Gustavo Justino de Oliveira

A autonomia e a independência do Poder Judiciário são conquistas civilizatórias recentes, sobretudo quando comparadas à vida pregressa dos Poderes Legislativo e Executivo. Historicamente, os sistemas de justiça no mundo ganham força e musculatura à medida que o Estado de Direito Democrático, o constitucionalismo e uma Carta de Direitos Fundamentais vão se (auto)fortalecendo na ordem jurídica de um país.
Este círculo virtuoso se intensifica quando se é almejada a plena efetivação do direito de acesso à Justiça – este, em si, um direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Brasileira de 1988 – pois é justamente a existência de um Poder Judiciário autônomo e independente que confere concretude e materialidade a um sistema de justiça encorpado o suficiente para jamais deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a qualquer direito de qualquer pessoa, física ou jurídica, que esteja protegido em nossa ordem constitucional.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Ocorre que a função jurisdicional, preponderantemente exercida pelo Poder Judiciário – concebida como a tarefa de resolução dos litígios que são levados aos órgãos judicantes – não esgota as funções desempenhadas pelos Tribunais.
O Judiciário do século XXI exerce inúmeras outras funções tão relevantes quanto à de solução de conflitos, aí incluídas (a) função de política judiciária – a qual atribui norte e sustentação ao sistema de justiça como um todo, e que no Brasil é liderada sobretudo pelo STF e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – e (b) outra função obrigatória, mas dotada de essencial simbologia: sempre fazer valer as garantias materiais e processuais a todos que recorrem ao Judiciário.
Simbólica, pois como bem sustenta Boaventura de Sousa Santos, a inacessibilidade, a morosidade, o custo ou a impunidade, no limite, afetam a própria credibilidade simbólica da tutela judicial (1996).
Existem também fenômenos contemporâneos como o ativismo judiciário e a judicialização da política, que acabam por conferir ao Judiciário perfis que lhes aproximam dos perfis funcionais mais característicos do Executivo e do Legislativo.
Tudo isso é novo, e no dia a dia das Cortes esses processos vão sendo afinados e calibrados à luz das demandas sociais, as quais acabam por determinar a atuação do Judiciário em terrenos que ainda não lhe são totalmente conhecidos, ensejando por vezes uma hiperexposição e altas expectativas nem sempre muito salutares junto à sociedade.
<blockquote class="jota-article__eye">De outro lado, o próprio Judiciário por vezes se politiza demasiadamente, chegando a comprometer em tese a neutralidade que se espera seja por ele mantida para legitimamente exercer a função jurisdicional.</blockquote>
No que tange a possíveis papeis para as Cortes Constitucionais contemporâneas, ministro Luis Roberto Barroso (2019) vislumbra três principais: a) contramajoritário (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos editados pelo Legislativo e Executivo), b) representativo (necessário para atender a demandas sociais não atendidas por negligência ou omissão legislativa) e c) iluminista (por meio de suas decisões promover avanços civilizatórios e “empurrar a história”).
Dito isso, em tempos difíceis e de quase anomia em que vivemos, repleto de acentuadas polarizações políticas deliberadamente perpetradas por um presidencialismo de confronto, predomínio de radicalismos e extremismos de direita antidemocráticos, populismos e assistencialismos oportunistas, ditadura das redes sociais e fake news, entre tantas outras patologias e atrocidades desenfreadas, não seria de se espantar que é exatamente a credibilidade do Judiciário – notadamente representada por seu órgão máximo, o STF – que acabaria por se tornar alvo preferencial de fortes ataques de atores políticos que acabam por exercer não a política, mas a “antipolítica”.
Conforme Leonardo Avritzer (2020), “a antipolítica é a reação à ideia de que instituições e representantes eleitos devem discutir, negociar e processar respostas a temas em debate no país. A antipolítica constitui uma negação de atributos como a negociação ou a coalização”.
No Governo da Antipolítica, parece evidente que seus protagonistas preferirão – como de fato vêm preferindo – a via da imposição do poder, da falta de transparência, da ausência do devido processo legal, da negação do diálogo e da busca do consenso, da falácia e da desqualificação do “adversário”.
Se existe uma política na antipolítica, esta provavelmente parece ser a “política do ódio”, pois segundo Carolin Emcke (2020) “o ódio se dirige para cima ou para baixo, em todo caso sempre em uma visão projetada verticalmente contra ‘os lá de cima’ ou ‘os lá de baixo’; é sempre a categoria do ‘outro’ que oprime ou ameaça o ‘próprio’”.
Em seu conjunto, estas ações formam artilharia pesada que mira o próprio regime democrático, as liberdades públicas e garantias fundamentais, desdemocratizando o exercício legítimo do poder, em provável rumo a uma autocracia que originalmente se pretende conservadora e fundamentalista nos costumes, ao abertamente privilegiar específicas crenças religiosas que agridem frontalmente um Estado notoriamente reconhecido como laico pela ordem constitucional vigente.
E não se enganem os incautos: este plexo de condutas e atrocidades antidemocráticas nada têm de conservador. Trata-se de uma Agenda Reacionária que vai pouco a pouco espraiando seus tentáculos, estressando ao máximo e tentando erodir e corroer a muralha institucional que ao final é a única que pode conter e reprimir arrombos arbitrários desta natureza: o STF.
Não por outro motivo, Levitsky e Ziblatt (2018) identificam cooptação, ocupação e enfraquecimento das Supremas Cortes como um receituário para a implantação de regimes totalitários e ditatoriais no mundo contemporâneo.
Dessa forma, eis as perguntas que merecem ser formuladas nesse cenário: o STF encontra-se suficientemente blindado pela ordem constitucional para não sucumbir aos ataques que lhe são desferidos intencionalmente pela antipolítica? Como a Corte Suprema pode se prevenir dos riscos gerados por esta onda antidemocrática e reacionária que tomou de assalto o Brasil, assim como vem ocorrendo em outros países? O STF corre o risco de se tornar em si instituição mais conservadora e reacionária?
Pelo que pudemos acompanhar nos últimos dois anos no Brasil, instada a decidir sobre vários temas que formam a face Antidemocrática e Reacionária da Agenda Governamental que infelizmente acaba emergindo de tempos em tempos, a Corte Suprema tomou uma série de medidas de defesa da ordem constitucional, que passam aos poucos a formar uma incipiente e ainda precária Jurisprudência de Democracia Defensiva, compreendida como “aquela que visa salvaguardar e impedir que ações violentas ou baseadas em discursos de ódio – perpetrados por grupos extremistas de quaisquer matizes ideológicos – possam ameaçar ou vulnerabilizar a ordem constitucional e democrática de um país” (OLIVEIRA, 2020).
A meu ver, encaixa-se perfeitamente neste conceito o inquérito instaurado pelo STF para apuração de fake news e ataques frontais à instituição e seus ministros, tendo sido sua validade e constitucionalidade – tão controverso quanto inovador – devidamente reconhecidas em decisão do Plenário da Corte, em 18 de junho de 2020.
Porém, as investidas contra a credibilidade institucional do STF não têm origem unicamente do lado externo da Corte, mas por vezes partem do seu âmbito interno.
Exemplificando, obrigada a decidir originariamente sobre processos que envolvem corrupção praticada por autoridades, agentes públicos e empresários de todos os partidos e matizes políticos – bastante intensificada a partir do Mensalão e da Lava Jato – a Suprema Corte acabou por se desnudar demasiadamente perante a sociedade, soando muitas vezes suas decisões como erráticas ou altamente casuísticas, sobretudo porque vários ministros entendem que em temas desta natureza – bem como em outras matérias – podem decidir de modo monocrático e isolado, inclusive afrontando decisões tomadas pelo Plenário e Turmas, dando origem a uma jurisprudência destoante de seus próprios precedentes e julgados colegiados. Tais posturas individualizadas por si só enfraquecem e desautorizam a instituição do STF pelo lado de dentro, chamuscando também a sua credibilidade.
Uma conduta assumida publicamente por alguns ministros – que acaba por colocar em xeque a neutralidade que se espera de uma Corte Suprema que integram – é uma proximidade social exagerada com membros e autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo.
Nem a opinião pública, nem a sociedade conseguem avaliar como positivas posturas deste teor, talvez porque compreendidas como promiscuidade interinstitucional.
Outra atitude que por vezes recebe críticas, são certas manifestações opinativas de alguns ministros “fora dos autos”, sobre temas sensíveis e de alta voltagem política ou jurídica, matérias que muitas vezes acabam chegando ao STF para fins de julgamento, transparecendo a face “ator político” dos integrantes da Corte Suprema. Tais comportamentos pessoais, igualmente, podem impactar na credibilidade da instituição como um todo.
Em face do exposto, parece claro que o STF vem sendo chamado a se adaptar a estes ruidosos tempos contemporâneos, fazendo com que a instituição seja convidada a todo o momento a realizar um esforço de autorreflexão para se aprimorar, se fortalecer, e assim poder fazer frente aos clamores e às demandas que a sociedade pluralista de hoje lhe impõem.
Talvez uma forma de melhor se blindar é saber que sim, nestes tempos bicudos de predomínio do reacionarismo da antipolítica, o STF, como outras Cortes Supremas e Constitucionais no mundo, são foco constante de ataques antidemocráticos que visam erodir suas institucionalidade e credibilidade.
Portanto, soa mandatório ao STF desenvolver táticas de legítima defesa democrática da ordem constitucional, evitando posturas internas autofágicas, as quais no limite podem servir de estopim e de munição para ações autocráticas desestabilizadoras, o que pode desencadear tentativas de rupturas da sua institucionalidade, que nenhum bem farão ao Estado de Direito Democrático e à sociedade brasileira.
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Novo episódio do ‘<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a>‘ analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Assista:
https://youtu.be/a6M2upbiCFY
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Bibliografia:
AVRITZER, Leonardo. Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.
EMCKE, Carolin. Contra o ódio. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
BARROSO, Luis Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: papeis dos Tribunais Constitucionais na Democracia. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/especiais/contramajoritario-representativo-e-iluminista-papeis-dos-tribunais-constitucionais-na-democracia-09082019">https://www.jota.info/especiais/contramajoritario-representativo-e-iluminista-papeis-dos-tribunais-constitucionais-na-democracia-09082019</a>&gt;. Acesso: 02 de novembro de 2020.
LEVITSKY, Steven et al. How democracies die. New York: Crown, 2018.
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Necropolítica, Hiperpresidencialismo e Avanços Antidemocráticos: Democracia Defensiva e Movimentos Suprapartidários como Legítima Defesa da Ordem Democrática Brasileira. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/necropolitica-hiperpresidencialismo-e-avancos-antidemocraticos-26062020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/necropolitica-hiperpresidencialismo-e-avancos-antidemocraticos-26062020</a>&gt;. Acesso: 20 de outubro de 2020
SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento, 1996.

Manifestantes fazem protesto em frente ao STF

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JOTA

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