Márcio Monteiro Reis

Conta-se que, no Velho Oeste americano, no século XIX era comum que bares e estalagens oferecessem almoço grátis aos seus frequentadores. A prática, no entanto, não era derivada da solidariedade com a vida dura que muitos levavam naquela época. É que a vida era tão dura, massacrante e perigosa que a maioria das pessoas precisavam manter um estado quase que de permanente embriaguez para poder encarar as suas vicissitudes. Assim, o almoço grátis era apenas um chamariz — uma jogada de marketing, dir-se-ia hoje — para atrair clientes visando ao consumo de cerveja, uísque, vinho ou qualquer outra bebida que ajudasse a vida a ser vivida naquelas circunstâncias inóspitas. Em Las Vegas essa é, até hoje, uma prática comum nos cassinos, para atrair os apostadores.
Os liberais, comandados por Milton Friedman, logo criaram a conhecida alegoria: não existe almoço grátis. Com muita razão, queriam demonstrar que se algo tem um custo, não pode ser oferecido de forma gratuita. Sempre haverá um preço e alguém sempre será o responsável por pagá-lo. No caso dos serviços públicos, como o transporte coletivo, se o usuário não paga a conta, alguém tem que pagar. Neste caso: o contribuinte, aquele que ao recolher os seus tributos, sendo ou não usuário do serviço, arcará com o seu custo.
No seu livro “O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você”, Eli Pariser faz um alerta semelhante àqueles que navegam pela internet e são atraídos pela promessa de que basta que o usuário preencha cadastros, responda perguntas, forneça fotos, vídeos, dados de navegação ou comportamento, para  ter acesso “gratuito” a alguma novidade oferecida por um aplicativo, site ou rede social. O autor faz referência à seguinte frase, atribuída à Andrew Lewis: “se você não está pagando por alguma coisa, você não é o cliente; você é o produto à venda”, numa referência ao fato de que a ausência de custo é um mero chamariz para obter suas informações pessoais e dar a elas algum uso comercial.
Toda essa digressão para chegar ao objeto desse artigo. Foi aventada, durante as discussões que se desenrolaram no âmbito da equipe de transição para o novo governo, a implantação da tarifa zero para os transportes públicos. Logo vem à mente, então, o antigo alerta liberal: não existe almoço grátis. Se não será cobrada tarifa dos usuários do serviço, quem pagará a conta? Os contribuintes. Não há outro caminho possível. Aqueles que não usam o serviço serão chamados a custeá-lo.
Surge, então, outra questão: isso é errado? Não necessariamente. Há diversos serviços públicos prestados no Brasil com tarifa zero. Educação e saúde são os mais evidentes e não há atualmente discussão relevante a esse respeito. Nas estradas não pedagiadas, o usuário também não paga pelo serviço que recebe. O mesmo ocorre com o uso das vias de circulação urbana nas cidades. Muitos parques também são mantidos pelo poder público sem cobrança de tarifa. Praças, muitas vezes equipadas com aparelhos de ginástica, parquinhos infantis, segurança pública, defesa nacional, enfim, vários outros exemplos, com maior ou menor facilidade para a individualização dos usuários, são postos à sua disposição sem que lhe seja cobrada uma tarifa. Não há, portanto, um mal intrínseco na prática da tarifa zero, que aconselhe evitar essa solução a todo custo.
Há, no entanto, algumas reflexões importantes a fazer e questões importantes a serem consideradas. A mais evidente é que os recursos públicos não são infinitos e oferecer serviços públicos universais (disponíveis para toda a população) e gratuitos custa muito caro. Não é a toa que os maiores orçamentos da esplanada estão nos ministérios da saúde e da educação. Não é segredo que vivemos uma crise econômica e um momento de restrição orçamentária. É preciso, portanto, estabelecer prioridades. Deve-se considerar, ainda, que a gratuidade provoca, em certos casos, a redução do apreço por parte do usuário. Há uma tendência do ser humano a valorizar menos o que é abundante e de fácil acesso. Ao implantar a tarifa zero, portanto, é preciso ter cuidado com incentivos a condutas indesejadas, como o desperdício.
A discussão sobre possível tarifa zero para os transportes públicos, portanto, é bem vinda e não deve ser rechaçada peremptoriamente, com base em chavões liberais. Mas também não deve ser considerada uma panaceia, nem um instrumento a ser utilizado indiscriminadamente. É possível que a tarifa zero faça sentido em uma região do país, mas não em outra; em um município, mas não no município vizinho; em um modal e em outro não.
Do mesmo modo, talvez não seja o caso de atingir todos os usuários, mas apenas aqueles que, de fato, necessitem de um tratamento diferenciado. Já que os recursos públicos são escassos e é preciso priorizar, os parâmetros de prioridade talvez não estejam nos serviços, mas sim em seus usuários. Pode-se aventar que, mesmo aqueles serviços que hoje são universalmente gratuitos, pudessem manter a gratuidade apenas para quem dela realmente necessita, permitindo assim carrear recursos para que outros serviços, hoje cobrados de todos, possam também ser oferecidos gratuitamente para alguns.
Há algum tempo foi aprovada lei que determina que planos de saúde façam ressarcimento ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a> quando aquele que foi atendido pela rede pública possui plano de saúde. Alguma discussão já tem sido feita quanto à viabilidade de cobrar mensalidade nas universidades públicas daqueles que tenham condição econômica para pagá-la. Há, por outro lado, exitosa experiência com a cobrança de tarifas sociais para serviços como de água, luz ou gás. Nesses casos, ao efetuar o pagamento, ainda que de uma tarifa módica, o usuário tende a atribuir um maior valor ao serviço recebido, tem incentivos para evitar desperdício e uma experiência de maior dignidade.
O debate da tarifa zero é um debate difícil e complexo, que merece ser enfrentado. Os serviços públicos, em geral, são serviços cujo acesso é essencial para assegurar uma vida com dignidade. Garantir que todos tenham acesso ao mínimo é muito relevante. A questão do transporte público hoje é dramática. Há trabalhadores que comprometem parte significativa de suas remunerações mensais para poderem chegar aos locais de trabalho e retornar à casa. Oportunidades profissionais são perdidas pela inviabilidade do custo de transporte.
Talvez seja o caso, então, de uma vez por todas, pôr o foco das prioridades orçamentárias para o subsídio dos serviços públicos no seu destinatário. Tarifa zero, ou tarifa social quando for o caso, podem ser implantadas quando identificada a sua necessidade e conveniência, mas não necessariamente para todos.

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JOTA

Um chamado à reflexão e a um debate mais aprofundado sobre o tema

Serviço público sem cobrança de tarifa e o almoço grátis

Serviço público é essencial, mas seus recursos não são infinitos e oferecê-los gratuitamente, muitas vezes, pode custar caro.