Ronaldo Pinheiro de Queiroz

A regra é muito clara, diria claríssima, quando a Constituição da República tornou imprescritível a ação de ressarcimento de dano ao Erário por ato de improbidade administrativa. Basta que o leitor, mesmo leigo na área jurídica, dê uma lida no seguinte dispositivo para chegar a essa conclusão:
Art. 37. (...)
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
 O § 4º criou um dever legislativo de mandado de punibilidade cível, consistente no sancionamento dos atos de improbidade administrativa, elegendo como bem jurídico a ser protegido o patrimônio público e a moral administrativa. No § 5º, o constituinte originário fez questão de ressaltar que os ilícitos criados pelo mandamento constitucional devem prescrever, ressalvadas, contudo, as ações de ressarcimento decorrentes de dano ao Erário.
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 No campo do direito sancionador, uma decorrência da segurança jurídica é a previsão de prescrição para as sanções previstas nas condutas proibidas. Isso é tão essencial e básico que não precisa que a Constituição diga que um crime ou uma infração deve prescrever, pois já está subtendido dentro da teoria geral do direito. Isso porque a infração, com o passar do tempo, deve ser esquecida pelo Estado, para garantir uma pacificação. O que deve que vir expresso na Constituição, por ser uma exceção à regra, é a imprescritibilidade. É por essa razão que o texto constitucional afirma que alguns crimes são imprescritíveis (art. 5º, incisos XLII e XLIV, respectivamente os crimes de racismo, bem como ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito), mas em nenhum momento precisou dizer que os outros devem prescrever. Pois bem. O § 5º seria absolutamente inútil, um gasto desnecessário de tempo e tinta da nossa assembleia constituinte, se fosse apenas para dizer o óbvio que não precisava ser dito: as sanções de improbidade prescrevem. A sua missão foi de ressaltar que, embora tais sanções prescrevam, as ações de mero ressarcimento ao Erário não prescrevem! Por quase trinta anos isso nos pareceu tão básico! Aliás, pareceu-nos a todos, pois a doutrina, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal eram pacificados com esse tema.
 É importante ressaltar que a escolha do constituinte sobre a imprescritibilidade do ressarcimento está técnica e politicamente correta. No plano técnico porque o ressarcimento é um dever jurídico, decorrente do âmbito da responsabilidade civil, e não uma pena propriamente dita. Embora conste no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa como uma das sanções possíveis pela violação da conduta, o ressarcimento é uma sanção apenas no sentido lato, kelseniano, mas não no sentido aflitivo, retributivo. Seria uma sanção-recompositiva, e não uma sanção-punitiva. Isso porque o ressarcimento visa à recomposição do status quo ante, de preservação/regeneração do patrimônio público lesado, tanto que a Lei 8.429/92 coloca essa situação como um dever jurídico de integral ressarcimento do dano (art. 5º). Essa exceção constitucional tem uma missão nobre, que é a de resgate do patrimônio financeiro da própria sociedade, na exata expressão de justiça restaurativa.
 Inclusive, sob a perspectiva da análise econômica do direito, em que uma norma pode gerar estímulo ou desestímulo de uma conduta pela escolha racional do seu agente, analisando os custos-benefícios de sua ação/omissão, não precisamos gastar tinta citando Richard Posner, Ronald Coase, Gary Becker entre outros pensadores para concluir que a interpretação de que o ressarcimento do dano ao Erário prescreve numa dada unidade de tempo é um grande fator de estímulo para prática de corrupção. Um simples comerciante, com conhecimento médio de economia, chega facilmente a essa conclusão.
 Como se sabe, a corrupção é um crime extremamente racional, sendo que a sua prática visa sempre lucro e prestígio. A operação Lava Jato mostrou que os grandes esquemas de corrupção no Brasil (e no mundo) movimentavam uma economia paralela bilionária e os altos lucros ilícitos e distribuição de dividendos eram a sua principal meta.
 Portanto, um mecanismo imprescindível de combate às infrações de colarinho branco, cuja meta é o ganho ilícito (com prejuízo para o Erário), é justamente sufocar o lucro indevido e recuperar o dinheiro desviado. É o que a doutrina internacional chama de estrangulamento econômico. Ora, tornar o ressarcimento ao Erário prescritível é criar um deficit de eficiência no combate à macrocriminalidade econômica, onde a lei de improbidade administrativa se apresenta como uma poderosa ferramenta quando se tem o envolvimento de agentes do Estado.
 Muitos dos ilícitos desvendados pela Lava Jato, que geraram prejuízos bilionários para o Estado, já foram ressarcidos por meio de acordos de colaboração premiada e de leniência, recompondo uma parte do rombo causado aos cofres públicos.
 Se a tese da prescritibilidade do ressarcimento estivesse valendo, considerando que grande parte dos fatos revelados na Lava Jato passam de cinco anos ou estariam prescritos no âmbito criminal, muito pouco de ressarcimento teria sido alcançado, em enorme prejuízo para o equilíbrio das contas públicas. 
 Aliás, essa tese, se vingar, vai dificultar sobremaneira as negociações financeiras em acordos penais e cíveis, pois o investigado vai querer ressarcir apenas o que não estiver prescrito (que muitos vezes será nada) e incorporar, sob a chancela do próprio Estado, todo o lucro alcançado pelo prazo prescricional, numa clara demonstração de que a corrupção valeu a pena (incentivo da norma) e que o dinheiro que pertencia a sociedade passará a pertencer “legitimamente” ao agente ímprobo.
 Mesmo diante dessas consequências nefastas, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal votou nesta quinta-feira (2/8/2018) pela fixação de prazo de cinco anos para que o Estado entre com ações para cobrar o ressarcimento de lesão ao Erário, sendo que o julgamento se encontra suspenso e será retomado na próxima semana.
 A despeito de seus precedentes consolidados (v.g., RE 608.831/SP; AI 490.944/SP; RE 542.467/MT; RE 606.224/SE; RE 574.867/MG), o STF está tendente a superá-lo (overruling) aplicando uma mutação constitucional para lá de heterodoxa. Reconhecemos que o significado de um texto constitucional não é imutável, podendo ser atualizado sempre que fatores políticos, jurídicos, culturais e econômicos alterarem o ambiente de conformação da norma jurídica (resultado da interpretação) e reclamem a construção de uma nova norma, com nova interpretação de texto.
 Bom, o cenário atual não é nada animador, já que embalado por crises política, ética e econômica sem precedentes no pós-88. Nunca se revelou tantos casos de corrupção e desvios de recursos públicos na nossa recente democracia. A instabilidade política é tamanha, que não se consegue mediar qualquer conflito. O Brasil vive um colapso econômico tão preocupante, em boa medida causado pelos esquemas de corrupção, que o povo novamente é chamado para pagar a dívida, com pautas fiscais, sociais e previdenciárias que cobram de quem não teve nenhuma relação de causa-e-efeito com o problema.
 Diante de todo esse cenário, cuja mutação constitucional deveria ser para aumentar os mecanismos de integridade do mercado e do Estado, a decisão do Supremo Tribunal Federal, se realmente chancelar a tese da prescritibilidade, vai causar grande consequência na proteção do patrimônio público (que pertence à sociedade), desestimular negociações financeiras vantajosas para o Estado em acordos de colaboração e leniência, bem como estimular a prática de atos de lesão ao Erário, que podem gerar um ganho “oficial” caso prescreva.
 O mais impressionante é que, a despeito do texto expresso na Constituição, o qual dispensa qualquer esforço hermenêutico para se concluir que o ressarcimento é imprescritível, e diante de um ambiente que demandaria maior rigor na proteção do patrimônio público, nossa Suprema Corte caminha para uma exótica técnica de controle de constitucionalidade com esquecimento de texto. É possível, inclusive, que toda essa importante discussão prescreva com o apoio de apenas onze canetas.

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JOTA

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