Fabrício Sarmanho de Albuquerque

Os processos que discutem infrações aduaneiras são julgados segundo o rito do Decreto n. 70.235/1972, que, segundo sua própria ementa, “dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e dá outras providências”. Em suma, o rito do processo administrativo fiscal (PAF), por disposição legal (art. 768 do Decreto n. 6.759/2009), também é utilizado na análise contenciosa de créditos não-fiscais, como de multas aduaneiras.
Até março de 2021, a Súmula 11 do CARF era reiteradamente aplicada aos processos de multa aduaneira, por votações unânimes, talvez até pela clareza do seu texto:
“Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.” 
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Cabe lembrar que a referida Súmula se tornou vinculante, nos termos da Portaria MF n. 277/2018. Em certo momento, porém, começou-se a debater a possibilidade de realização de distinguish para determinar a não aplicação da súmula em situações como a da multa aduaneira. Quem defende essa prática afirma que se a Súmula não se subsome a uma hipótese, deixar de aplicá-la não é uma violação, mas mero distinguish. E essa afirmativa me parece totalmente correta nos casos em que há dúvida sobre o alcance da Súmula.
Para que tenhamos essa possibilidade, portanto, é preciso que o alcance da Súmula não seja algo unívoco. É necessário que a subsunção da Súmula ao caso concreto esteja em uma zona cinzenta.
Segundo o eminente articulista Carlos Augusto Daniel Neto em sua publicação “É hora de refletir sobre a Súmula nº 11 do Carf”, a necessidade de se fazer essa distinção repousa em dois principais fundamentos:
<ul>
<li>A Súmula 11 do CARF não se aplicaria a processos de créditos não tributários, pois foi aprovada a partir de julgamentos do antigo Conselho de Contribuintes que apenas abordaram créditos tributários;</li>
<li>Seria aplicável, à espécie, a previsão do art. 1º da Lei n. 9.873/1999, que prevê a prescrição intercorrente de 5 anos em ações punitivas da Administração Pública Federal.</li>
</ul>
Vejamos se essas premissas devem prevalecer. Com todo o respeito ao nobre autor e colega, pensamos que não.
Em primeiro lugar, cabe registrar que as súmulas do antigo Conselho de Contribuintes foram reanalisadas pelo Pleno do CARF em 08.12.2009 (vide Portaria CARF n. 49, de 01.12.2010). Naquela ocasião, apenas as que se adequavam à composição do recém-criado CARF foram mantidas. Os precedentes que basearam a edição da Súmula 11 tratam de temas que eram abordados pelos 1º e 2º CC e só por isso não incluíram questões aduaneiras. Mas isso não é relevante para o tema que essa Súmula aborda, como veremos.
As súmulas, como bem aduz Carlos Daniel, precisam ser lidas a partir dos precedentes que a embasaram. E a leitura dos dez acórdãos que basearam o enunciado deixa claro que a Súmula 11 do CARF excluiu a prescrição intercorrente no PAF por um motivo muito simples: a suspensão da exigibilidade do crédito com a instauração do PAF.
Seis dos dez acórdãos (103-21113, 104-19410, 104-19980, 105-15025, 203-04404 e 201-76985)  falam expressamente que não existe a prescrição intercorrente porque a exigibilidade do crédito fica suspensa no PAF. Os outros quatro acórdãos (107-07733, 202-07929, 203-02815 e 201-73615) são mais sucintos e apenas falam, de forma lacônica, que a jurisprudência do Conselho não admite a dita prescrição em PAF, sem entrar muito em detalhes. Nenhum dos acórdãos, porém, liga a inexistência de prescrição intercorrente à natureza tributária do crédito exigido.
Os acórdãos que fundamentam a Súmula, portanto, aplicam o Princípio da Actio Nata, segundo o qual o prazo prescricional somente se inicia quando a pretensão pode ser exercida. Isso decorre da essência de qualquer prazo prescricional, que se baseia na ideia de que o Direito não socorre quem dorme - dormientibus non succurrit jus.
<blockquote class="jota-article__eye">Se o titular do direito não está omisso em exercer sua pretensão, mas apenas impedido de agir por conta, por exemplo, da suspensão da exigibilidade do crédito, não é possível o transcurso de qualquer prazo prescricional.</blockquote>
O Superior Tribunal de Justiça, ao tratar da prescrição intercorrente no PAF, assim se pronunciou no REsp 840.111, julgado em 2009 (trecho da ementa, com grifo nosso):
“(...)não se poderia aduzir à prescrição intercorrente, pela suspensão da exigibilidade do crédito tributário, porquanto não há como se prescrever algo que não se pode executar, sendo certo que o PAF (Decreto 70.235/72) nunca aventou a possibilidade de prescrição intercorrente (...)”
O STF também reconhece o Princípio da Actio Nata em incontáveis precedentes, inclusive para determinar que o transcurso da prescrição na ação penal por crime contra a ordem tributária fica suspenso enquanto dure o processo administrativo fiscal (HC 81.611, julgado em 2003).
Na própria Constituição Federal, quando uma Casa Legislativa decide suspender o trâmite de ação penal contra parlamentar, a consequência é a suspensão da prescrição da pretensão punitiva (art. 53, § 5º).
Sendo assim, entendemos que não é possível realizar distinguish para afastar a Súmula 11 do CARF nos processos de infração aduaneira. O cerne da referida Súmula nunca foi o caráter tributário ou não do crédito em discussão. O espírito da Súmula, extraído dos seus precedentes, é o de não aplicação de prescrição intercorrente quando há processo administrativo que suspenda a exigibilidade do crédito. Se essa suspensão de exigibilidade ocorre nos processos de qualquer natureza - tributária ou não -, não há dúvida razoável quanto à incidência da Súmula.
Deixar de aplicar a Súmula em situações nas quais o PAF suspende a exigibilidade do crédito não tributário significa afastar a Súmula na sua essência, na sua própria razão de existir. Com um profundo respeito à opinião contrária, não consigo ver margem para dúvidas quanto à subsunção do enunciado da Súmula, nesse caso específico.
Superada essa parte, cumpre verificar o segundo fundamento, de aplicação do art. 1º da Lei n. 9.873/1999 às multas aduaneiras. Para isso, precisamos revisitar o Princípio da Actio Nata. Esse princípio nos mostra que há uma clara antinomia entre (a) o Decreto Lei n. 70.235/1972 c/c art. 151, III, do CTN, que determina a suspensão da exigibilidade do crédito e (b) a norma da Lei n. 9.873/1999, que prevê prescrição intercorrente em ações sancionatórias. Ou se tem a prescrição intercorrente ou se tem a exigibilidade do crédito. As duas normas não conseguem conviver de forma harmônica.
Temos, então, um conflito aparente de normas que envolve (a) regra geral sobre ações punitivas da Administração Pública Federal (Lei n. 9.873/1999) e (b) regra específica para as infrações aduaneiras (Decreto-Lei n. 70.235/1972 c/c 151, III, do CTN). Aplicando-se o preceito segundo o qual lex specialis derogat generali, deve prevalecer a suspensão da exigibilidade das multas aduaneiras, afastando-se a regra geral de prescrição intercorrente em ações punitivas.
No caso, porém, de o CARF ou o Poder Judiciário inverterem essa lógica, o que admitimos ad argumentandum tantum, e determinarem a aplicação de prescrição intercorrente em processos de multa aduaneira, imagino que a Secretaria da Receita Federal do Brasil e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional se verão obrigadas a reconhecer que não mais se aplica a regra de suspensão da exigibilidade, o que levará à execução imediata de todas as multas aduaneiras já aplicadas, podendo impactar significativamente no setor de comércio exterior. Essa será uma decorrência direta do fato incontestável de que a suspensão de exigibilidade e o transcurso de prazo prescricional não coexistem, em nenhuma hipótese, por um imperativo lógico.
A pergunta que fica é: será que vale mesmo a pena inverter essa lógica?
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=WAU2xWiR5DQ&list=PLfhZjWODW9JVuLFe6U_ulxCduBHTeECHC&index=1
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carf

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JOTA

Começou-se a debater a possibilidade de realização de distinguish para determinar a não aplicação da súmula nessas situações

Súmula 11 do CARF e sua aplicabilidade às infrações aduaneiras

Começou-se a debater a possibilidade de realização de distinguish para determinar a não aplicação da súmula nessas situações