Nina Nobrega Martins Rodrigues

Luís Gustavo Faria Guimarães

Os estudiosos do direito e da ciência política estão habituados a trabalhar o conceito de soberania por meio de viés duplo e coexistente: sua reverberação exterior e sua expressão doméstica. De modo geral, aquela trata da igualdade entre os Estados na arena global, enquanto esta última dialoga com o monopólio legal e do uso legítimo da força. Com isso em mente, parece interessante analisar a influência que o recente processo eleitoral brasileiro desempenha nas duas vertentes da soberania nacional.
No que diz respeito à soberania no plano externo, é certo que a vitória de Lula representa um certo alívio. Isso porque, ao pautar-se por princípios puramente ideológicos e ao adotar alinhamento quase automático aos Estados Unidos da era trumpista, o governo brasileiro atual logrou isolar o país da arena internacional, lócus em que perdeu protagonismo e poder de barganha.
Desde ataques pessoais a líderes globais e seus cônjuges, passando por piadas a respeito da origem do vírus da Covid-19 e chegando a distorções informacionais em instâncias multilaterais. Combate ao chamado "globalismo", <a href="https://www.jota.info/eleicoes/tse-manda-remover-videos-de-bolsonaro-atacando-sistema-eleitoral-a-embaixadores-24082022">descrédito do sistema eleitoral pátrio para uma plateia de embaixadores</a>, abandono de foros de cooperação e coordenação regional ou, ainda, o sucateamento da política ambiental e a consequente paralisação de acordos comerciais. Foram muitos os equívocos e seus reflexos são eloquentes.
Com efeito, essa atuação deletéria colocou o Brasil em um espaço insular e de subserviência, o que contrasta com o histórico amplamente consagrado do Itamaraty. Se a tradição aponta para o pragmatismo e a moderação, tem-se agora uma lógica pautada pela aproximação dos iguais e pela repulsão do diverso. Vê-se a prevalência do dogmatismo em detrimento da objetividade.
Ocorre que a flexibilização da condição de igualdade, independência e mútuo respeito que deveria nortear as relações internacionais desempenhadas pelo país indica uma perda de sua capacidade soberana. Em outras palavras, a postura recente da política externa brasileira sugere o retraimento de sua liderança e, na verdade, uma inserção na zona de influência de potências ocidentais.
É nesse sentido que a eleição do candidato de centro-esquerda oferece sinais de consolo. A começar pelo rápido e massivo reconhecimento global do resultado eleitoral, com cumprimentos pessoais e tom de simpatia ao vencedor. A retomada de aportes financeiros ao Fundo Amazônia também demonstra uma predisposição mundial ao Brasil "ativo e altivo" que promete (re)estrear em 2023. Nota-se que há uma certa avidez da comunidade internacional em voltar a dialogar com o país em termos mais livres e propositivos.
O resgate da credibilidade brasileira e a perspectiva de reconstruir laços plurais denota a reabilitação da soberania nacional no domínio externo, onde a horizontalidade relacional tende a voltar como imperativo. A agenda de boas relações, com ênfase nos interesses do Brasil enquanto país emergente, também deve nortear a reinserção pátria, sob o manto da autonomia e equidistância.
Diante desse cenário, observa-se uma incongruência no momento vivido pelo Brasil no que compete a sua dualidade soberana. Enquanto reassume proeminência e altivez no campo internacional, o país enfrenta uma brutal fissura interna, que coloca em risco sua soberania doméstica, compreendida a partir de seu monopólio legal e do uso legítimo da força.
Isso porque, a partir de uma das eleições mais polarizadas desde a redemocratização, desencadearam-se manifestações contestando a lisura e a legitimidade do pleito eleitoral, despertando em parcela significativa da sociedade uma aparente descrença quanto ao regular funcionamento das instituições. Somam-se a isso, demandas por intervenção militar, com mobilizações populares em frente aos quartéis, além do bloqueio de estradas de norte a sul do país.
Para agravar esse cenário já bastante delicado, testemunhamos a aparente inércia de entidades gerenciadoras da ordem, a exemplo da atuação da Polícia Rodoviária Federal, que, durante os bloqueios e interrupções de rodovias, teve parte de seus integrantes flagrados não apenas se omitindo no exercício de seu poder de polícia, como endossando, de forma bastante ostensiva, tais manifestações  antidemocráticas.
Os acontecimentos dos últimos meses – intensificados nas últimas semanas, deveriam acender o sinal de alerta para os estudiosos da institucionalidade do país, uma vez que constituem fatores que prejudicam, em demasia, a preservação da estrutura burocrática brasileira e a consequente permanência do Estado democrático de Direito.
Se é verdade que o resultado do pleito eleitoral fortalece a nossa soberania externa e recoloca o Brasil na geopolítica global, do ponto de vista interno, há um enorme desafio para assegurar a manutenção de nossa soberania, na medida em que a polarização eleitoral, a aparente insubordinação corporativa e a radicalização de parte do eleitorado e da classe política representam uma ameaça constante para a harmonia social e para a estabilidade da democracia e das nossas instituições. Afinal, a progressiva perda da capacidade de gerir conflitos pelo monopólio legal e da força sugere uma erosão soberana de graves proporções.
O desafio, daqui por diante, é pacificar o país e recuperar a coesão de nosso tecido social, de modo que os cidadãos voltem a se sentir parte de um mesmo conjunto – a Nação brasileira – independentemente das diferenças político-partidárias ou ideológicas que os distinguem.
Para tanto, faz-se necessário que os vencedores desta eleição – presidente e governadores – tenham a serenidade para acalmar os ânimos, oferecendo ao país governos que conversem com todos, e não apenas com grupos ou segmentos mais alinhados, como vinha sendo realizado nos últimos anos. É preciso acatar a pluralidade e construir pontes, impermeabilizando, ainda, as forças de ordem contra anseios doutrinários alheios à sua própria função constitucional.
No <a href="https://www.congressonacional.leg.br/">Congresso Nacional</a> e nos demais espaços de interlocução, é hora de sair das bolhas – catalisadas pelos algoritmos das redes sociais – para que os agentes públicos recuperem a essência da política, qual seja, a capacidade de diálogo entre divergentes em busca de soluções para os problemas comuns que afetam a todos, indistintamente.
Não só isso, a revitalização da soberania pátria também carece de um esforço coletivo de reafirmação do funcionamento burocrático do Estado e da sua capacidade de regeneração, de modo a restaurar a crença na administração legal e da força. Afinal, o aperfeiçoamento institucional é imperativo, mas a confirmação – uníssona – da imprescindibilidade democrática é ainda mais indispensável.
Deve partir, portanto, da classe política, legitimada a partir do recente resultado das urnas, o esforço para a reunificação do país, por meio da cooperação interfederativa, do diálogo parlamentar e da efetiva abertura para que as pessoas – sejam elas de direita, centro ou esquerda – tenham acesso aos espaços públicos, às instituições políticas e aos tomadores de decisão, uma vez que a participação popular no processo decisório é a base da própria democracia e a melhor vacina contra rompantes autoritários.
Se o Brasil promete retornar com maior altivez ao cenário global em 2023, faz-se necessário também retomar a normalidade democrática no âmbito nacional, concretizando, assim, uma plenitude soberana, em sua dupla faceta.

Lula

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JOTA

Se o Brasil promete retornar com maior altivez ao cenário global, faz-se necessário retomar a normalidade democrática

Soberania(s) em restauração

Se o Brasil promete retornar com maior altivez ao cenário global, faz-se necessário retomar a normalidade democrática no âmbito nacional