A crise de efetividade que atinge o sistema judiciário brasileiro possui relação direta com os entraves processuais e a lenta tramitação verificados na fase satisfativa e nos processos autônomos de execução. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já teve a oportunidade de afirmar que os processos em fase de execução “constituem grande parte dos casos em trâmite e etapa de maior morosidade”.[1]

No último relatório do projeto Justiça em Números, o Conselho Nacional de Justiça noticiou que 55,8% dos processos pendentes de baixa no final do ano de 2019 se referiam a processos na fase de execução. Em números absolutos, esse percentual consistia em aproximadamente 43 milhões de processos em um universo de 77 milhões de casos em tramitação na referida data.
Do total de processos na fase satisfativa, a maioria absoluta – cerca de 70% – dizia respeito às execuções fiscais. Naquele ano, os executivos fiscais representaram aproximadamente 39% da quantidade total de casos pendentes, possuíram altíssima taxa de congestionamento de 87% e apontaram para uma ineficiência no índice de recuperação dos créditos tributários e não-tributários inscritos em dívida ativa. Por esses motivos, o Conselho Nacional de Justiça indica que os processos de execução fiscal são “os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário” e retratam o grande “gargalo da execução”.

O tempo de duração dos processos executivos também é alto. Em 2019, as execuções fiscais tiveram o período médio de tramitação de 8 anos, enquanto as execuções civis duraram a média de 3 anos e 3 meses. Outrossim, a taxa de congestionamento é expressiva. Enquanto na fase de conhecimento o índice global do Judiciário girava em torno de 58%, nos processos de execução ela chegava a 82%.[2]

Esse cenário de inefetividade e de ineficiência do sistema de justiça na fase executiva enseja diversos questionamentos quanto à própria utilidade do processo judicial como método eficiente e adequado para o adimplemento forçado de créditos. É cada vez mais crescente no Brasil – na linha do que já vem ocorrendo em outros países – o debate a respeito da necessidade do emprego de técnicas complementares de satisfação compulsória de obrigações que não foram espontaneamente cumpridas.

A propósito, a idealização de um sistema jurídico que ofereça técnicas variadas e integradas de solução adequada de conflitos não é nova. Em 1976, Frank Ernest Arnold Sander, da Faculdade de Direito de Harvard, propôs a criação do Multi-Door Courthouse System.[3] De acordo com esse modelo, cabe ao sistema judiciário a institucionalização de centros de resolução de disputas (dispute resolution center) que disponibilizem aos cidadãos múltiplas “portas” para a resolução de suas controvérsias (multi-door), além do método judicial adjudicatório.

No Brasil, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº. 125 instituiu, em 29 de novembro de 2010, a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de “assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade” (art. 1º). Para tanto, “[a]os órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão” (art. 1º, parágrafo único).

Por seu turno, o Código de Processo Civil trata o estímulo à adoção de outros métodos de solução de conflitos como norma fundamental do processo civil brasileiro, com ênfase no emprego das técnicas consensuais (art. 3º, §§2º e 3º, do CPC). Outros diplomas normativos também versam sobre técnicas complementares de resolução de controvérsias que diferem da adjudicação estatal, como, por exemplo, são os casos das Leis nº. 9.099/1995, 9.307/1996 e 13.140/2015 – que dispõem, respectivamente, sobre a conciliação e a transação nos Juizados Especiais, a arbitragem, a mediação entre particulares e a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

Portanto, é possível afirmar que vigora no Brasil um microssistema de estímulo ao emprego de meios integrados e adequados de solução de controvérsias. Dito de outro modo, o sistema jurídico nacional prevê uma gama de normas que instituem técnicas que, de modo colaborativo e complementar, formam uma “teia de cooperação”[4] que visa a proporcionar a resolução mais adequada do direito material, conforme as necessidades das partes e as circunstâncias peculiares do caso concreto.

Todavia, é preciso ir além. Não somente o direito material em discussão na fase de conhecimento requer um tratamento jurídico especializado e adaptado às suas particularidades. Igualmente a fase executiva – justamente o momento em que o credor efetivamente busca usufruir do seu direito – merece uma técnica apropriada à natureza específica da obrigação ou crédito pendente de adimplemento. É nesse sentido que, na esteira do direito comparado, sugere-se a estruturação também de um Sistema Multiportas de Execução.[5]

Os caminhos adotados por países europeus são diversos, especialmente após o entendimento do European Court of Human Rights (ECHR), em 1997, de que as decisões judiciais e a consequente adoção de procedimentos de recuperação e de apreensão eficientes são parte integrante do direito humano fundamental a um julgamento justo.[6]

A Suécia, por exemplo, destinou a atividade executiva para o Poder Executivo.[7] No país escandinavo, as execuções por quantia certa em geral são processadas administrativamente pelo Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada (kronofogdemyndigheten), órgão vinculado ao Ministério das Finanças. O órgão é composto por cerca de 2.300 funcionários, espalhados por 32 unidades ao longo do país.

Quando o credor está com dificuldade para receber um crédito (seja ele oriundo de uma decisão judicial ou de um título executivo extrajudicial),[8] ele contata a autoridade nacional que, além de registrar em seu banco de dados a dívida, analisará a procedência da requisição[9] e, em caso afirmativo, remeterá uma notificação para o devedor.[10] Caso o devedor continue inadimplente, a própria autoridade executiva poderá realizar a penhora, apreensão e alienação do patrimônio.[11] Não há necessidade de qualquer intervenção do Poder Judiciário.[12]

Outros países, como Alemanha e Espanha, cada um à sua maneira, atribuíram a execução a atos compartilhados entre juízes e servidores (como agentes executivos e oficiais judiciários).[13]

Na Alemanha, optou-se por transferir a competência executiva a um servidor público vinculado ao Poder Judiciário; a esmagador maioria dos atos praticados pelo agente de execução não depende de autorização ou homologação pelo juiz.[14]

Também vinculado ao Poder Judiciário é o modelo espanhol: compete ao juiz realizar a admissibilidade do título executivo que lhe é submetido; se admitido, o magistrado emite a orden general de ejecución, a ser cumprida pelo agente de execução, igualmente um funcionário público (Letrado de la Administración de Justicia). Cabe ao agente a condução do procedimento, sem prejuízo de eventualmente submeter ao juiz a apreciação de alguma questão.[15]

E ainda há um terceiro grupo de países que, em maior ou menor grau, delegou a atividade executiva à iniciativa privada, como França e Portugal.

O Huissier de Justice é o responsável, no direito francês, pela execução de título executivo judicial ou extrajudicial. Trata-se de agente privado, contratado pelo exequente, que realiza suas atividades de modo independente e autônomo, isto é, sem a necessidade de prévia consulta ou homologação pelo Poder Judiciário. O Huissier, após o licenciamento concedido pelo Ministério da Justiça, trabalha em um ambiente de livre concorrência, como verdadeiro profissional liberal.[16]

Sob a inspiração do sistema francês, Portugal reformou sensivelmente a atividade executiva nos anos de 2003 (Decreto-Lei nº. 38), 2008 (Decreto-Lei nº. 226), 2013 (Lei n.º 41, novo CPC) e 2014 (Lei n.º 32). Criou-se uma profissão: a dos agentes de execução, os quais são profissionais liberais com formação jurídica. O objetivo foi afastar os juízes dos encargos por essência administrativos e burocráticos. Com o advento do Procedimento Extrajudicial Pré-Executivo (PEPEX), em 2014, aguçou-se a reforma sob a óptica da desjudicialização, possibilitando ao agente de execução, a partir de solicitação do credor, consultar previamente a um processo a situação patrimonial do devedor, valendo-se de sólida base de dados.[17]

Na Itália, uma vez apresentado pelo credor um título executivo perante o Poder Judiciário, o juiz expede uma ordem ao ufficiale giudiziario, que será responsável pela realização da comunicação ao devedor, bem como, em não havendo pagamento, da penhora e de outros atos constritivos. O servidor integra os quadros do Poder Judiciário.[18]

Porém, é também nesse país peninsular que a literatura aponta para uma trajetória ainda mais liberalizante: a valorização da autotutela executiva, inclusive com repercussões recentes na legislação.[19]

No Brasil, durante décadas, a prática de atos executivos fora do Judiciário – “desjudicialização da execução” –, seja pela forma da heterotutela, seja pela via da autotutela, foi encarado praticamente como dogma e avançou muito timidamente.

Em 1966, com o objetivo de estimular o financiamento da casa própria, foi editado o Decreto Lei nº. 70 que previu, nos artigos 29 a 37, mecanismo mais célere para que o credor imobiliário pudesse executar extrajudicialmente a garantia prestada, caso ocorresse inadimplemento. O procedimento é todo realizado em cartório e não prevê atividade propriamente cognitiva do tabelião.

De igual maneira é regulada a alienação fiduciária de bem imóvel na Lei nº. 9.514/1997, a qual, entre os artigos 25 e 30, prevê a consolidação da propriedade ao credor fiduciário, uma vez não paga a dívida, bem como a possibilidade de leilão extrajudicial do imóvel.

Por seu turno, os artigos 1º-A e 1º-B da Lei nº. 9.469/1997 autorizam o não-ajuizamento de execuções fiscais para a cobrança de créditos federais inferiores a determinadores valores. Paralelamente, o parágrafo único do artigo 1º da Lei n.º 9.492/1997, com o acréscimo da Lei n.º 12.767/2012, inclui, entre os títulos passíveis de protesto extrajudicial, as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.[20]

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça fixou tese no sentido da possibilidade, também nas execuções fiscais, da inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes, independentemente do prévio esgotamento de outras medidas executivas, com base no artigo 782, §3º, do Código de Processo Civil.[21]

O Código Civil, em seus artigos 1.030 e 1.085, admite a exclusão extrajudicial de sócio minoritário, bem como a liquidação de seus haveres.

Recentemente, inspirado na experiência executiva europeia,[22] foi editado no Brasil o Projeto de Lei nº. 6.204/2019, de autoria da Senadora Soraya Thronicke, que dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial, objetivando modificar o CPC.

Ainda mais recente é o Projeto de Lei nº. 3.999/2020, de autoria do Deputado Federal Hugo Leal, que prevê o despejo locatício extrajudicial por falta de pagamento, bem como a consignação extrajudicial das chaves do imóvel. À semelhança das figuras da execução extrajudicial das garantias hipotecárias e da alienação fiduciária, a inspiração do projeto é criar uma relação executiva autotutelável.

Some-se a isso a também contemporânea discussão no Senado Federal a respeito da criação da execução fiscal administrativa, conforme o Projeto de Lei nº. 4.257/2019, de autoria do Senador Antônio Anastasia, o qual busca viabilizar a expropriação de bens do devedor pela Fazenda Pública na esfera extrajudicial. Antes disso, o Projeto de Lei nº. 2.412/2007, de autoria do Deputado Federal Regis de Oliveira, também já dispunha sobre a execução administrativa da dívida ativa.

Tanto as recentes transformações da execução civil na Europa, quanto as propostas de mudanças legislativas no Brasil, demonstram que há uma tendência atual favorável à instituição de alternativas complementares à execução judicial.

Consolidando o atual estado da arte no Brasil e no direito comparado, é possível idealizar um Sistema Multiportas de Execução composto de variadas técnicas complementares e integradas de emprego adequado de medidas executivas, conforme abaixo esquematizado:

Sistema multiportas de execução

CNJ noticiou que 55,8% dos processos pendentes de baixa no fim de 2019 se referiam a processos em fase de execução