Leonardo e Silva de Almendra Freitas

Como amplamente noticiado, foi iniciado em 5 de fevereiro o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do RE 714.139/SC, leading case do Tema 745 da Repercussão Geral, que se propõe a definir, à luz do chamado princípio da seletividade, as balizas para a calibração da tributação pelo ICMS de operações com energia elétrica e serviços de telefonia.
Após o relator, ministro Marco Aurélio, ter proposto tese no sentido de que “adotada, pelo legislador estadual, a técnica da seletividade”, seria inconstitucional a tributação daqueles artigos essenciais em “patamar superior ao das operações em geral”, e antes do pedido de vista formulado pelo ministro Dias Toffoli, o ministro Alexandre de Moraes proferiu alentado voto abrindo divergência parcial, no qual desdobrou o problema analisado em 3 (três) teses, a saber:
“I. Não ofende o princípio da seletividade/essencialidade previsto no art. 155, §2º., III, da Constituição Federal a adoção de alíquotas diferenciadas do ICMS incidente sobre energia elétrica, considerando, além da essencialidade do bem em si, o princípio da capacidade contributiva.
II. O ente tributante pode aplicar alíquotas diferenciadas em razão da capacidade contributiva do consumidor, do volume da energia consumido e/ou da destinação do bem.
III. A estipulação de alíquota majorada para os serviços de telecomunicação, sem adequada justificativa, ofende o princípio da seletividade do ICMS”. 
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Como não poderia ser diferente, a abordagem muito bem desenvolvida por Sua Excelência nos convida à reflexão, especialmente por introduzir no debate uma variável com potencial de influenciá-lo decisivamente, qual seja, a aplicação conjugada do princípio da seletividade com outros critérios de matiz extrafiscal.
<blockquote class="jota-article__eye">Trata-se, sem dúvida, de fator extremamente significativo para quem se propõe a aquilatar todas as nuances da discussão e também passível de fomentar, ele próprio, segundas impressões.</blockquote>
De partida, não poderia ser negligenciado o contrapeso da opinião de Humberto Bergman Ávila, segundo a qual a “predeterminação da finalidade extrafiscal a ser perseguida”, como tudo indica ter feito o art. 155, §2º., III, da CF/88, obsta “o Poder Legislativo [de] optar por promover outro fim diverso daquele extrafiscal, constitucionalmente traçado”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
E tão ou mais incisivo é o contraponto proporcionado por Luís Eduardo Schoueri, referência obrigatória em extrafiscalidade, que, mesmo avançando na “reformul[ação] [d]o conceito de ‘essencialidade’, que deve ter duas perspectivas: o ponto de vista individual dos contribuintes e as necessidades coletivas”, pondera que o foco desta última deve ser a “garantia do desenvolvimento nacional” – meta dificilmente atingível com desestímulo do fornecimento de energia elétrica aos agentes econômicos –, e, indo além, assevera que “não parece acertado que um mesmo bem tenha alíquotas diversas, conforme a região em que seja industrializado”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Mas a principal ressalva à profícua abordagem do ministro Alexandre de Moraes está na sua – involuntária, certamente – convergência para uma lógica “binária”: a admissão de um “corte” dentro das operações com energia elétrica não implica a validação automática da tributação, nas situações não beneficiadas daquela distinção positiva, num patamar equivalente ou até mais elevado do que o de artigos notoriamente supérfluos ou mesmo nocivos, como que, aliás, parece ser a tônica da própria lição de Kiyoshi Harada transcrita pelo douto voto ora analisado.
E, nesse particular, é notável a contribuição trazida pelo Tema 80 (leading case: RE 592.145/SP, rel. ministro Marco Aurélio), cuja tese admitiu um tratamento favorecido, em termos de incidência de IPI, ao açúcar produzido, p. ex., no Nordeste e na Amazônia legal – desviando-se, assim, da linha de Luís Eduardo Schoueri. Mas a dimensão da sua ratio decidendi mais significativa para o Tema 745 não está no rebaixamento do “piso” da tributação do açúcar, mas na altura do seu “teto”, ponto vividamente abordado pelo voto então proferido pelo ministro Luiz Fux:
“(...) observando-se a Tabela de Incidência do IPI – TIPI, constata-se que a tributação do açúcar a uma alíquota que atinge o patamar de 18% não chega nem perto de tributá-lo como produto supérfluo ou não essencial, visto que, nesses casos, como ocorre com as bebidas alcoólicas, os perfumes e os cigarros, as alíquotas chegam a atingir o patamar, respectivamente, de 30%, 42% e 300%.
(...) Fosse o caso de alíquotas fixadas em patamares superiores aos vigentes para os produtos considerados supérfluos, aí sim, seria possível o controle por parte do Poder Judiciário, porém, não sendo esse o caso, descabe a esta Corte realizar juízo de valor acerca das alíquotas fixadas pelo Governo Federal, em cumprimento à determinação constitucional expressa do art. 153, §1º.”. (págs. 36-37 do acórdão)
Ora, parece dispensar demonstração a constatação de que o estado de Santa Catarina, recorrido no caso-paradigma do Tema 745, andou longe de se pautar pelo mesmo cuidado ao calibrar a “alíquota genérica” da energia elétrica, tributando-a na mesma intensidade de iates, armas, bebidas alcoólicas e cigarros.
Mas justiça seja feita: como bem evidenciado por detalhado mapeamento elaborado por amicus curiae<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, essa “seletividade às avessas” (Ives Gandra da Silva Martins) constitui denominador-comum de praticamente todas as Unidades da Federação, diagnóstico que provoca inevitável estranhamento aos termos da recente nota do Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda (ComSefaz), notadamente à enfática defesa da autonomia tributária dos Estados à vista das suas “peculiaridades”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Na verdade, essa autonomia parece suficientemente prestigiada pela tese do ministro Marco Aurélio, afinal, além de acentuar o caráter facultativo da técnica da seletividade, Sua Excelência usa um ótimo “termômetro” (= faixa sujeita à alíquota geral), também proveniente do próprio legislador, para aquilo que não foi tido como digno de (des)estímulo, critério que não poderia ser renegado no contexto do controle da distinção dos demais artigos tributáveis, em linha com o princípio do legislador coerente, já bem aplicado no Tema 337 (RE 607.642, rel. ministro Dias Toffoli).
Com efeito, quando se tem em conta que várias Unidades sequer ousaram tipificar a energia elétrica como supérflua para fins da sobretaxa de ICMS prevista no art. 82, §1º., do ADCT<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, é difícil negar que a questão diz menos com a autonomia estadual do que com o respeito ao seu próprio critério, o qual, quando posto sob uma perspectiva mais ampla e analítica, torna plausível a hipótese de que as razões da calibração objeto do Tema 745 nada têm de “nobres”, pouco se distinguindo das meramente arrecadatórias de praxe, como, inclusive, o ComSefaz parece assumir.
Assim, o enfoque alternativo do ministro Alexandre de Moraes representa um claro passo à frente para o aprimoramento qualitativo do leading case ora em gestação. Mas queremos crer que esse avanço em nada será comprometido se for acompanhado da consideração de alguns elementos ora cogitados, especialmente o esperado diálogo analítico com as linhas traçadas nos Temas 80 e 337, muito pelo contrário.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Teoria da Igualdade Tributária, 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2015, p. 68.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Direito Tributário, 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, pp. 426-427.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=606977096&amp;prcID=4307031">http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=606977096&amp;prcID=4307031#</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=755050630&amp;prcID=4307031">http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=755050630&amp;prcID=4307031#</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Em ordem alfabética: Alagoas (Lei 6.558/2004), Amazonas (Lei 4.454/2017), Ceará (LC 37/2003), Distrito Federal (Lei 4.220/2008), Maranhão (Lei 8.205/2004), Mato Grosso (LC 144/2003), Mato Grosso do Sul (Lei 3.337/2006), Paraíba (Lei 7.611/2004), Paraná (Lei 18.573/2015), Piauí (Lei 5.622/2006), Rio Grande do Norte (LC 261/2003), Rondônia (LC 842/2015), São Paulo (Lei 16.006/2015) e Sergipe (Lei 4.731/2002).

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JOTA

Ponderações sobre o enfoque alternativo do ministro Alexandre de Moraes

Perspectivas do Tema 745 do STF: ICMS, energia elétrica e Telecom

Perspectivas do Tema 745 do STF: ICMS, energia elétrica e Telecom. Ponderações sobre o enfoque alternativo do ministro Alexandre de Moraes