Pilar Martins

Nas grandes cidades brasileiras há tempos coexistem longos engarrafamentos e transportes públicos lotados. Diante disso, uma ideia é constante no debate público: onerar o uso de transporte individual para beneficiar o transporte coletivo, como já acontece em algumas cidades do mundo que adotaram o sistema de pedágio urbano, por exemplo.
Uma oportunidade de testar esse mecanismo surge no possível desenho de uma possível futura concessão rodoviária da Linha Amarela, na qual parcela do pedágio a ser cobrado pela nova concessionária subsidiaria o transporte público da cidade. Acredita-se que essa medida desenvolveria qualidade no transporte no Rio de Janeiro, tornando-o mais acessível aos cidadãos que dele dependem para deslocamento.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Afinal, o senso comum infere que, geralmente, os usuários de transportes individuais possuem maior poder aquisitivo do que os usuários de transporte coletivo e, portanto, deveriam ajudar a aumentar a qualidade do transporte ofertado àqueles mais humildes.
Embora isso se mostre verdade na maioria dos casos, é preciso estar atento para peculiaridades do caso concreto, de modo estruturar a política pública para que ela seja de fato progressiva.
Os economistas Jonathan R. Peters e Jonathan K. Kramer<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> discutem a equidade da política de preço de congestionamento instituída na cidade de Nova York<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Durante seus debates preliminares, houve a proposta de se cobrar pedágio em todas as pontes de acesso à Ilha de Manhattan e não apenas nas pontes que cruzam o Rio Hudson, ligando o estado de Nova Jersey ao lado oeste da ilha, que há tempos já são pedagiadas.
Os autores analisaram os dados sobre os usuários dessas pontes e concluíram que os residentes da cidade de Nova York que dirigem até a ilha de Manhattan pelas pontes gratuitas (sobre o Harlem River, ao norte da Ilha, e o East River, a leste) têm maior renda média do que os residentes da cidade que acessam Manhattan por meio do uso de ônibus e metrô.
Por outro lado, os residentes de outras cidades metropolitanas que usam transporte público – como os trens – para ir para Manhattan têm maior poder aquisitivo do que aqueles que vão de carro.
<blockquote class="jota-article__eye">Ou seja, cobrar pedágio de quem usa carro não corresponderia sempre a um ônus maior aos mais ricos para subsidiar o transporte dos mais pobres.</blockquote>
Portanto, uma política pública de subsídio cruzado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> no transporte urbano precisa observar com atenção quem recebe o benefício e quem paga por ele, não sendo possível generalizar que haverá uma tarifação progressiva em todos os casos.
Os aspectos técnicos e complexos do caso narrado pelos autores sugerem que, para o desenho do subsídio cruzado ter o êxito pretendido, é preciso pensar nos problemas.
Uma primeira questão consiste em (i) ter dados. É preciso identificar duas variantes essenciais: tanto o perfil dos motoristas – bem como identificar a composição do volume de veículos que trafegam em determinada via pública – bem como analisar o perfil socioeconômico dos usuários do transporte público a que se pretende subsidiar.
Esses dois componentes se tornam essenciais para que a alocação dos recursos seja feita em benefício de quem realmente é desprivilegiado, garantindo, assim, a progressividade da política pública de subsídio cruzado.
Um segundo ponto é (ii) avaliar a perspectiva operacional. Embora a ideia pareça boa, sua execução não é tão simples. A concessão rodoviária é um contrato entre o Estado e uma empresa (a concessionária), em que aquele concede à essa o direito de explorar certa rodovia, como contrapartida às obrigações estabelecidas.
A remuneração da concessionária se efetiva através da cobrança de pedágio. Portanto, quando o motorista paga a tarifa de pedágio, este dinheiro não vai diretamente para os cofres do Estado, mas sim para o cofre da concessionária. Para que parte desses recursos seja transformado em subsídio de transporte público, a concessionária teria que fazer repasses periódicos, preferencialmente para um fundo público vinculado a essa finalidade.
À primeira vista, é possível se questionar se não seria mais eficaz que o ente público determinasse que parte do valor pago a título de outorga pela concessão rodoviária fosse destinado a subsidiar o transporte público, ao invés de recolhê-lo periodicamente ao longo do prazo da concessão.
Esse montante deveria ser considerado para o cálculo da taxa interna de retorno e, consequentemente, ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, de modo que seria compensado pelos usuários no pagamento da tarifa.
Embora isso certamente facilite a operacionalização do repasse para o ente público, a depender do prazo de duração da concessão, essa técnica pode significar um dispêndio muito maior de capital pelo concessionário no ato de celebração do contrato em detrimento da diluição da saída de recursos do caixa ao longo dos anos.
Estabelecer um valor fixo adicional à outorga, a título de subsídio para transporte público significa agregar mais uma variável à matriz de risco da concessão. Afinal, o valor adicional será calculado com base numa estimativa de fluxo de veículos que pode vir ou não a ser concretizar ao longo dos anos.
Caso circulem menos veículos do que o previsto, a concessionária acabará tendo arcado com parte do subsídio. Caso circulem mais veículos, a concessionária terá um lucro maior, pois o valor adicional pago será “quitado” pela receita das tarifas antes do termo do contrato.
Por outro lado, embora possa representar um maior ônus operacional, um repasse periódico pode ter um efeito positivo em termos de accountability, tornando mais eficiente a fiscalização da concessão rodoviária. Torna-se mais um incentivo para o Poder Público manter um olhar atento à curva de demanda e receita total da concessão, já que o ingresso de recursos nos cofres públicos a título de subsídio estará diretamente relacionado ao fluxo de veículos pagantes dos períodos determinados.
Algumas experiências mundo a fora podem servir de inspiração para a utilização de subsídio cruzado como instrumento para uma maior equidade no setor de transportes.
No Japão, em 1972 foi instituído o Toll Pool System<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, uma forma de subsídio cruzado, no qual as tarifas de pedágio são estabelecidas em níveis igual para todas as rotas e segmentos da rede nacional, independentemente do custo ou níveis de tráfego no segmento específico. O objetivo dos policy makers japoneses era de que a expansão da rede fosse facilitada pelo subsídio de rotas menos lucrativas pelas receitas da mais lucrativas.
Ainda, entendia-se que a viabilidade financeira de certas rotas seria maior com a abertura de rotas conectoras e que vias expressas nacionais e urbanas trariam mais benefícios se implementadas de forma integrada.
Hoje, é amplamente reconhecido que o pooling system contribuiu enormemente para a expansão da rede viária, particularmente para a construção de rotas que seriam menos lucrativas devido à menor demanda ou ao maior custo de construção.
Contudo, havia um grande facilitador operacional no caso japonês: todas as rodovias eram construídas e operadas por empresas públicas japonesas, que contavam com a ajuda do governo para se financiar. Desse modo, o interesse público da expansão rodoviária era o que predominava, mesmo que significasse uma perda maior para uma empresa em detrimento de outra.
Outro exemplo a ser considerado é o da política de pedágio urbano nas grandes cidades da Noruega<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, onde existe cobrança aos veículos que pretendem circular dentro do perímetro urbano delas.
O país já possuía um longo histórico de utilização de receitas do pedágio na cobertura de custos de investimentos de infraestrutura quando, em 1986, foi instituído o anel de pedágio urbano em Bergen, a segunda maior cidade do país, com o objetivo de financiar um novo plano de transporte para a cidade. O governo local se comprometeu a investir anualmente, como financiamento extra, o mesmo montante arrecado pelo sistema de pedágio da cidade.
Em 1990, foi inaugurado o anel de pedágio urbano em Oslo, capital da Noruega e, além do comprometimento do Estado em contribuir com o programa de financiamento de infraestrutura, houve a determinação de se alocar 20% da receita arrecadada no investimento na infraestrutura de transporte público. Em 1991, foi a vez de Trondhein instituir seu anel de pedágio urbano.
Acredita-se que o fato de as receitas serem alocadas em novas infraestruturas de transporte e de um percentual delas ser reservado para investimento em transporte público foi fundamental para que a implantação do tão impopular pedágio urbano tivesse apoio político e popular na Noruega.
Por fim, também é interessante citar a experiência da política de preço de congestionamento implementada em 2003 na cidade de Londres<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, cuja principal motivação, na verdade, era a de reduzir o tráfego de veículos e a poluição do ar.
Determinou-se, portanto, que motoristas deveriam pagar uma tarifa fixa para circular durante o dia numa área de 21km² da zona central da cidade e que a receita líquida do mecanismo seria destinada ao investimento em transporte público.
Assim, de 2003 a 2013, 1,2 bilhões de libras foram investidas em transporte público, em infraestrutura para ciclismo e pedestres e em melhorias de rodovias e pontes. Desse montante, 960 milhões foram usados para melhorar a rede de ônibus da cidade, por exemplo.
Percebeu-se também que o investimento na infraestrutura de transportes contribuiria para o alcance do objetivo principal da medida, já que a disponibilidade de um sistema de transporte público mais confortável faria com que a população fosse mais propensa a trocar o modal utilizado para circular pela cidade, ou seja, mais um incentivo à redução do uso de carros.
As experiências relatadas permitem concluir que uma política de subsídio cruzado entre transporte individual e coletivo, pode ser um instrumento adequado para tornar o transporte urbano mais equânime. No caso do pedágio urbano, ainda traz outros benefícios, como redução de congestionamentos e de emissão de CO2.
Em concessões rodoviárias, pode ter como efeito positivo o maior rigor na fiscalização do contrato. Contudo, se faz necessário tratar a questão com seriedade. É preciso verificar se o mecanismo seria de fato progressivo no caso daquela concessão específica e aferir se a sua implementação não dificultaria a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato a ponto de afastar possíveis investidores. Não se deve considerar simples uma política pública complexa.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Apenas quem deve pagar pelo quê? Equidade vertical, subsídio de trânsito e preço rodoviário: o caso da cidade de Nova York”, em tradução livre. PETERS, Jonathan R., e KRAMER, Jonathan K. Just Who Should Pay for What? Vertical Equity, Transit Subsidy and Road Pricing: The Case of New York City, disponível em: &lt;<a href="https://www.cutr.usf.edu/wp-content/uploads/2012/08/JPT15.2Peters1.pdf">https://www.cutr.usf.edu/wp-content/uploads/2012/08/JPT15.2Peters1.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Em março de 2019, uma proposta de preço de congestionamento (congestion price) foi incluída no orçamento do Estado de Nova York, com uma tarifa de pedágio a ser definida por um conselho de especialistas até o final de 2020. Chamado de “Central Business District Tolling”, o programa incluirá a instalação de dispositivos de cobrança eletrônica de pedágio no perímetro da região central de Manhattan, ou seja, a parte da ilha abaixo da 60th Street. Seu é arrecadar, no mínimo, 15 bilhões de dólares para financiamento do MTA’s 2020-2024 Capital Program. Esse montante seria colocado num fundo de capital com essa finalidade específica e 80% dele seria usado para subsidiar o transporte público da cidade de Nova York. No entanto, diante da ocorrência da pandemia da Covid-19 e a consequente redução do uso de transporte público e aumento do uso de transporte individual, a implementação do mecanismo de preço de congestionamento, que seria no início de 2021, foi adiada. Mais informações disponíveis em: &lt;<a href="https://www.governor.ny.gov/news/governor-cuomo-and-legislative-leaders-announce-agreement-fy-2020-budget">https://www.governor.ny.gov/news/governor-cuomo-and-legislative-leaders-announce-agreement-fy-2020-budget</a>&gt;, acesso em 12 de março de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Subsídio cruzado se refere a circunstâncias em que um grupo de consumidores paga preços mais altos por um produto ou serviço em benefício de um segmento de consumidores específico.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> World Bank. Asian Toll Road Development Presentation, Chapter 11 – Japan: Expressway Network Development through Public Corporations, disponível em: &lt;<a href="https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/documents/asian_toll_road_development_program.pdf">https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/sites/ppp.worldbank.org/files/documents/asian_toll_road_development_program.pdf</a>&gt;, acesso em: 16 de março de 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> WAERSTED, Kristian – URBAN TOLLING IN NORWAY – PRACTICAL EXPERIENCES, SOCIAL AND ENVIRONMENTAL IMPACTS AND PLANS FOR FUTURE SYSTEMS, disponível em: &lt;<a href="https://www.piarc.org/ressources/documents/281,2.1-Waersted-0405C11.pdf">https://www.piarc.org/ressources/documents/281,2.1-Waersted-0405C11.pdf</a>&gt;, acesso em 16 de março de 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> LEAPE, Jonathan. The London Congestion Charge. Journal of Economic Perspectives, Volume 20, #4, disponível em: &lt;<a href="https://pubs.aeaweb.org/doi/pdf/10.1257/jep.20.4.157">https://pubs.aeaweb.org/doi/pdf/10.1257/jep.20.4.157</a>&gt;, acesso em 16 de março de 2021.

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JOTA

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