Carlos Nitão

O Direito pode ser compreendido como um sistema de normas que ordenam condutas. Segundo Paulo Nader[1], “do ponto de vista objetivo, o Direito é norma de organização social”. Em razão dessa dicotomia, direito objetivo e direito subjetivo, falamos, por exemplo, em direito administrativo, direito penal, direito civil. 
Nas palavras de Di Pietro[2], o Direito Administrativo é “o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens e meios de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública”. 
No ordenamento jurídico brasileiro, o Direito Administrativo tem, dentre outros, como objeto a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/administracao-publica">Administração Pública</a> (sentido objetivo), portanto, as pessoas físicas e jurídicas que desempenham a função administrativa do Estado e a Administração Pública (sentido subjetivo), ou seja, as funções administrativas estatais. 
Nesse cenário, os agentes públicos são responsáveis pelo processo de tomada de decisões que são necessárias à execução das atividades administrativas. Sendo assim, é possível admitir que, em diversas ocasiões, o erro é uma possibilidade real, haja vista as diversas condições em que as decisões são proferidas. 
O cantor e compositor carioca Jorge Ben Jor, desde 1974[3] alertava-nos que “e de pensar que não somos os primeiros seres terrestres, pois nós herdamos uma herança cósmica errare humanum est”. Errar é próprio do homem. Portanto, sendo o Direito um sistema de regulação de condutas, um questionamento se impõe: por que há intolerância ao erro do agente público na atividade administrativa?  
Seria a intolerância ao erro o Zeitgeist, ou seja, o “espírito do tempo” que encontra eco na atividade controladora? É possível que sim. A não admissibilidade do erro seria um “sinal dos tempos” acautelando-nos sobre a ânsia de repensar o modo de efetivação da atividade controladora? Penso que sim, uma vez que o erro é uma potência indissociável da conduta humana. 
Não obstante isso, é preciso ressaltar que não estamos tomando esse cenário como uma verdade absoluta. No entanto, não há dúvidas de que predomina no exercício da atividade controladora, haja vista, sobretudo, a generalização da falsa ideia de que o agente público é, como regra, corrupto. A nossa experiência no serviço público revela que não é bem assim. 
Pois bem, o fato é que no ordenamento jurídico brasileiro há um modelo que se caracteriza pela múltipla responsabilização do agente público, que pode ser sancionado civil, penal e administrativamente, além de responder por ato de improbidade administrativa. 
Na seara da improbidade, a Lei 14.230/2021 afastou a possibilidade de o ato de improbidade administrativa resultar de erro, uma vez que passou a exigir o dolo como elemento subjetivo norteador da conduta ímproba. Trata-se de um avanço normativo na tutela do gestor honesto, ou seja, aquele que, agindo de boa-fé, diariamente, toma decisões para a execução da função administrativa. 
Atente-se, pois, que o erro pressupõe a boa-fé subjetiva na conduta do agente, ou seja, a convicção pessoal de que está agindo conforme a lei, sem a intenção de causar prejuízos à Administração Pública ou de produzir algum benefício indevido em favor próprio ou de outrem. 
Em razão disso, concluímos que o erro resulta de uma conduta culposa orientada pela boa-fé subjetiva, que se concretiza em virtude de uma falsa percepção da realidade. No caso, no campo do Direito Administrativo, o erro pode estar presente no motivo do ato administrativo, uma vez que há uma falsa percepção sobre as circunstâncias fáticas presentes no momento da decisão do agente público. Assim, a compreensão equivocada da realidade pode resultar na ocorrência de erro administrativo. 
O erro pode ser classificado como justificável, não justificável e grosseiro. Essa categorização é realizada a partir da teoria dos graus de culpa. Assim, a culpa temerária caracteriza a compreensão de erro grosseiro. Segundo a LINDB[4], o erro grosseiro pode ensejar a responsabilidade pessoal do agente público. 
Por conseguinte, faz-se necessário que a conduta do agente seja analisada e compreendida a partir do contexto fático em que foi executada, com o objetivo de investigar e identificar o seu elemento subjetivo. Nos termos da LINDB[5], é preciso considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo”. Ainda, devem ser “consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”.  
Assim, a configuração do erro grosseiro passa pela efetiva demonstração da temeridade que reveste a conduta do agente público no processo decisório, sob pena de abstrativização da atividade controladora que, como regra, vem se consolidando mediante enunciados abstratos que tipificam e qualificam condutas como erro grosseiro. Recorde-se que a LINDB veda “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, nos termos do seu artigo 20, caput. 
O artigo 28 da LINDB pode ser compreendido como uma cláusula geral para investigação da culpabilidade, pressupondo a análise do elemento subjetivo que orientou a conduta do agente para fins de compreensão de sua aceitabilidade ou do seu caráter grosseiro perante o contexto fático ou jurídico em que foi praticada. 
Dito de outro modo, entendemos que a utilização do critério do gestor médio ou da gestora média não é compatível com a LINDB para o fim de enquadramento da conduta como erro grosseiro. Isto porque a ideia de homem médio decorre de concepções generalizantes que desconsideram, por exemplo, a formação e o histórico profissional, as capacidades intelectuais, a idade, a experiência e, até mesmo, o contexto fático no qual a decisão do agente público foi tomada. 
Eis um questionamento que pode nos auxiliar na reflexão suscitada. Mas atenção, leia-o sem tentar respondê-lo na imediaticidade do pensamento subsequente. Pois bem, atravessar a rua sem olhar para os dois lados é um erro grosseiro?  
Alguns podem asseverar sem titubear que sim, outros talvez fiquem na dúvida, mas o certo é que a resposta depende da análise do contexto fático, uma vez que atravessar a rua sem olhar para ambos os lados, em Piancó, Sertão da Paraíba, de madrugada, não seria a mesma coisa de atravessar a avenida Agamenon Magalhães em Recife, em pleno horário de pico de trânsito, às 12h45 de uma segunda-feira. Imagine a sua cidade e pondere sobre as possibilidades de respostas para o questionamento apresentado. Muda o contexto, muda a percepção sobre a temeridade da conduta. 
Portanto, a análise do erro pressupõe o exame da conduta do agente e esta não pode ser dissociada do contexto fático, das alternativas possíveis, dos obstáculos e das dificuldades reais de gestão. 
Por fim, cabe-nos lembrar Belchior[6], uma vez que “sons, palavras, são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém”. E eu não posso escrever sem deixar de apresentar essas singelas provocações a título de contribuição a respeito da admissibilidade do erro na seara do Direito Administrativo.
<hr />
[1] NADER. Paulo. Introdução do Estudo do Direito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2014.  
[2] DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2020. 
[3] Trecho da música Errare Humanum Est. Tradução: errar é próprio do ser humano. 
[4] Decreto-lei n. 4.657/1943, modificado pela Lei n. 13.655/2018: Artigo 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.  
[5] Artigo 22, §1º, Decreto-lei n. 4.657/1943, modificado pela Lei n. 13.655/2018. 
[6] Trecho da música “Apenas um rapaz latino americano”.

51354236534_c6d885a352_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Análise do erro pressupõe exame da conduta do agente e esta não pode ser dissociada do contexto fático

Seria a intolerância ao erro do agente público o espírito de nosso tempo?

A análise do erro pressupõe o exame da conduta do agente e esta não pode ser dissociada do contexto fático, das alternativas possíveis