina o distinguishing e começa o overruling?

Súmulas administrativas são normas em sentido estrito, que se tornam vinculantes pela edição de portarias