Bruno Teixeira Peixoto

José Augusto Medeiros

No fim de abril, a United States Securities and Exchange Commission (SEC), agência federal responsável por regular o mercado financeiro norte-americano – de modo similar à CVM brasileira –, promoveu uma ação judicial em face da Vale S.A. Entre as razões principais fixadas constou o cometimento de supostas práticas de falseamento e de fraude ligadas à divulgação da segurança de barragens administradas pela empresa brasileira.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Segundo a peça inicial apresentada pela SEC, as condutas imputadas à Vale seriam: (1) obtenção indevida de declarações de estabilidade para a barragem de Brumadinho (MG) usando conscientemente dados laboratoriais não confiáveis; (2) ocultação de informações materiais de auditores de segurança sobre sua barragem; (3) desconsideração das melhores práticas aceitas e os padrões mínimos de segurança; (4) remoção de auditores que ameaçavam a capacidade da Vale de obter declarações de estabilidade de barragens; e (5) prática de declarações falsas e enganosas aos investidores.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A despeito da tragédia ocorrida em 2015, com o rompimento de barragem de minério em Mariana (MG), a SEC argumentou que a Vale “obteve, durante um período de mais de dois anos, de fevereiro de 2016 a outubro de 2018, de forma consciente ou imprudente, oito declarações de estabilidade fraudulentas e enganosas relacionadas a auditorias corrompidas da barragem de Brumadinho”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Dessa forma, apontou a agência norte-americana, “a ocultação da Vale da verdadeira condição de segurança da barragem de Brumadinho e de outras barragens de rejeitos teria causado a publicação de Relatórios de Sustentabilidade e demais divulgações ambientais, sociais e de governança (ESG) em condições materiais falsas e enganosas, violando leis federais antifraude em valores mobiliários”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A ação movida pela SEC ainda terá pela frente a sua regular e obrigatória tramitação, com a participação de todos os atores, incluindo evidentemente a Vale, cabendo ao Judiciário norte-americano apreciar e decidir a respeito.
Independentemente do caminho a ser dado para esse caso concreto paradigmático, retorna à cena a discussão do “sense” e “nonsense” sobre a efetividade da regulação em compliance ESG, relacionando com muito mais ênfase o tratamento das divulgações dos impactos ambientais, sociais e de governança por grandes empresas.
Na linha de uma primeira exposição neste mesmo espaço<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, cada vez mais se torna preciso ampliar o debate estrutural e necessário pela reflexão em torno do consenso e do absurdo relacionados à efetividade do framework regulatório em gestão e divulgação de impactos ESG.
E motivos para tanto não faltam, a bem da verdade são muitos pelo mundo, como os recentes casos de “due diligence” em cadeias logísticas ligadas ou afetadas por práticas ilegais ou irregulares na área ambiental, climática, social e de governança de empresas e organizações.
O avanço das práticas controversas de “greenwashing” ou “socialwashing” e toda sorte de lavagens e maquiagens sobre as iniciativas de responsabilidade de empresas e organizações, privadas ou públicas, igualmente deriva do ambiente regulatório.
Não se pode ignorar as capturas por meio de lacunas ou ineficácias em exigências ou mecanismos que, no desejo de incentivar boas práticas e dar espaços voluntários para os chamados “players de mercado”, alimentam justamente a desvirtuação daquilo que almejam regular.
A onda ESG – aos trancos e barrancos, entre absurdos e tentativas de consensos – avança no Brasil e no mundo. No entanto, perdura a necessidade de esforço com o objetivo de atingir um “sense” daquilo que deve ser concebido como fundamental para a mensuração e a concretização efetiva dos padrões ESG. Quer-se, com isso, afastar-se de um “nonsense” regulatório.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
À luz da mencionada ação promovida pela SEC, sobretudo tendo em conta suas argumentações fáticas e jurídicas ligadas às supostas fraudes em relatórios e publicações ESG ligados à Vale, muito há de se avançar no que se refere a uma efetiva regulação dos impactos ambientais, sociais e de governança reportados e divulgados por empresas e organizações.
Com efeito, relatórios de sustentabilidade e reportes de impactos ESG, desprovidos de critérios de aferição estruturados e mensurados – ou mensuráveis – pelas autoridades regulatórias, não apenas estão se mostrando aquém de atingir e alterar qualitativamente a condução do poder econômico por empresas e grandes organizações, como também permanecem alimentando absurdos ou “nonsense” acerca do que seria concretamente um desejado estado de conformidade ou compliance em ESG.
O cenário torna-se ainda mais complexo quando se constata que, mesmo com a medida judicial promovida pela SEC, as ações mobiliárias da Vale adquiriram significativo aumento em seus valores, isso pouco tempo após a divulgação da referida ação.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
De modo geral, o quadro ilustra um velho dilema do mundo jurídico: o afastamento entre o Direito e a realidade social. Muito embora a sociedade atual tenha escancarado a necessidade de um novo padrão econômico, vinculado e atento às diretrizes ambientais, sociais e de governança mais aprimoradas, a lógica do capitalismo contemporâneo insiste num modelo de mercado apático a transformações desta ordem. Prevalece, assim, uma estrutura que separa Estado, mercado e sociedade civil.
O aumento das ações mobiliárias da Vale mesmo diante da atuação da SEC é um retrato fidedigno desse contexto. Especialmente nas últimas quatro décadas, o processo de globalização dos circuitos econômicos colocou (e continua a colocar) em xeque os sistemas estatais de poder, entre os quais o poder de polícia regulador, muitas vezes o transformando em mero penduricalho. Isso decorre do fato da mundialização econômica ter garantido que as empresas escapassem da ação reguladora do Estado, apoiando-se em mercados externos para crescer.
Daí que, se décadas atrás a demanda imposta era a de fortalecimento da regulação ante a descentralização da figura de Estado, agora o desafio é pensar o sentido da dinâmica interdisciplinar da regulação. Essa reflexão invariavelmente implica questionar as tentativas de substituição dos governos por estruturas de governance neutras, que apenas representam interesses econômico-financeiros segmentados.
Do mesmo modo, coloca-se em cena o imperativo de reformular (i) a fiscalização das técnicas de manipulação de dados de sustentabilidade em relatório públicos, (ii) o compartilhamento de competências das autoridades reguladoras acerca dessa sistêmica fiscalização e (iii) a atribuição do rótulo ESG às condutas e práticas corporativas.
A alteração das estruturas governamentais ligadas às práticas ESG configura uma espécie de metamorfose do capitalismo, a qual, por sua vez, precisa do Direito para “realizar mercados”. Esse contexto abre uma janela para perceber que a função regulatória ligada à matéria imprime um “dever-poder multidisciplinar” inerente à progressiva interdependência dos sistemas econômico-financeiros a outros objetivos de responsabilidade social, ambiental e de governança.
A atuação da SEC induz uma reflexão quanto à formatação de mecanismos regulatórios que sejam capazes de sincronizar as forças atuantes no mercado e direcioná-las para valores outros que não apenas o do acesso a dividendos ou da eficiência operacional.
Para os agentes de mercado, o sinal de alerta foi ligado: em que pese a alteração ou não da dinâmica regulatória, o poder de decisão sobre a alocação de capital vai cobrar uma conta cara por informações falseadas. Este parece ser o tom da discussão entre o “sense “ e “nonsense” sobre a efetividade da regulação em compliance ESG.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> U.S. SEC – United States Securities and Exchange Commission. SEC Charges Brazilian Mining Company with Misleading Investors about Safety Prior to Deadly Dam Collapse. 2022a. Disponível em: <a href="https://www.sec.gov/news/press-release/2022-72">https://www.sec.gov/news/press-release/2022-72</a> Acesso em: 25 de maio 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> U.S. SEC. Securities and Exchange Commission v. VALE S.A., Civil Action No. 22-cv-2405. United States District Court Eastern District of New York. 2022b, p. 1, tradução livre. Disponível em: <a href="https://www.sec.gov/litigation/complaints/2022/comp-pr2022-72.pdf">https://www.sec.gov/litigation/complaints/2022/comp-pr2022-72.pdf</a> Acesso em: 25 de maio 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> US. SEC, op. cit., 2022b, p. 5, tradução livre.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Idem, 2022b, p. 6, tradução livre.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> PEIXOTO, Bruno Teixeira; MEDEIROS, José Augusto. Sense e nonsense sobre compliance ESG. JOTA. 15/03/2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sense-e-nonsense-sobre-compliance-esg-15032021. Acesso em 25 de maio 2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> PEIXOTO; MEDEIROS, op. cit., 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> NEOFEED. Na Vale, recompra de ações “fala” mais alto que processo da SEC. 28/04/2022. Disponível em: <a href="https://neofeed.com.br/blog/na-vale-recompra-de-acoes-fala-mais-alto-que-processo-da-sec/">https://neofeed.com.br/blog/na-vale-recompra-de-acoes-fala-mais-alto-que-processo-da-sec/</a> Acesso em: 25 de maio 2022.

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JOTA

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