José Augusto Fontoura Costa

Crianças nascidas na cidade raramente veem galinhas chocando ovos. Talvez a clássica questão da primeira causa pudesse ser explicada, para elas, em termos de telefones celulares e sinal 4G. Para juristas interessados em teoria, o Estado ou o Ordenamento positivo repetem o mesmo dilema. Aqui importam os interessados na nova lex mercatória e, para estes, o outro termo do problema é a arbitragem internacional.
Mais adiante se cuida da questão do reconhecimento e eficácia de sentenças arbitrais anuladas por juízos estrangeiros. Antes disso, porém, é preciso ter um pouco de paciência com a teoria.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Não se busca, nesse artigo, discutir uma questão histórica. Tampouco meramente abstrata, apesar de haver importantes questões lógicas envolvidas. A abordagem proposta é a de um problema de estrutura do Sistema ou Ordenamento jurídico, o que, aliás, é levantado exatamente por Berthold Goldman e sua defesa da autonomia da lex mercatória. Na sua concepção, a positividade do Direito dos comerciantes internacionais deve sua existência aos órgãos aplicadores: os árbitros internacionais. É, assim, uma discussão tendente a filosófica, mas com importantes consequências para o discurso técnico e prático.
<blockquote class="jota-article__eye">Em primeiro lugar, é preciso compreender que uma das primeiras tarefas da educação jurídica atual é a de introjetar um mito – o de que o Direito é único, completo e coerente em razão de defluir de uma única fonte formal: o Estado.</blockquote>
Na história e na vida prática a pluralidade de ordens normativas, inclusive suficientes para aplicar sanções, é monotonamente normal. Porém, para operadores bem adestrados – sim, uso aqui operadores em tom depreciativo – a pluralidade é um anátema. É possível afirmar que o anúncio da existência de um Direito autônomo dos comerciantes internacionais não causaria muito espanto há cento e vinte ou cento e cinquenta anos atrás. Do outro lado, a aceitação da pluralidade jurídica vem se normalizando a passos largos e firmes no nosso século.
Dito isso, fica bem mais fácil separar o problema da existência de uma nova lex mercatoria daquele da aceitação de suas normas, costumeiras e escritas, pelos Ordenamentos nacionais. A primeira exige a fé ou, para os incréus, estudos políticos e sociológicos. A segunda se resolve mais fácilmente, como, por exemplo, no Artigo 2º, § 2º, da Lei de Arbitragem, conforme o qual as partes podem escolher “usos e costumes” e “regras internacionais de comércio”.
Dessa perspectiva, a arbitragem internacional e normas materiais da lex mercatoria fecham um círculo virtuoso, apontando algum grau de autonomia sistêmica. Entrementes, a regulação do ingresso de ambas, normas e sentenças, nos Ordenamentos estatais é tema de Direito interno.
De volta ao campo prático, a compreensão da Convenção de Nova York de 1958 também comporta essas duas chaves. Como bem se sabe, a cobertura material é para sentenças “proferidas no território de um Estado” diverso daquele em que buscam seus efeitos, bem como “sentenças arbitrais não consideradas como domésticas” (Artigo 1 (1)). Ora, “estrangeiro” refere-se ao que é originário de outro Estado; “não nacional” ou “não doméstico” se refere a outra coisa: aquilo que não é originário do Estado em que se pede o reconhecimento. O não doméstico, portanto, inclui não apenas o estrangeiro, mas abarca o não estatal, o “anacional”. Em outras palavras, a Convenção cobre sentenças arbitrais independentemente de seu pertencimento a ou vínculo com um Ordenamento jurídico estatal de origem. No mesmo contexto, o Artigo 1 (3) faculta aos Estados contratantes a faculdade de declara que limita os efeitos convencionais às “sentenças proferidas unicamente no território de outro Estado signatário”.
A Convenção, portanto, veio de fábrica com uma chave seletora: Estados que aceitam as sentenças por si próprias deixam com está, os que só aceitam as pertencentes aos sistemas jurídicos dos Contratantes, acionam o filtro. No cômputo total, das 168 Partes da Convenção, 80 (48%) optaram pela aplicação restritiva, 88 pela mais ampla (52%).
Em termos absolutos há praticamente um empate. Nos últimos vinte anos (2001 a 2020), porém, das 36 novas adesões, apenas 9 optaram pela forma mais restrita: 25% a 75%. Assim, três quartos desse conjunto parecem se posicionar a favor de uma compreensão bastante ampla da arbitragem internacional e tendente a aceitar sentenças deslocalizadas. As duas adesões de 2021 (Belize e Malaui) tampouco fazem reservas. A bem da clareza, uma interpretação alternativa é a de que a regra de exclusão de países que não são partes deixaria de fazer sentido à medida em que a Convenção se universaliza. Faz sentido, mas deve-se ressaltar que a exceção também afasta as sentenças deslocalizadas, pois exige, senão uma sede em seu sentido integral, um território de prolação.
O Brasil pertence ao segundo grupo, havendo adotado o instrumento sem qualquer restrição. Em perfeita consonância com tal posição, a Lei de Arbitragem, anteriormente à própria adesão à Convenção de Nova York, fala de sentença estrangeira como a “proferida fora do território nacional” (Artigo 34, parágrafo único), o que obviamente admite as sentenças sem um lugar específico. A extinção da exigência de homologação no país de origem da sentença (Artigo 35) igualmente aponta nesse sentido.
Consequentemente, o reconhecimento e eficácia das sentenças arbitrais estrangeiras segue uma lógica diversa daquela que se impõe sobre o ingresso das sentenças judiciais estrangeiras em um Ordenamento: as primeiras resultam do reconhecimento da possibilidade de as partes levarem questões à arbitragem – o que pode derivar do Direito do foro, de um Direito estrangeiro ou da própria lex mercatória; as outras se referem ao reconhecimento de um ato oficial de poderes estrangeiros. É por isso, até, que de umas não se exige o trânsito em julgado, das outras, sim.
Daí emerge a importantíssima questão da possibilidade de homologar e dar efeitos a sentenças arbitrais que tenham sido anuladas em um Judiciário estrangeiro: e se sua legitimidade for suficiente conforme outras Ordens? Ressaltem-se, antes, dois aspectos fundamentais da discussão anterior: (1) a acoplagem funcional das regras da lex mercatoria e da arbitragem internacional sugerem algum grau de autonomia para um Sistema não estatal, o que faz sentido da perspectiva da pluralidade jurídica e (2) vários aspectos da Convenção de Nova York e da Lei de Arbitragem brasileira apontam para o reconhecimento normativo desse sistema e a aceitação de seus efeitos.
Não obstante, o regime convencional e o legal brasileiro apontam para a hipótese de negação do reconhecimento e eficácia a sentenças estrangeiras quando judicialmente anuladas no país do território em que foram prolatadas. Uma análise dos dispositivos se impõe.
O Artigo V da Convenção de Nova York trata das exceções à regra de que as sentenças arbitrais devem ser reconhecidas e aplicadas. Há, ali, duas listas numerus clausus, uma dependente de pedido da parte que resiste à sentença e, outra, que admite o afastamento ex officio. Admite-se, assim, a possibilidade de recusar uma sentença estrangeira cuja anulação no país do território de prolação tenha sido comprovada.
Na lei brasileira, Artigo 38, afirma-se que “poderá ser negada a homologação” (grifo meu) caso a sentença arbitral “tenha sido anulada (...) por órgão judicial do país onde a sentença arbitral foi prolatada”. Não aparece, portanto, como matéria isenta de apreciação e convencimento, sem qualquer exigência legal de denegação do reconhecimento e da eficácia. Em outros termos: não é possível identificar, na letra da lei, o dever de negar a eficácia.
Esse amplo conjunto de elementos aponta para uma construção conceitual sólida: as sentenças arbitrais estrangeiras ingressam no Direito brasileiro, por meio do reconhecimento e para produzirem seus efeitos, em razão da incidência dos critérios postos pelo regime convencional e legal; não entra como manifestação de um Direito estatal estrangeiro no qual a sentença se encontraria originalmente incrustada. Concede-se a possibilidade da denegação de homologação em face de anulação no exterior, mas, em termos literais e sistemáticos, com espaço suficiente para a concessão do reconhecimento e dos efeitos ainda que tenha sido anulada no território de origem da sentença.
Não é diferente com a possibilidade de aplicar elementos da lex mercatória. É verdade que o bizarro Artigo 9º da LINDB, curiosamente imune a alterações ao longo de seus quase 80 anos, não trata do assunto, mas a expressa menção pela Lei de Arbitragem é significativa. Daí uma questão para reflexão: uma sentença internacional com fundamento material e formal na nova lex mercatoria poderia ter a homologação negada em razão de eventual anulação no território de prolação?
A partir da compreensão de alguma positividade e autonomia de um Sistema jurídico transnacional a validade e a eficácia de normas e sentenças do comércio internacional se separam dos ordenamentos internos, ainda que tenham de valer-se deles eventualmente – o que é bom para a segurança das trocas econômicas que interessam a todos. Daí não se pode dizer que nasçam dos Estados e, assim, perdura o dilema das primeiras causas. Pode-se, não obstante, afirmar que a existência de uma está vinculada à da outra, do mesmo modo que não há galinhas sem ovos, ou vice-versa.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>

solução de conflito

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Quem nasceu primeiro a nova lex mercatoria ou a arbitragem internacional?

Sobre a anulação de sentenças arbitrais estrangeiras

Quem nasceu primeiro a nova lex mercatoria ou a arbitragem internacional?