Daniel Carvalho Cardinali
Mestre em Direito Público pela UERJ. Autor do livro “A judicialização dos direitos LGBT no STF: Limites, possibilidades e consequências”. Procurador do Estado do Rio de Janeiro
O STF deve analisar nesta quarta feira, dia 28.02.2018 a possibilidade de se conferir interpretação conforme a Lei de Registros Públicos para que se reconheça a transexuais o direito de alterar o prenome e o sexo em seus registros civis, independente da realização de cirurgia de transgenitalização, diante da inclusão na pauta do RE nº 670.422 e da ADI nº 4275 que tratam do tema. Não há, é bom que se diga, qualquer garantia de que o julgamento será encerrado nesta sessão, ou mesmo sequer que os processos serão apreciados, uma vez que o tribunal tem por hábito não julgar tudo o que pauta. Existe, porém, grande expectativa de que o caso seja efetivamente julgado e decidido, colocando o STF na linha de frente da salvaguarda dos direitos das pessoas trans.
A trajetória do STF no tema, todavia, tem sido marcada tanto acertos, quanto por tropeços. Recentemente, o Ministro Luís Roberto Barroso concedeu ordem de ofício no HC nº 152.491 para determinar a transferência de duas travestis que estavam presas em uma penitenciária masculina no interior de São Paulo para um estabelecimento prisional compatível com sua identidade de gênero. Porém, na primeira vez que o tribunal se deparou com o tema, ainda em 2007, a situação foi diferente, tendo a então Ministra-Presidente Ellen Gracie suspendido a decisão do TRF4 que havia determinado à União que provesse todas as medidas aptas a possibilitar a realização pelo SUS de procedimentos cirúrgicos do processo transexualizador. A Ministra, apesar de afirmar não desconhecer “o sofrimento e a dura realidade dos pacientes portadores de transexualismo”, entendeu que a decisão configurava “grave lesão à ordem pública”, diante dos riscos para a organização administrativa e alocação orçamentária para os serviços públicos de saúde. Como se vê, não foi um início particularmente promissor1.
A segunda vez que o tema foi enfrentado pelo tribunal ocorreu em 19.11.2015, quando o RE nº 845.779 teve seu julgamento iniciado. O recurso é oriundo de uma ação de indenização por danos morais movida por uma mulher transexual impedida de usar o banheiro feminino em um shopping, e versa, portanto, sobre o direito de ser tratado socialmente em acordo com o gênero de autoidentificação. A sessão de julgamento foi marcada por sinais alvissareiros do tribunal, tendo os Ministros Barroso (relator) e Fachin votado pela procedência do pedido, e o segundo, ainda, destacado a necessidade de se corrigir os dados da autora no processo, tendo em vista que a mesma era identificada nos autos apenas pelo nome registral masculino.
Por outro lado, a sessão também revelou o desconforto de alguns Ministros em tratar do tema. O Ministro Marco Aurélio, por exemplo, se referiu à cirurgia de transgenitalização utilizando o termo “mutilação” e questionou o quanto a autora efetivamente pareceria mulher, entendendo que se fora retirada do banheiro provavelmente era porque não tinha uma aparência suficientemente feminina2, polemizando a “passabilidade” da autora e, consequentemente, as circunstâncias fáticas do caso. O Ministro Lewandowski, por sua vez, expressou preocupação de que outras mulheres poderiam sofrer constrangimentos ao utilizar o banheiro junto com uma mulher trans, dando a entender que a eventual garantia do direito poderia dar cobertura a abusos sexuais e pedofilia3. Neste sentido, o Ministro Fux questionou à advogada da autora se a sua cliente já havia se submetido à cirurgia de transgenitalização, indicando que a possibilidade de fazer uso do banheiro feminino poderia ser modulada pela circunstância de ela ter um pênis. Por fim, este Ministro terminou interrompendo o julgamento ao fazer um pedido de vista baseado em uma suposta necessidade de se escutar a sociedade sobre o tema, por se tratar de um “desacordo moral bastante razoável”, embora o julgamento tratasse de um direito fundamental de um grupo minoritário. O julgamento não foi retomado desde então.
O RE nº 670.422, cujo julgamento está previsto para esta quarta, já havia sido pautado para a sessão do dia 20.04.2017, mas, naquela ocasião, a Corte decidiu deixar o julgamento para outra oportunidade, em razão da não inclusão da ADI nº 4275 na pauta, entendendo que seria mais adequado o julgamento conjunto dos feitos, interrompendo a sessão após as sustentações orais. Todavia, o RE, isoladamente, acabou tendo o julgamento retomado em 22.11.2017, uma vez que não havia quórum para o julgamento da ação de controle concentrado. Todos os Ministros que se pronunciaram na ocasião - Dias Toffoli (relator), Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber - votaram favoravelmente ao reconhecimento do direito fundamental à possibilidade de alteração registral de pessoas transexuais, independente da cirurgia de transgenitalização. O julgamento, entretanto, acabou interrompido por pedido de vista do Ministro Marco Aurélio, relator da ADI, insatisfeito com o julgamento independente do RE.
Em que pese tudo indicar a maioria a favor dos direitos transexuais no caso, a conquista deve ser colocada sob perspectiva. Em primeiro lugar, a garantia do referido direito estará submetida a uma serie de condicionantes – como por exemplo a necessidade de processo judicial – conforme já destacado neste site por ocasião daquela sessão de julgamento. Em segundo lugar, embora não se queira diminuir a importância da conquista, ainda parece pouco diante da realidade de intensa marginalização e violação de direitos a que estão submetidas as pessoas trans no Brasil – que, como se sabe, é o pais com mais assassinatos de transexuais e travestis -, que poderia levar a indagar até mesmo a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional nesta questão.
Assim, não parece por acaso que RE nº 670.422 (alteração registral) foi menos polemizado no plenário do que o RE nº 845.779 (tratamento social). Enquanto aquele se volta a garantia de um direito “formal”, burocrático e razoavelmente especifico, a ser garantido basicamente por cartórios e juízes, este trata da garantia de um direito geral a ser tratado de acordo com o gênero de identificação é uma previsão bem mais ampla que requer a sua observância por uma generalidade virtualmente indeterminável de sujeitos, o que pode envolver uma série de consequências de difícil antecipação, inclusive processuais. Embora seja evidente que nenhum Ministro espera que a mera previsão pelo STF de um direito a ser tratado pelo gênero de identificação vai operar da noite para o dia uma transformação social que implique na superação de qualquer situação de discriminação transfóbica, uma eventual decisão arrojada poderia tornar, por exemplo, qualquer banheiro público ou provador de loja um potencial epicentro de desrespeito a um acórdão do Supremo.
A potencialidade de descumprimento, por outro lado, deve servir a atestar tão somente a intensa capacidade transformativa da referida decisão. Com efeito, “a declaração de direitos é normalmente o prelúdio de uma luta política” pelo cumprimento da decisão4, e uma declaração do Supremo detém um enorme potencial de deflagrar a transformação social. Há muito a realidade solapou qualquer ilusão de que o STF dá “a última palavra” e que decisão judicial “não se discute, meramente se cumpre”; mas o realismo não deve servir de desesperança à capacidade transformativa do Direito e do Judiciário no exercício contramajoritário da defesa dos direitos das minorias.
O STF esta quarta – e, mais intensamente, no RE nº 845.779 – tem um encontro marcado com a maneira pela qual deseja entrar para história em face do clima obscurantista e reacionário que tem marcado o contexto político nos últimos anos. O Tribunal, que nem sempre é econômico nas grandiloquentes autoproclamações de ser a última trincheira na defesa das minorias e dos direitos constitucionais em realidade, tem a possibilidade concreta de fazer casar o seu discurso com a sua prática.
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1 Pouco tempo depois, entretanto, o Ministério da Saúde baixou portaria regulamentando o processo transexualizador no SUS (Portaria nº 1.707/2008) – a matéria atualmente é disciplinada pela Portaria nº 2.803/2013. Ademais, a ACP na qual a decisão suspensa foi proferida transitou em julgado favoravelmente aos direitos das pessoas trans.
2 “A guardadora do banheiro feminino pediria que ela se dirigisse ao banheiro masculino se ela tivesse a aparência realmente feminina? Roberta Close, como você [Barroso] citou, eu não tenho a menor dúvida, seria admitida [...] Eu custo a acreditar que no caso a empregada do shopping responsável pela guarda do banheiro adotasse a postura que adotou se a aparência fosse realmente feminina, não teria direcionada, aí seria um escândalo, ela com aparência feminina entrando no banheiro masculino”. Diante deste questionamento, a advogada da autora assomou à tribuna para prestar esclarecimentos fáticos, aduzindo que a autora faz terapia hormonal e, desde os 16 anos de idade, se veste e se apresenta como mulher. O Ministro Relator inclusive apontou ter em mãos fotografia da autora para comprovar a sua qualidade de mulher “de verdade”.
3 “Eu fiquei um pouco preocupado também com a proteção da intimidade e da privacidade de mulheres e crianças do sexo feminino que estão numa situação de extrema vulnerabilidade tanto do ponto de vista físico, quanto do ponto de vista psicológico, quando estão no banheiro”.
4 SCHEINGOLD, Stuart. A. The Politics of Rights: lawyers, public policy and political change. 2ª Ed. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004, p. 123. No mesmo sentido, o autor defende que “usar as cortes para fazer as coisas acontecer no mundo real, em ultima instância, coloca o litigante vitorioso com uma ordem judicial contra aqueles inclinados a resistir" (Ibidem. p. 117).