Flávia Maia

Não há dúvidas que a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pandemia">pandemia da Covid-19</a> provocou mudanças estruturais na vida do homem moderno em todo o mundo. Certezas foram questionadas. Planejamentos econômicos sofreram reviravoltas. A saúde pública e a própria continuidade humana foram colocadas em xeque. O vírus avassalador que rapidamente se alastrou por todo o mundo impactou as relações sociais, sanitárias, econômicas e jurídicas.
No Brasil não foi diferente. A excepcionalidade de uma pandemia gerou demandas novas, disputas inéditas e crises que tiveram que contar com o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) como um árbitro da federação.
Além da crise do vírus mundial, durante a pandemia da Covid-19 se viu uma briga entre governadores e o então presidente da República, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/jair-bolsonaro">Jair Bolsonaro</a> (PL), sobre a condução das políticas de combate à doença. As brigas entre os chefes dos executivos nas diferentes esferas perpassaram os discursos e as acusações. Os enfrentamentos chegaram ao Judiciário, em especial, ao STF, graças ao envolvimento de questões de competência e do federalismo.
Aliado a esse contexto internacional e interno, o Brasil ainda vivia uma crise da desinformação, o que atrapalhou de forma substancial o combate à pandemia. Inclusive com ataques ao próprio STF, o que colocou em risco a democracia constitucional brasileira.
Nesse quadro fático surgiu a inquietação de tentar entender como a principal Corte judicial brasileira agiu diante dos desafios da mais grave crise sanitária dos últimos anos somada a uma grave crise institucional interna impulsionada, sobretudo, pela disputa entre os entes federados pela gestão da saúde em plena pandemia. Para tentar trazer alguma resposta a essa questão foram analisados 73 julgados do STF envolvendo os conflitos de competência entre a União, estados e municípios quanto às políticas de saúde pública de enfrentamento à maior crise sanitária vivida nos últimos anos. O recorte temporal é de 2003 a outubro de 2021.
A partir da análise dos julgados, a ideia foi tentar entender se houve ou não alterações no modo de condução do federalismo brasileiro geradas pela condução das políticas públicas durante a pandemia. Na sequência, já analisando o conteúdo dos acórdãos e os argumentos dos ministros, procuramos entender se o STF optou — ou não — por dar mais autonomia aos demais entes da federação em relação à centralidade da União nas disputas envolvendo a gestão da saúde.
Uma das conclusões é que o Supremo parece estar realizando um movimento no sentido de adotar uma postura mais descentralizadora na gestão da saúde, priorizando as realidades regionais, e isso mostrou-se forte nos julgados envolvendo a pandemia.
Inclusive, ministros que comumente ficavam derrotados quanto à proteção da repartição de competências entre os entes subnacionais e a União passaram a ter as suas teses vitoriosas em relação às competências em saúde. É o caso, por exemplo, dos ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski.
Com base na amostra analisada e na doutrina, pode-se perceber que esse ensaio descentralizador não surge durante a pandemia da Covid-19. Ele começa a ser desenhado a partir de 2014 e 2015 e ganha ênfase na atuação dos conflitos envolvendo a pandemia. No início dos anos 2000, a centralidade era uma realidade. Depois, essa situação vai ganhando novos contornos. Conforme afirmam Dantas, Pedrosa e Pereira<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, verificou-se uma tendência centralista do STF até 2015, com posterior inclinação descentralizadora, como reflexo de sua função harmonizadora e não propriamente da adoção de uma descentralização focada na autonomia dos entes subnacionais.
Ou seja, o movimento descentralizador ganhou força durante a pandemia, uma situação excepcional. Além disso, os conflitos entre os entes federativos foi acirrado pelo contexto político vivenciado no país. De um lado, o governo federal, na figura do presidente da República, Jair Bolsonaro, negou a gravidade da doença e as pesquisas científicas, desconsiderando os alertas da OMS e as medidas de combate à Covid-19, o que pode ser observado nas falas antivacina e contra a quarentena e o isolamento social. O resultado foi uma total falta de planejamento e execução de políticas públicas.
Do outro lado, estados e outras agremiações sociais, como os partidos políticos, reagiram querendo respostas imediatas diante a gravidade da crise sanitária vivida pelo país. Diante da morosidade do ente central na elaboração e execução de políticas públicas concretas, do discurso anticientífico e contra as orientações sanitárias internacionais, os entes periféricos começaram a instituir regras para a contenção da doença, assim como a tomar frente em questões que historicamente ficaram na mão do ente central, como a vacinação da população.
Dessa forma, diante do contexto social, político e sanitário vivido no Brasil, o negacionismo da doença pela alta cúpula do Executivo federal e a desordem institucional na elaboração, planejamento e execução das políticas públicas de enfrentamento à Covid-19 levaram a mais disputas entre os entes federados do que até então ocorria na Corte, intensificando a judicialização de questões de saúde.
O volume de demandas nos anos de pandemia foi proporcionalmente maior do que em anos anteriores. Entre 2003 e 2021, as demandas envolvendo saúde e competências — retirando àquelas relacionadas à Covid-19 — se mostraram mais esparsas, com o mapeamento de 158 ações; já entre 2020 e 2021, foram contabilizadas 288 ações envolvendo competências, saúde e Covid-19 até outubro de 2021.
Analisando os argumentos trazidos pelos ministros na construção de suas decisões, podemos concluir que o contexto político contribuiu fortemente na tomada de decisões. O combate ao personalismo, o chamado à ciência e a tentativa de minimizar interferências ideológicas e pessoais no enfrentamento da doença foram argumentos comuns nos acórdãos.
Dessa forma, ainda não é possível cravar que a postura descentralizadora na gestão da saúde será uma tendência que a Corte seguirá para o futuro, rumo ao federalismo cooperativo. Embora o federalismo tenha aparecido na argumentação dos acórdãos, esse não era o motivo central de várias decisões proferidas pelos ministros, mas um dos argumentos. A situação excepcional da pandemia e a forma atípica de condução dela pelo ente central tiveram muita relevância na condução dos votos dos ministros. Então, por mais que os votos criem precedentes e os vinculem de alguma maneira, isso não significa, necessariamente, que a posição será mantida, exatamente porque será muito difícil uma situação idêntica ao que ocorreu durante a pandemia da Covid-19.
Com isso, se a situação da pandemia tivesse ocorrido em outro contexto político, talvez o STF não tivesse a mesma postura. Portanto, é possível inferir que os atos omissivos e comissivos de Jair Bolsonaro e sua equipe do Ministério da Saúde contribuíram nas decisões do Supremo. Primeiro porque trouxe disputas que talvez não ocorressem entre os entes federativos. Segundo porque o ente central tomou decisões baseadas em discursos anti-científicos e em discordância com as autoridades globais de saúde. Por isso, a Corte reagiu contra as ações e inações do ente central.
Tanto que o Supremo agiu rápido em definir <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-reafirma-competencia-de-estados-e-municipios-para-tomar-medidas-contra-covid-19-15042020">a competência concorrente entre os entes da federação</a>. Poucos dias depois da OMS declarar o estado de pandemia, a Corte já julgou importantes ações e priorizou as competências concorrentes e comuns frente às competências exclusivas e privativas da União. O princípio da preponderância de interesse foi um dos argumentos utilizados pelo Supremo para chegar a essa conclusão e fortalecer o conteúdo dos artigos 23, II e 24, XII, da Constituição, que dispõem sobre a competência em saúde. Assim, à União cabem as normas centrais, mas a ela não cabe criar normas tão específicas que interfiram na atuação dos demais entes federados.
Ao reforçar a repartição de competências, é possível inferir ainda que o Supremo também buscou interferir o mínimo possível nas decisões dos executivos locais em relação ao enfrentamento da pandemia. Prova disso são as negativas às reclamações que discutiam casos concretos. Na maioria dessas ações, o Supremo decidiu não decidir no caso a caso e optou para que fossem mantidas as decisões dos tribunais locais, desde que elas seguissem as diretrizes pró-descentralização em matéria de saúde trazidas em julgados como a ADPF 672 e ADI 6341.
Ou seja, desde o princípio, o Supremo preocupou-se em criar precedentes e evitar insegurança jurídica e instabilidade, ainda mais diante do quadro político e de confronto instaurado entre os entes federativos. O ministro Edson Fachin chegou a expressar essa preocupação na ADI 6341: “E, seguramente, à luz do sentido de permanência e estabilidade do que pode denominar jurisprudência, devem projetar as suas luzes para o julgamento presente, bem como significar previsibilidade e estabilidade aos julgamentos futuros”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> DANTAS, Andrea de Quadros. PEDROSA, Maria Helena Pedrosa. PEREIRA, Alessandra Lopes da Silva.Artigo: A Pandemia de Covid-19 e os Precedentes do STF sobre as Competências Constitucionais dos Entes Federativos: uma Guinada Jurisprudencial ou Mera Continuidade da Função Integrativa da Corte? RDP, Brasília, Volume 17. 2020. Páginas 1-2.

Plenário do STF

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JOTA

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