Daniel Wei Liang Wang
Professor da FGV Direito SP
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem ganho muita visibilidade durante a pandemia de Covid-19, em particular após o início do desenvolvimento de vacinas para essa doença. A Anvisa é responsável por aprovar e monitorar pesquisas clínicas com vacinas, assim como por avaliar a evidência científica produzida por essas pesquisas para decidir se autoriza a importação, produção e distribuição desses produtos no Brasil.
Essa é uma tarefa que envolve a análise detalhada de quantidade enorme de dados em temas que exigem conhecimento científico muito especializado. Por isso, muitas vezes tem-se a impressão de que as decisões da Anvisa ou de suas congêneres em outros países são puramente “técnicas”. Porém, essas decisões, ainda que informadas por evidência científica, são opções regulatórias que frequentemente precisam equilibrar diferentes interesses na sociedade e promover objetivos conflitantes. Em outras palavras, envolvem trade-offs, com ganhos e perdas, e que, ao diminuir alguns riscos, aumentam outros.
Pode haver trade-off entre ampliação do acesso versus segurança dos usuários. Imaginemos que surjam suspeitas de que uma vacina cause efeito colateral sério, mas raro. A decisão de interromper o uso dessa vacina atrasará a campanha de vacinação, o que possivelmente levará ao adoecimento de pessoas que deixaram de ser imunizadas. Por outro lado, a não interrupção pode causar danos à saúde que seriam evitados se a agência fosse mais cautelosa. Essas decisões trágicas são frequentemente tomadas em um contexto de incertezas: Quão raro é esse efeito colateral? Ele afeta apenas grupos específicos? Foi realmente causado pela vacina?
Outro trade-off é entre rigor da análise e celeridade. Em regra, quanto maior o rigor da agência para aprovar uma tecnologia, que se traduz na exigência de mais dados e análises mais finas, mais demorado será o processo de aprovação. Porém, há situações, como a atual, em que tempo é vida, o que força mudanças no ponto de equilíbrio entre rigor e celeridade. A legislação e a regulação têm sido sensíveis a isso e há diversas medidas para a aprovação mais rápida da Anvisa para tecnologias contra Covid-19.
Uma delas é a “autorização excepcional e temporária”. Essa autorização permite a importação de tecnologias de saúde essenciais no combate à Covid-19 que não tenham registro na Anvisa, mas que possuam registro em uma das autoridades sanitárias no exterior elencadas em lei. O registro no exterior indica que o tratamento já foi positivamente avaliado por um órgão com função equivalente ao da Anvisa, o que justifica seu uso temporário até uma avaliação definitiva da agência brasileira. A autorização excepcional está atualmente prevista na Lei 14.124/21 e regulamentada na Resolução RDC 476/21 da Anvisa.
O pedido de autorização excepcional para importação da vacina Sputnik V, com base no registro do imunizante na Rússia, foi objeto de decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowski no dia 13 de abril. Por lei, a Anvisa tem 7 dias para tomar uma decisão sobre pedidos de autorização excepcional. Porém, no caso da Sputnik V, a contagem do prazo foi suspensa porque a Anvisa solicitou o relatório técnico da avaliação da vacina pela autoridade russa.[1]O relatório técnico, que ainda não foi entregue, é o documento que contém a análise dos dados relativos à segurança e eficácia da vacina realizada pela autoridade que concedeu o registro.
O estado do Maranhão, que pretende importar a Sputnik V, insurgiu-se contra a exigência da documentação (e a consequente suspensão do prazo de análise da Anvisa) e pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que fosse determinada à Anvisa a emissão da autorização excepcional para a importação do imunizante. O argumento central é que o registro no órgão russo já satisfaz os critérios legais para comprovação da segurança, eficácia e qualidade desse imunizante.
O ministro Lewandowski, ressaltando a gravidade da pandemia e a autonomia dos estados para terem seus próprios planos de imunização, acatou parcialmente o pedido. O ministro entendeu, com base na própria RDC 476/21, que o registro em agência estrangeira é suficiente para atestar qualidade, segurança e eficácia da vacina.[2] Ademais, a Lei 14.124/21 relativiza a necessidade do relatório técnico da agência estrangeira ao prever que, na ausência desse documento, o prazo para uma decisão será de 30 dias (em vez de 7).[3] O ministro, então, autorizou a importação da vacina caso a Anvisa não se manifeste dentro desse prazo de 30 dias.
Embora essa decisão liminar aparente tratar de minúcias como prazo e documentação, ela na verdade subverte radicalmente o desenho regulatório feito para a autorização excepcional de vacinas. Os trade-offs envolvidos não receberam a devida atenção nessa decisão do STF, que facilita acesso e celeridade em detrimento de segurança e rigor.
Primeiro, entender que o registro em órgão estrangeiro basta para comprovar segurança, eficácia e qualidade para fins de autorização excepcional é tratar uma condição necessária como se fosse suficiente. O registro em órgão estrangeiro é necessário para o pedido de autorização excepcional. Porém, cabe à Anvisa avaliar o rigor e os critérios da agência estrangeira antes de tomar sua própria decisão. Para isso, pode pedir “a realização de diligências para complementação e esclarecimentos sobre os dados de qualidade, de eficácia e de segurança de vacinas”. Isso inclui exigir o relatório técnico de avaliação para “comprovar que a vacina atende aos padrões de qualidade, de eficácia e de segurança”[4].
Outra inovação na decisão do STF é o entendimento de que, mesmo que o relatório técnico não seja apresentado, a importação estará autorizada caso não haja uma decisão da Anvisa no prazo de 30 dias. Portanto, a contagem do prazo não é suspensa enquanto se aguarda a apresentação do documento, o que diminui o incentivo para sua apresentação. Se ele for entregue, a Anvisa terá alguma base para avaliar e, eventualmente, recusar o pedido. Se não, ou a Anvisa concederá a autorização porque registro no exterior é considerado suficiente para comprovar segurança, eficácia e qualidade; ou a autorização excepcional será tacitamente concedida após decorridos 30 dias.
Em princípio, a Anvisa pode rejeitar o pedido mesmo sem a apresentação do relatório técnico. O simples fato de o documento não ser apresentado ou estar publicamente disponível já é preocupante. Porém, sem acesso ao relatório técnico, será difícil justificar uma negativa da Anvisa, sobretudo se firmado o entendimento de que basta o registro no exterior para se comprovar segurança, eficácia e qualidade do produto. Em outras palavras, a Anvisa provavelmente terá que aceitar a conclusão de agência estrangeira cuja prática, rigor, critérios, funcionamento e opções regulatórias são muitas vezes desconhecidos e sobre os quais o Brasil não tem nenhum controle.
Existem sérios riscos quando a atuação da Anvisa é vista quase como mera formalidade burocrática e não lhe é dada a oportunidade de certificar o perfil de um imunizante antes de ser aplicado na população.
Isso aumenta os riscos para usuários, seja por efeitos colaterais, pela perda da oportunidade de receber outra vacina ou porque a falsa sensação de proteção encoraja comportamentos mais arriscados.
A introdução de uma vacina que se mostre inadequada também pode gerar desconfiança da população em relação a toda a campanha de vacinação contra Covid-19, o que seria um desastre.
Não se trata aqui de suspeita sobre a Sputnik V ou a autoridade russa especificamente, mas cabe lembrar que a mesma regra valerá para toda vacina aprovada em qualquer das várias agências listadas em lei. É compreensível e salutar que no atual contexto haja pressa para que o maior número possível de pessoas seja imunizado. Porém, o Judiciário deve ter muita cautela antes de trazer mudanças ou abrir exceções no desenho regulatório em uma área com equilíbrios tão sensíveis.
[1] A suspensão do prazo está prevista no Art.12, § 4º, da RDC 476/21: “As solicitações de esclarecimento pela Anvisa suspenderão a contagem do prazo determinado no § 2º até que sejam atendidas.”
[2] Art. 10, § 4º, da RDC 476/21: " Os produtos importados devem ter qualidade, segurança e eficácia atestadas por meio da comprovação do registro pelas autoridades sanitárias internacionais definidas no § 1º”.
[3] Lei 14.124/21, Art. 16,§ 4º: “Na ausência do relatório técnico de avaliação de uma autoridade sanitária internacional, conforme as condições previstas no § 3º deste artigo, o prazo de decisão da Anvisa será de até 30 (trinta) dias”.
[4] Lei 14.124/21, Art.16, §§2º e 3º.