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Sobre a reforma e atualização do Código Civil

Reformar e atualizar se apresenta cabível após mais de três décadas de constitucionalização e duas de codificação

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Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

Um Código Civil expressa uma visão de mundo e veicula diversas dimensões complementares da filosofia, da sociologia e do direito. É fruto do meio social, fotografando legados, tecendo soluções para o presente e refletindo seus ideais como inspiração ao trabalho hermenêutico do porvir.

Assim se deu entre nós em 2002. Pessoas, famílias, obrigações e contratos, bens, atos e negócios, propriedades e sucessões nortearam as preocupações jurídico-normativas que desaguaram na Lei 10.406.

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Cumpre estarmos atentos à sociedade mais complexa, à legislação comparada inovadora e à contribuição mais recente da jurisprudência e da doutrina.

Reformar e atualizar se apresenta cabível no Brasil depois de mais de três décadas de constitucionalização e de duas décadas de codificação. Tem sentido dar um passo à frente.

O Brasil tem a oportunidade de fazer esse notável encontro entre Código e Constituição; diversamente da experiência anterior, em 1969 (ano da criação da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil) e em 1975 (ano da remessa da Mensagem 160 ao Congresso Nacional), agora toma corpo a reforma e a atualização diante desse novo desenho do espaço público e privado: apresentar o Código Civil da democracia, da liberdade, da dignidade, da solidariedade e da responsabilidade.

Temos um exemplo a mirar. Andou bem o recente Código Civil da Argentina, de 2015, antenado com o nosso tempo e preparado com refinamento teórico. Bem se houve ali a tarefa, com as luzes da principiologia axiológica, da jurisprudência e da doutrina, nomeadamente a dignidade dos seres viventes, numa formulação de princípios que vinculam as relações sociais fotografadas pelo Direito.

Tal sentido de temperança enlaça liberdade e responsabilidade, entre o querer uma resposta e o construir um futuro possível que almeja condições satisfativas de estabilidade, coerência e previsibilidade, a rigor, de segurança jurídica e de equilíbrio e ponderação.

Nada obstante, tensões emergem. Os fatos da realidade se impõem. Transformações na sociedade, nas instituições e no Estado, a revolução tecnológica e a imperatividade dos tratados e convenções internacionais, a prevalência dos direitos humanos e fundamentais, a evolução da doutrina, da legislação e da jurisprudência, são indicações de mudanças que se projetam em diversos campos do Direito Civil.

As garantias das liberdades fundamentais e da autonomia redesenham a proteção jurídica da pessoa e da personalidade, ampliando o arco de possibilidades para a prática de atos de cunho existencial ou patrimonial. Os direitos civis subjetivos são elevados ao estatuto de direitos fundamentais. Os deveres jurídicos, a seu turno, tecem outros horizontes da responsabilidade, dentro de desafios para as liberdades.

A demanda já não é por Códigos ideais. A lei civil é hoje invocada não apenas como uma herança estrutural abstrata, e sim como paradigma funcional do sentido para o sujeito, o corpo, a terra, o meio ambiente, a economia, o serviço, enfim, para os horizontes de vida, mesmo volátil, incerto, complexo e ambíguo. Precisamente nessa linha são as lições do Ministro e Professor Ricardo Luis Lorenzetti sobre o paradigma ambiental; a Natureza está perdendo sua capacidade e resiliência, e um Código Civil não pode alienar-se dessa natureza e dessa esperança.

Um Código está dentro da história, é um texto num contexto, forte na potência simbólica que se traduz ao que é contemporâneo.

Se os códigos normativos de uma sociedade sofrem evaporação, os desígnios de justiça, liberdade e solidariedade também se exaurem. A demanda por direitos reclama hoje uma invocação de limites e adequada navegação pelas águas das possibilidades.

Daí a relevância de uma norma permeada pela força constitutiva dos fatos sociais, a exemplo das regras que acolhem as diretivas antecipadas de vontade e a tomada em conta de que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica. Por igual, o sentido da responsabilidade se realça na multifuncionalidade, alargando as disposições para a prevenção do dano e sua reparação, desiderato que se robustece nas três funções: preventiva, punitiva e reparatória de danos, não excludentes entre si.

Qualquer forma de liberdade que recuse responsabilidade não é propriamente liberdade. É apenas uma sombra dela. Esse liame entre as liberdades e as responsabilidades reclama especial atenção, nomeadamente numa recodificação civil, fazendo emergir o sentido ético da responsabilidade.

Também por essa via se reconhece o inegável valor da funcionalização dos institutos jurídicos, ordenados pela supremacia da proteção ao meio ambiente, da saúde, da livre concorrência e dos sujeitos vulneráveis. Não por outra razão, emergem plurais formas de famílias, o respeito à diversidade, as sucessões sem anacronismos, as titularidades protegidas e funcionalizadas, e os contratos com obediência às funções sociais e ecológicas, as obrigações e as empresas voltadas ao desenvolvimento socioambiental.

Impende respeitar a autodeterminação informativa, atenta à segurança no ambiente digital, ao desenvolvimento econômico e tecnológico, à inovação, à livre iniciativa, e sobranceiramente ao exercício da cidadania. Com acerto, acentuam-se aí as preocupações com a inclusão e a acessibilidade digital, a ética e a proteção integral da criança e dos adolescentes.

Desafios esses que não são ínfimos, como por exemplo aqueles derivados da neuro tecnologia diante da integridade mental e da identidade pessoal. Por isso, escorreita a análise sobre o controle de riscos. Há riscos sistêmicos, riscos em rede, riscos cumulativos, riscos catastróficos e riscos reputacionais, além dos riscos tecnológicos.

Uma sociedade de riscos produz riscos globais, intangíveis, intergeracionais, irreversíveis. O diálogo entre direito e ciência se torna ainda mais oportuno.

Mais ainda: se alçam com inegável relevo o direito à memória e à verdade desafiando o direito ao esquecimento, a circulação de conteúdos ilícitos por meio das plataformas digitais, o “transumanismo”, o acesso a dados cerebrais, a proteção no ambiente digital, a inteligência artificial, entre outros temas-ponte.

Logo, um dissenso normativo codificado é, simultaneamente, prática e interpretação, vale dizer, veicula a arquitetura jurídica extraída dos fatos sociais por meio da densificação em princípios e regras, ao mesmo tempo em que a cognição não elide um norte de transcendência do texto positivado.

Seria uma ilusão beirando o complexo de Midas almejar totalidade e completude na reforma e na atualização. Há ainda momentos de “chiaroscuro” em diversas áreas contemporâneas do conhecimento e da práxis. Sem embargo, a premissa há de ser inequívoca: servir à sociedade aberta, justa, livre e solidária, e ao Estado de Direito democrático.

O direito não é metafísica, artificial ou criado. É produto histórico-cultural, uma síntese de múltiplas determinações. O nosso país precisa chegar ao século XXI, inclusive no que concerne às empresas e às relações societárias, ao planejamento sucessório, à responsabilidade civil, e à liberdade de constituição dos vínculos afetivos.

A superação do modelo formal de contrato, a ética como elemento de juridicidade das normas comportamentais no direito das obrigações, a tessitura entre Direito Civil e Direitos Fundamentais são espelhos de searas destinatárias da atenção e do zelo nesse caminhar, a demandar atenção aos imperativos de tutela, a proibição de insuficiência e a vedação de retrocesso. Muito de reforma e mais ainda de atualização terá no Brasil o trabalho que se dedicar a incorporar a construção hermenêutica da interpretação constitucional, protagonizada pelo Supremo Tribunal Federal e, no âmbito de suas competências, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nas relações de família, por igual cumpre mencionar o Tema 1182 da Repercussão Geral sobre a maternidade e o pai genitor monoparental. Eis aí a situação que pode espelhar bem o caminho da proteção integral da criança, a qual merece, como defende Paulo Lobo (no estudo “Direito de família e os princípios constitucionais”, In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha org. Tratado de Direito das Famílias), “ter seus interesses tratados com prioridade pelo Estado, pela sociedade e pela família”.

Todas as pessoas possuem a mesma dignidade, o mesmo valor moral, como estatui o caput do artigo 5° da Constituição da República. Essa proclamação normativa vinculante se projeta na melhor interpretação dos direitos de personalidade, a exemplo do que fez o Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543.

Um Código que dê conta disso e preste contas à história pode ser a expressão normativa da vida ativa, da essência da pessoa, com empatia, solidariedade e fraternidade.

É na solidariedade e na responsabilidade que se refaz a tessitura do laço social e se abrem as possibilidades para a normatização da vida civil, seus direitos e deveres.

Cumpre reconhecer que não há um modelo ideal de codificação. A tarefa demanda um ofício sabedor de sua própria insuficiência: o Código não detém a última palavra sobre tudo. Essa incompletude deve ser assumida perante o corpo social até mesmo para garantir respeito às instituições.

Não se trata, porém, de ocaso permanente, e sim de eclipses que tão somente realçam o papel hermenêutico da doutrina e da própria jurisprudência, como tem feito de modo exemplar no Brasil o Superior Tribunal de Justiça.

Impende estar atento ao enfraquecimento cultural das leis. Há, em nosso tempo, uma crise simbólica da função da autoridade do Direito, em boa medida porque a Justiça para a polis é substituída pela injustiça ad personam. A crise é da mediação discursiva operada pelo Direito Civil nas titularidades, nas famílias e nos negócios do trânsito jurídico. A invocação cada vez maior da intervenção judicial é o atestado dessa incapacitação.

Convocam-nos afazeres contínuos e custosos: o exercício constante contra o vento forte que sopra para diluir as instituições, a própria cultura e a sociedade como espaço de hospitalidade. O tempo presente convoca um Código como resposta e como presença, a fim de contribuir com o pacto social, a ordem democrática das regras e a vida em comum.

Alguma coisa sempre volta do mar”, relembrou Massimo Recalcati retratando o Telêmaco da Odisseia. A codificação reformada e atualizada pode se tornar um marco da redemocratização. Essa pode ser uma odisseia testemunhal de seu tempo, sem almejar um modelo de perfeição nem um ideal normativo. É o mar da vida que faz retornar a oportunidade de reconstrução.

O caminho da ascese é o do princípio da realidade, de uma codificação que veicule, como experiência, o sentido fundador do pertencimento ao Brasil como sociedade livre, justa e solidária, lamentavelmente ainda injusta, desigual e discriminatória.

Basta tão somente que se dê o devido peso à palavra codificada, assumindo-se num mundo em incessantes mudanças como promessa de diagnóstico do presente e de edificação do futuro, sem se evadir da responsabilidade simbólica de unir tradição e movimento. Sem respeito à tradição, uma codificação atinge a condição líquida de Bauman, obrigada a inventar uma liberdade de massa, um mundo sem leis. E sem atenção ao movimento, ela será um museu de praxes, um precipitado insolúvel (na expressão de San Tiago Dantas).

O olhar para o porvir almeja justiça, a ordem justa para as pessoas, as famílias e o patrimônio. Ao assim fazê-lo, o Código Civil se tornará, de um modo bastante diferente, aquilo que sempre foi e assim, atravessado pelo tempo constituinte da vida plena, da liberdade e da responsabilidade, reconquistará, na democracia, aquilo que já era desde sempre: não um destino e sim uma travessia.