Carlos Melo

O jogo disputado que tem sido jogado está longe de acabar. Engana-se quem acreditou que o impeachment seria o apito final. Foi apenas o ataque que mudou de lado: centroavantes do passado dão chutões como zagueiros; o que era governo, hoje é oposição; a oposição de ontem agora pede calma e colaboração. A vida muda de ânimo e muda de lado, a vidraça vira pedra e tudo deixa os comentaristas e juízes atordoados. A urgência está colocada: 12 milhões de desempregados; metade dos grandes grupos nacionais se desfazendo de ativos. O locutor alerta: “O teeeempo pááássssa!
Diferente da defenestração de Fernando Collor, o impeachment de Dilma Rousseff não uniu, fragmentou. Não se fez por consenso, nem houve força política hegemônica, crível e respeitada, que o conduzisse: faltou um “Doutor Ulysses”, os Mários Covas deste tempo. O processo se deu mais pela estupefação escandalosa e barulhenta de uma indignação raivosa do que pela pedagogia política que requer reconstrução negociada de consensos. Houve farisaísmo: trocar o PT pelo PMDB não traz ganho moral e nem livra a cara na Lava Jato ou resolve os quiproquós políticos e econômicos num passe de mágica. Sabíamos disto.
O tempo é de reconstruir, mas falta água que sedimente a argamassa. Os novos governistas dizem que este governo é melhor do que aquele. OK. Certamente, se referem à equipe econômica, ao Banco Central, a Petrobrás, ao BNDES. É verdade. Mas há o todo: são belos olhos verdes num rosto de Quasímodo. A busca de credibilidade não se dá pela parte, se não pelo todo. Há questões de fundo: pescar a confiança necessária implica em faze-lo no mar da economia, mas também no pântano da política.
Há um déficit de clareza, no entanto: até a efetivação de Michel Temer, membros do governo pediam tempo: “a interinidade, coisa e tal... é complicado”. Agora é o próprio presidente que vai a público dizer que fará isto e aquilo; que a vida será outra. Não diz como, de que modo, com quem. Negaceia, dissimula, esconde o plano que talvez nem tenha. E com isso revela não saber exatamente como fazer o que é inevitável que seja feito.
O sistema é tão pródigo de problemas quanto pobre de bons operadores. Entrou numa dinâmica em que o conserto de um desastre implica na criação de um novo. O ciclo vicioso. O impeachment de Dilma e a recusa de sua inabilitação política, por exemplo, são casos do tipo: ou se errou ao cassá-la ou se errou ao absolve-la. A gambiarra criou como que uma anistia tosca, pessoal e restrita. O país que deveria discutir saídas se perde no aprofundamento da confusão. O rolo, agora, é constitucional e o embate, entre poderes.
Na economia, parece faltar sinceridade. Os dois últimos ministros da Fazenda realmente eficazes e respeitados, Pedro Malan e Antônio Palocci, tinham um mesmo estilo e postura: diziam a verdade e era a verdade seu dom de iludir. Iam à TV, comunicavam os reais problemas, não ocultavam as dificuldades; requeriam apoios, conquistavam a confiança. Já o atual governo parece escamotear a realidade: planta-se ilusões; tudo será simples, fácil, indolor. Já está sendo feito. A base está unida. Deus esteja!
Todo governo precisa ser otimista, é claro. Mas não pode ser mentiroso. É sua credibilidade que entra em campo; é o futuro que está em jogo.
Michel Temer carece, por exemplo, do apelo dramático – como a situação exige – tanto quanto sua antecessora carecia de serenidade, empatia e sedução. Ambos são igualmente burocráticos: ela, fruto do gueto de uma tecnocracia ideológica e anacrônica; ele, filho de conchavos e sussurros nos bastidores de um parlamento já inconfiável. Sem emoção, como falar em sacrifício, convencer das reformas, da perda geral de status quo? Prometer apenas sangue, suor e lágrimas de todos os grupos sociais exige grandeza e coragem. Desta vez, a agenda é mais impopular justamente por ser mais ampla.
De modo que os dois pronunciamentos de Temer, após tornar-se efetivo, careceram de “pegada”, efetividade, a virilidade do sujeito de virtú. Foram arrastados, sem sal, sem açúcar, sem afeto. Carisma de mais é ruim, mas de menos faz falta. (Só mesmo o PSDB, que quer se enganar, para avaliar que Temer disse o que apenas tergiversou. “Não se trata de reforma, mas de acomodação”, e outras pérolas do tipo.)
Na economia, costuma-se acreditar em “profecias autorrealizáveis.” Consiste num raciocínio simples: se todo mundo pensar que algo pode acontecer é mais fácil que de fato aconteça; certa dinâmica define a mão invisível que consuma a realidade. Muito bem: para piorar a inação basta; todos se protegem, todos se agridem, todos perdem. Mas, para um processo de melhora, a disposição e o uso da política são imprescindíveis. A vida pede ação. Inocência acreditar que algo não será apenas porque seu contrário é prenúncio de caos.
Chegou a hora dessa gente tagarela mostrar seu valor: aprumar a base política às condições reais de um estado já sem espaço para bondades fiscais, fisiologismo, clientelismo e corporativismo. Reunir forças, alinhar diagnósticos. Construir projetos de modo a recompor conjuntos capazes de encaminhar saídas levará algum tempo – um bom tempo --, mas, é preciso começar; mais tarde, maiores os custos. E que seja feito em novas bases, não em vícios.
Desde já é necessário enfrentar o conflito de interesses, já não é mais possível contempla-los; a conciliação não é alternativa e a liderança é questão de sucumbir ou não à fragmentação e à escuridão. Abrir-se ao diálogo, à busca de saídas do labirinto em que, ao mesmo tempo em que foi jogado, o país se meteu. Mais do que de Temer, o desafio é da sociedade. A voz de Fiori Gigliotti ecoa como uma praga: “...e o tempo passa, torcida brasileira”.

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JOTA

O jogo disputado que tem sido jogado está longe de acabar. Engana-se quem acreditou que o impeachment seria o apito final. Foi apenas o ataque que mudou de lado: centroavantes do passado dão chutões como zagueiros; o que era governo, hoje é oposição; a oposição de ontem agora pede calma e colaboração. A vida muda [&hellip;]

O tempo passa