Marcelo Veiga Franco

O Projeto de Lei (PL) nº 4441/2020,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), avança substancialmente na proposição de uma nova disciplina para o procedimento da ação civil pública.
Dentre os temas de relevância ou inovação legislativa dispostos no PL, é possível realçar a previsão de: critérios de aferição da adequação da legitimidade para a propositura de ação civil pública (art. 6º, §§1º a 5º); técnicas de adequação e efetividade da competência para processamento e julgamento (art. 7º); decisão de saneamento e organização do processo coletivo (art. 19), com inspiração no instituto da certificação (certification) das class actions americanas; nova disciplina da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/coisa-julgada">coisa julgada</a> coletiva (art. 25); dispositivos específicos sobre o inquérito civil (art. 26); mecanismos de reparação fluida e de instituição de fundos (arts. 43 a 48).
<a href="http://conteudo.jota.info/aprovometro-jota"><img class="aligncenter wp-image-292714 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/aprovometro.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Uma das matérias de maior destaque do PL diz respeito à proposta de regulamentação da autocomposição coletiva. O capítulo IV, que compreende os artigos 27 a 42, prevê inúmeras disposições direcionadas ao estímulo e à normatização do emprego dos métodos de solução consensual de conflitos coletivos, tais como: formas de participação nos processos de negociação coletiva (art. 28); instituição do compromisso de ajustamento de conduta como instrumento de proteção dos direitos difusos e coletivos (art. 29) e do acordo coletivo como ferramenta de tutela dos direitos individuais homogêneos (art. 30); efeitos (art. 34), técnicas de desconstituição (art. 35), requisitos (art. 36) e execução (art. 39) dos instrumentos de autocomposição coletiva; possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais (art. 41).
Não obstante esses notáveis progressos – considerando inclusive o vácuo legislativo hoje existente sobre a temática da consensualidade coletiva –, percebe-se a ausência de dispositivos que possibilitem o controle pelo juiz da validade do instrumento de autocomposição coletiva.
Todavia, a experiência do direito americano demonstra a necessidade de previsão de técnicas de fiscalização judicial de acordos celebrados em disputas coletivas, sobretudo a fim de evitar situações dissimuladas de conflitos de interesses.
Os EUA são um dos países mais avançados na utilização das ações coletivas. No sistema jurídico americano, as class actions exercem um papel vital de reparação de danos em massa que geram prejuízos à coletividade ou a uma alta quantidade de pessoas.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Assim como a maioria dos processos individuais, também a maior parte das ações coletivas nos EUA termina com a celebração de acordo (most cases settle, most class actions settle). A prolação de julgamento (trial) é um desfecho raro. O mais comum é que a ação coletiva seja resolvida mediante autocomposição (settlement).<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Nesse contexto, um dos maiores problemas dos acordos coletivos firmados nas class actions se refere à insuficiência de técnicas adequadas de controle ou monitoramento da atuação dos representantes e seus advogados.
Especialmente nos casos envolvendo direitos individuais homogêneos, esse cenário propicia situações de conflito entre os interesses dos membros do grupo representado e as pretensões do representante da classe ou do seu advogado, ou entre os próprios interesses dos class members entre si.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Com isso, é possível que os representantes não se apresentem como efetivos porta-vozes dos class members. Em um número considerável de class actions, a representação não passa de simples ficção, uma vez que conduzida para atender a interesses particulares ou alheios à pretensão comum da coletividade ou do grupo – e muitas vezes sem que os representados sejam devidamente consultados.
Conforme previsto no Class Action Fairness Act of 2005,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> os casos de utilização abusiva das ações coletivas culminam, dentre outros efeitos, em prejuízos ou em quase nenhum benefício para os membros representados da classe.
É por essa razão que o controle judicial do andamento, do conteúdo dos acordos e das conclusões das class actions é uma garantia importante dos class members para a obtenção de um resultado justo e adequado. A fiscalização pelo juiz da legitimidade das convenções firmadas nas class actions visa a proteger os interesses dos class members e da própria coletividade, se for o caso.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">O PL 4441/2020 prevê a possibilidade do controle judicial em dois momentos: por ocasião da aferição da adequação da legitimidade para a propositura da ação civil pública (arts. 6º, §4º e 19, III) e na análise da adequação e efetividade da competência jurisdicional para processamento e julgamento (art. 7º, §2º).</blockquote>
No entanto, quanto à autocomposição coletiva, o PL se limita a dispor sobre a fiscalização pelo juiz da legitimidade dos sujeitos celebrantes (art. 31) e o controle recursal (art. 33), mas não aprofunda sobre as possibilidades de fiscalização judicial prévia acerca da validade do conteúdo do instrumento consensual ou do próprio procedimento que resulte na autocomposição coletiva.
Diante dessa lacuna da proposição legislativa, sugere-se abaixo a inclusão de dispositivos que permitam ao juiz o controle da validade do instrumento de autocomposição coletiva por ocasião da sua homologação (sugestão de acréscimos dos §§4º a 6º ao art. 32), bem como a criação de hipóteses específicas de desconstituição de acordo coletivo ou compromisso de ajustamento de conduta (sugestão de acréscimo do §2º ao art. 35):
Art. 32 (...).
§ 4º. A requerimento de qualquer colegitimado ou de parte celebrante do instrumento de autocomposição coletiva, o juiz controlará a validade do compromisso de ajustamento de conduta ou do acordo coletivo, celebrado na esfera judicial ou extrajudicial, antes ou no decorrer de processo judicial, e somente poderá homologá-lo se respeitadas as normas fundamentais do processo civil e observados os seguintes requisitos mínimos:
I – durante o procedimento de negociação ou de autocomposição coletiva, tenha sido assegurada a possibilidade da efetiva participação das partes celebrantes, inclusive dos legitimados extraordinários que tiveram o reconhecimento da adequação da legitimidade;
II – no procedimento de negociação ou de autocomposição coletiva ocorrido no decorrer de processo judicial, tenha sido assegurada a participação dos membros do(s) grupo(s) envolvidos, conforme regras previamente definidas com base no inciso VII do art. 19;
III – tenha sido demonstrado que o legitimado informou adequadamente os termos da negociação e do instrumento de autocomposição coletiva para os membros do(s) grupo(s) titular(es) do direito objeto do caso concreto, assegurando a possibilidade de manifestação;
IV – o conteúdo do instrumento de autocomposição coletiva não torne inviável, inexequível e nem imponha dificuldade excessiva à proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos objeto do caso concreto.
§ 5º. Caso o compromisso de ajustamento de conduta ou acordo coletivo tenham sido celebrados no decorrer de processo judicial, o juiz controlará a validade do instrumento de autocomposição coletiva de ofício, nos termos do §4º.
§ 6º. Apresentada a versão final da minuta do instrumento de autocomposição coletiva, o juiz, antes de homologá-lo, concederá o prazo de quinze dias para apresentação de eventuais objeções por colegitimados que detenham legitimidade adequada, salvo situação de urgência devidamente comprovada que admita a concessão provisória dos efeitos da homologação judicial.
 Art. 35 (...).
§ 2º. Além das hipóteses previstas na legislação vigente, o compromisso de ajustamento de conduta ou o acordo coletivo poderão ser desconstituídos nas seguintes hipóteses:
I – tenha sido celebrado por parte cuja legitimidade seja inadequada;
II – seja comprovado que o instrumento de autocomposição coletiva visa a ocultar situação de conflito de interesses com o grupo, em detrimento da efetiva proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos objeto do caso concreto;  
III – no caso de autocomposição coletiva extrajudicial, o procedimento administrativo tenha sido mediado, conciliado ou presidido por pessoa natural ou jurídica ou órgão que possua conflito de interesses com o grupo, ou que incorra em situação que comprometa a sua imparcialidade.
Não há dúvidas de que as sugestões acima merecem críticas, alterações, supressões e acréscimos. Todavia, espera-se que tenha sido possível alcançar o objetivo do texto, qual seja, indicar a necessidade de inclusão de dispositivos que proporcionem o adequado controle judicial da validade dos instrumentos de autocomposição coletiva.
O autor agradece aos professores Thaís Viana, Guilherme Leroy e Délio Mota Jr. pela interlocução acerca das sugestões propostas neste texto.
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2261966">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2261966</a>&gt;. Acesso em: 30 de janeiro de 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> EISENBERG, Theodore; MILLER, Geoffrey P. Attorneys’ Fees and Expenses in Class Action Settlements: 1993-2008. Law &amp; Economics Research Paper Series, New York University School of Law, NYU Center for Law, Economics and Organization, Working Paper n. 09-50, p. 2, November 2009.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GALANTER, Marc. The Vanishing Trial: An Examination of Trials and Related Matters in Federal and State Courts. Journal of Empirical Legal Studies, Cornell University Law School, Volume 1, Issue 3, p. 487, November 2004; FREER, Richard D. Civil Procedure. Second Edition. New York: Aspen Publishers, Wolters Kluwer Law &amp; Business, 2009, p. 761.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MILLER, Geoffrey P. Conflicts of Interest in Class Action Litigation: An Inquiry into the Appropriate Standard. The University of Chicago Legal Forum, University of Chicago Law School, Volume 2003, Issue 1, p. 581-583, 2003.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.congress.gov/109/plaws/publ2/PLAW-109publ2.pdf">https://www.congress.gov/109/plaws/publ2/PLAW-109publ2.pdf</a>&gt;. Acesso em: 31 de janeiro de 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MACEY, Jonathan R.; MILLER, Geoffrey P. Judicial Review of Class Action Settlements. Journal of Legal Analysis, University of Oxford, Oxford University Press, Volume 1, Number 1, p. 167-169, Winter 2009.

27948918719_e84f61c97c_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Proposta de inclusão do controle judicial da validade do instrumento de autocomposição coletiva

Sugestões ao Projeto de Lei 4441/2020

Proposta de inclusão do controle judicial da validade do instrumento de autocomposição coletiva