Justiça

A Súmula 83 e o papel fundamental do STJ na uniformização de jurisprudência

Não haveria uniformização de jurisprudência caso se admitisse a prevalência de entendimentos contrários a tribunais superiores

STJ, onde foi criada súmula 83
Fachada do STJ, que criou a súmula 83 (Crédito: flickr/stjnoticias)

Desde 1990, foram editadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) 647 Súmulas. A primeira data de 25 de abril de 1990 (publicada no Diário de Justiça em 2 de maio de 1990) e a mais recente de 10 de março de 2021 (publicada no Diário de Justiça eletrônico em 15 de março de 2021). Nesse ínterim, 23 Súmulas foram canceladas, de modo que hoje 624 permanecem em vigor.

Embora essas Súmulas não tenham caráter vinculante (vinculantes são apenas as Súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal, de acordo com as regras do artigo 103-A da Constituição Federal), elas assumem verdadeiro papel de fonte do direito. Com efeito, o artigo 489, §1º, V, do Código de Processo Civil, prevê que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Logo, não há dúvidas de que as Súmulas editadas pelo STJ merecem atenção especial.

Além de repertório oficial da jurisprudência predominante, as Súmulas funcionam como método de trabalho, já que seus enunciados configuram obstáculos para o julgamento de recursos, como vistas a ordenar e facilitar a tarefa judicante, especialmente nos casos repetitivos.

O que diz a Súmula, por que surgiu

Neste breve artigo, nos debruçaremos sobre a Súmula 83 do STJ, que dispõe que “não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

Editada em 18 de julho de 1993 e publicada no Diário de Justiça em 2 de julho de 1993, a Súmula 83 do STJ originou-se de diversos precedentes[1], nos quais a superação da divergência jurisprudencial no STJ foi utilizada como fundamento para análise da admissibilidade do recurso e, consequentemente, seu não conhecimento. Verifica-se ainda que, em alguns desses precedentes, a superação da divergência não foi considerada óbice para a apreciação do recurso especial, porém embasou os votos para o seu desprovimento no mérito.

A finalidade da Súmula pode ser extraída de algumas decisões que a precederam. Primeiramente, no voto do ministro Fontes de Alencar, no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 2.873/SP (j. 25/09/1991), é salientado que “desservem a demonstração da divergência os paradigmas de entendimento já superado pela jurisprudência da Seção respectiva” e que “essa interpretação tem por manifesto propósito poupar o Superior Tribunal de Justiça de se repetir sobre a definição quanto a prevalência de determinada tese jurídica, quando já houver anteriormente feito tal opção”.

Além disso, no julgamento do AgRg no Agravo de Instrumento nº 6.511/DF (j. 17/12/1990), o ministro Nilson Naves destacou semelhante finalidade ao considerar que a decisão do Tribunal a quo foi acertada ao inadmitir o recurso especial que, diante da superação da divergência, não teria probabilidade de êxito.

Quais situações a Súmula abrange

Nos termos do artigo 105, III, “a” a “c”, da Constituição Federal, compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida (i) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (ii) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; e/ou (iii) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

A Súmula 83 do STJ volta-se, em tese, para a última hipótese acima, prevista na alínea “c” do permissivo constitucional, mas na prática é também aplicada para obstar recursos fundamentados também na primeira hipótese acima, prevista na alínea “a” (AgRg no Agravo de Instrumento nº 1.401.587/RS, rel. Min. Herman Benjamin Araújo, j. 04/10/2011).

Em suma, a Súmula propõe que, ainda que identificada divergência de posicionamento entre tribunais a respeito de determinada matéria, não deve ser conhecido o recurso especial caso a orientação do próprio STJ tenha se firmado no mesmo sentido da decisão recorrida.

O racional para a aplicação da Súmula a recursos fundamentados na alínea “a” seria de que, ainda que não fundamentado o recurso na divergência, uma vez firmado entendimento pelo STJ no mesmo sentido do acórdão recorrido no que tange à interpretação de dispositivo de lei federal, não há que se falar em negativa de vigência (Embargos de Declaração no AgRg no Agravo de Instrumento nº 135.461/RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 18/06/1998).

Nesse sentido, obstado o seguimento do recurso especial (ou negado provimento a ele) com fundamento na Súmula, tenha sido ele interposto com base nas alíneas “a” e/ou “c”, incumbiria à parte interessada colacionar precedentes contemporâneos ou supervenientes aos referidos na decisão impugnada, de maneira a demonstrar que é outra a orientação atual da Corte Superior a propósito daquele artigo de lei; poderia ainda a parte, se fosse o caso, demonstrar a existência de distinção dos casos tratados (AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 827.751/RS, rel. Min. Og Fernandes, j. 14/05/2019, entre tantos outros no mesmo sentido).

Como vem sendo aplicada e reconhecida

Embora a Súmula tenha sido editada há quase 30 anos, seu enunciado permanece atual e continua sendo regularmente aplicado pelos tribunais inferiores e pelo STJ.

É no julgamento dos recursos especiais que o Superior Tribunal de Justiça exerce a função constitucional de guardar e de uniformizar a aplicação da lei federal. Assim, ao STJ cabe a última palavra em matéria de interpretação de lei federal e não haveria uniformização de jurisprudência caso se admitisse a prevalência de entendimentos que contrariassem aqueles assentados no Tribunal Superior. Isso não significa jamais que a jurisprudência do STJ deve ser considerada imutável, como se inscrita em pedra fosse, mas apenas que a uniformização de jurisprudência deve ser guiada de cima para baixo.

Mesmo que formado por inúmeros sujeitos, o Poder Judiciário compõe uma estrutura única, que deve ter visão uniforme sobre determinados temas. A uniformização é não só um direito do jurisdicionado, mas acima de tudo um dever do Estado, que serve essencialmente ao seu próprio interesse em manter o império de suas leis e o respeito às suas instituições.

De todo modo, cabe um alerta: a incidência da Súmula não deve obstar a avaliação, no caso concreto, da aplicação da orientação jurisprudencial, para além da mera aplicação abstrata de julgados. Ou seja, deve-se avaliar se concretamente a jurisprudência do Tribunal Superior está sendo seguida (AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 470.565/PA, rel. Min. Herman Benjamin, j. 10/03/2015).


[1] AgRg no Ag nº 6.511/DF (2ª T., j. 17/12/1990, DJ 04/03/1991); EREsp nº 2.868/SP (2ª S., j. 30/10/1991, DJ 25/11/1991); EREsp nº 2.873/SP (2ª S., j. 25/09/1991, DJ 02/12/1991); EREsp nº 5.922/RS (1ª S., j. 16/06/1992, DJ 17/08/1992); REsp nº 5.880/SP (3ª T., j. 17/10/1991, DJ 04/11/1991); REsp nº 10.399/SP (4ª T., j. 18/12/1991, DJ 24/02/1992); REsp nº 11.349/RN (1ª T., j. 14/10/1992, DJ 30/11/1992); REsp nº 12.474/SP (3ª T., j. 17/12/1991, DJ 09/03/1992); REsp nº 22.587/RJ (2ª T., j. 23/09/1992, DJ 16/11/1992); REsp nº 22.728/RS (3ª T., 04/08/1992, DJ 14/09/1992).