Fernando José Gonçalves Acunha

Qual é o limite a que se sujeitam os servidores públicos do Executivo federal quando o objeto de manifestações em seus perfis privados em redes sociais for a própria Administração Pública? Esse tema tão sensível é um dos objetos de que trata a Nota Técnica n. 1556/2020/CGUNE/CRG<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, de 03 de julho de 2020, recentemente emitida pela Coordenação-Geral de Uniformização de Entendimentos da Controladoria-Geral da União (CGUNE/CGU).
Esse ato administrativo está sendo questionado por duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, propostas pela Confederação Nacional das Carreiras Típicas de Estado – Conacate (ADI 6499) e pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB (ADI 6530), ambas de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski. A decisão que o STF venha a tomar em relação a esses casos – se adentrar no mérito da discussão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> – pode representar um novo marco para a regulamentação das relações entre a Administração Pública e os seus agentes, especialmente diante dos desafios que são impostos pelo impacto que as redes sociais têm na sociedade contemporânea.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A Nota Técnica n. 1.556 fixa como propósito principal apresentar a “manifestação interpretativa desta CGUNE quanto ao alcance e conteúdo dos arts. 116, inciso II e 117, inciso V, da Lei nº 8.112/1990, visando, especialmente, promover a justa adequação destes às hipóteses de condutas irregulares de servidores públicos federais pela má utilização dos meios digitais de comunicação online”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Segundo o texto, um dos seus objetivos é padronizar o entendimento a respeito do uso das redes sociais por parte dos servidores públicos federais. E uma das formas pelas quais a CGUNE/CGU busca cumprir esse desiderato é pela fixação de interpretação segundo a qual uma das causas que expõe o servidor a apuração disciplinar é a manifestação de críticas à Administração mesmo que fora do exercício do cargo por meio de perfis privados em redes sociais.
Para a Nota Técnica n. 1556, tal possibilidade decorre do art. 148 da Lei n. 8.112/90, que fala em instauração de processo administrativo disciplinar em face do servidor por “infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido” (destaque nosso). Ou seja, o servidor não estaria isento de responder por infração ética ou disciplinar por ocorrências verificadas em sua vida privada, já que, nos termos do próprio Código de Ética do Servidor Público do Poder Executivo Federal (Decreto n. 1.171, de 22 de junho de 1994), a função pública do servidor se integra em sua vida particular<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A Nota Técnica n. 1.556 trata de uma série de conceitos diversos, como a reinterpretação do que significa “recinto da repartição” para os fins do art. 117, V, Lei 8.112/90, ou a discussão sobre o uso de imagens e identificações em perfis de redes sociais que liguem o servidor à instituição à qual está vinculado. Dentre tantos assuntos abordados no ato (alguns dos quais apontam na direção correta), há compreensões bastante problemáticas, dentre as quais aquela que é objeto deste texto, relacionada à definição sobre o que configuraria o dever de lealdade do servidor para com a instituição a que está vinculado quando emite opiniões privadas em redes sociais.
De acordo com a Nota Técnica n. 1.556, esse dever de lealdade implicaria a necessidade de instauração de controle disciplinar quando o servidor emitisse “manifestações públicas acerca de conflitos internos ou mesmo de opinião sobre assuntos internos”, mencionando como exemplo de tal comportamento “dar publicidade a conflitos internos de entendimentos da casa ou conflitos relacionados às opiniões de colegas ou superiores)” (destaque nosso).
Em tais situações, ao invés de se manifestar publicamente (mesmo que em perfil privado e fora do horário e do ambiente de trabalho), deveria o servidor buscar resolver os conflitos “por meio dos devidos canais de contestação, de forma a não propagar os problemas internos externa corporis, o que poderia causar impacto negativo à reputação e imagem da unidade administrativa” (destaque nosso).
E por que esse é um dos pontos mais problemáticos do ato? Segundo entendo, tal se deve a algumas razões, dentre as quais gostaria de destacar duas principais: (a) pode limitar o acesso da sociedade a informações e debates relevantes sobre temas de interesse geral; e (b) interpreta de forma restritiva direitos fundamentais do servidor público federal.
Quanto ao primeiro ponto, sabe-se que um dos pilares em que se ampara a democracia contemporânea é a existência de um espaço público aberto para a comunicação. É o conceito do ambiente democrático como um amplo fórum comunicativo, que aponta que as deliberações públicas demandam informações relevantes (e preferencialmente de boa qualidade) para que a sociedade possa adotar decisões mais conscientes sobre os assuntos que assim o requeiram.
Não raro, os agentes do Estado são aqueles que possuem (maior) capacidade para fomentar o debate público sobre temas específicos. Dada a extensão das tarefas e competências que a Constituição Federal de 1988 deu à Administração Pública em seus diversos níveis, são muitos os campos em que os servidores públicos federais representam justamente a parcela de atores que possui aprofundamento e experiência necessários para produzir conhecimento de qualidade e servir à sociedade.
Impor amarras à expressão pública de visões distintas que possam existir dentro da máquina pública a fim de não permitir que apareçam “conflitos internos de entendimento” ou “conflitos relacionados às opiniões de colegas ou superiores” é, segundo entendo, prestar enorme desserviço à busca pela produção de informação mais abundante e melhor.
<blockquote class="jota-article__eye">Não é sem lógica perceber que esse efeito adverso relativo à restrição do debate público anda par e passo com um claro interesse em preservar determinados caracteres da Administração compreendidos como objetos cuja importância é destacada.</blockquote>
Essa postura já tradicional na regulação de nossa Administração Pública parece seguir a trilha da perpetuação de características muito peculiares do nosso direito administrativo, que, como aponta Júlio Cezar Bittencourt Silva, tem o seu “núcleo duro (...) consolidado em pilares que conduzem à hierarquização das relações entre cidadão e Administração Pública e à progressiva concentração de poderes nas mãos do Estado-administração”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Segundo o mesmo autor, trata-se do “ramo do Direito Público mais calcado em construções teórico-doutrinárias próprias dos séculos XVIII e XIX”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Essa postura é incompatível com a releitura fundamental que o constitucionalismo brasileiro pós-1988 atribuiu aos direitos fundamentais. E aqui entra em discussão o segundo aspecto problemático destacado acima: além de restringir o acesso da sociedade a informações, debates e opiniões relevantes, a concepção inserta na Nota Técnica n. 1.556 parece fazê-lo ao arrepio de direitos fundamentais dos servidores, como a liberdade de expressão e científica (art. 5º, incisos IV e IX, CF/88).
Sei que os direitos fundamentais não são ilimitados. Partilho da visão amparada na teoria da argumentação de Klaus Günther<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> segundo a qual há sempre que se identificar a norma aplicável ao caso; por isso, quando uma manifestação particular de determinado agente se tratar de abuso de direito, não há que se falar em proteção da liberdade de expressão, mas de ilícito a ser sancionado.
No entanto, isso só pode ser identificado no caso concreto, jamais em abstrato. E é aqui que a Nota Técnica n. 1.556 parece errar clamorosamente, eis que, com vistas a alcançar os propósitos que enuncia, cria perigosamente uma interpretação prévia (restritiva) sobre os meios pelos quais os servidores públicos podem manifestar o seu dissenso.
O ponto é relevante e precisa ser debatido com maior exaustão. Como advertem Tom Ginsburg e Aziz Z. Huq, um dos mecanismos mais efetivos em processos de decadência democrática é a assunção do controle estrito da máquina burocrática da Administração pelo(s) líder(es) de momento, o que lhe(s) permite retirar do caminho instituições e agentes que controlam o exercício poder<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
É por isso que entendo ser imprescindível que o Brasil não restrinja o debate e a manifestação de pensamento de seus servidores e não lhes imponha que apenas reportem a seus superiores as suas opiniões discordantes sobre temas envolvidos em sua atuação. Mais e melhores informações são sempre desejáveis, e apenas uma visão que preserve o espaço público, os direitos fundamentais e a transparência na relação entre Estado e cidadania é que pode fazer frente a esse desafio.
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O Sem Precedentes desta semana analisa <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/bolsonaro-indica-kassio-nunes-stf-01102020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">surpreendente indicação</a> de Kassio Nunes Marques, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), para o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=6UbopF1SKqA&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Texto disponível em: &lt;<a href="https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/46016/1/Nota_T%c3%a9cnica_1556_2020_CGUNE_CRG.pdf">https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/46016/1/Nota_T%c3%a9cnica_1556_2020_CGUNE_CRG.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Na ADI 6499, a manifestação da AGU pugnou pelo não cabimento da ADI, indicando como preliminares de mérito ilegitimidade ativa da autora, a ausência de caráter normativo da Nota Técnica n. 1.556 e a existência de ofensa meramente reflexa à Constituição. Na ADI 6530, as preliminares arguidas sustentaram a ausência de caráter normativo da Nota Técnica n. 1.556 e a existência de ofensa meramente reflexa à Constituição.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O art. 116 da Lei n. 8.112/90 fixa os deveres do servidor público federal, indicando, em seu inc. II, que uma das suas condutas obrigatórias e a de “ser leal às instituições a que servir”. A seu turno, o art. 117 da Lei n. 8.112/90 regulamenta as proibições, trazendo o seu inc. V a vedação a que o servidor promova “manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Conforme o item VI do Anexo do Decreto n. 1.171/94: “VI - A função pública deve ser tida como exercício profissional e, portanto, se integra na vida particular de cada servidor público. Assim, os fatos e atos verificados na conduta do dia-a-dia em sua vida privada poderão acrescer ou diminuir o seu bom conceito na vida funcional.”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>. SILVA, Júlio Cezar Bittencourt. O viés cidadão do direito administrativo. 207 f. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018, p. 146. Disponível em: &lt;<a href="https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/58272/R%20-%20T%20-%20JULIO%20CEZAR%20BITTENCOURT%20SILVA.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/58272/R%20-%20T%20-%20JULIO%20CEZAR%20BITTENCOURT%20SILVA.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y</a>&gt;. Acesso em 06 out. 2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ibid., p. 151.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Sobre o tema, já tive oportunidade de me posicionar em texto prévio. Confira: ACUNHA, Fernando José Gonçalves. Colisão de normas: distinção entre ponderação e juízo de adequação. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 51, n. 203, p. 165-183, jul./set. 2014. Disponível em: &lt;<a href="http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/507411">http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/507411</a>&gt;. Acesso em 06 out. 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z. How to Save a Constitutional Democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018, p. 102.

liberdade de expressão

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JOTA

Por que perde toda a sociedade quando a liberdade de expressão é vilipendiada?

Manifestações dos servidores públicos federais em redes sociais

Análise sobre manifestações dos servidores públicos em redes sociais. Por que perde toda a sociedade quando a liberdade de expressão é vilipendiada?