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Pode o Ministério Público escolher o que vai ou não denunciar?
Na infância das sociedades, o processo penal tinha feitio acusatório. Abstraindo-se de tempos da vingança privada, em que a vítima ou seu clã tomava a si o ritual de vingar o agressor, as primeiras formas de processo penal estabeleceram-se entre a vítima na função de acusador e o suposto agressor, perante uma assembleia passiva de homens respeitáveis da comunidade, que ao final proferia o julgamento, inocentando ou condenando o acusado. Essas são as linhas gerais do chamado “processo acusatório”. Quando o poder público, mesmo antes de assumir a conformação do estado moderno, percebeu que a função jurisdicional, notadamente a jurisdição penal, era importante demais para ser ignorada pelos detentores do poder e entregue à própria sorte da comunidade, os conflitos de natureza penal foram como que “confiscados” de seus protagonistas. Expropriado o conflito, surge o processo inquisitivo, a grosso modo aquele em que um só agente do estado, em geral alheio à controvérsia, assume as funções de investigar, acusar, defender e julgar. Autor e vítima do crime passam a meros expectadores, quando muito objetos de indagação, desse processo penal público. Em relação ao modelo anterior, o processo inquisitivo tinha a virtude de tratar a clientela do sistema penal com igualdade. A espada da lei era uma só, independentemente da capacidade da vítima ou do autor da infração penal de mobilizar poder em favor do castigo ou da absolvição. Este é o processo que marcou a era do Absolutismo.
No entanto, as revoluções burguesas, por curto espaço de tempo, trouxeram de volta o processo acusatório, mas logo tiveram que adaptá-lo aos novos tempos, instituindo um processo chamado “misto”, com ingredientes de ambos os sistemas. O sistema inquisitivo negava qualquer direito ao acusado. No sistema misto, o acusado assume a própria defesa na posição de parte de uma relação jurídica processual que se estabelece entre ele, o acusador e o juiz, agora um funcionário do estado. O mesmo estado, porém, não deixou ao particular, à vítima, a função de acusar, antes, criou uma magistratura própria, o Ministério Público, predisposto à tarefa de acusar e, assim, assegurar a imparcialidade do juiz. Estava então criado o processo penal de partes na forma em que hoje o conhecemos. Numa paródia do processo civil contencioso, o processo penal distribui as tarefas de acusar, defender e julgar a personagens distintos, de modo a assegurar decisões, se não mais próximas da verdade, pelo menos mais legítimas socialmente. Não interessa ao estado-juiz condenar o culpado mais do que absolver o inocente. Por isso, tanto as funções de acusar como de defender têm igual relevância, no sentido de trazer ao juiz todos os aspectos do fato delituoso, de sua autoria e suas circunstâncias. Não importa que o acusado queira conformar-se com a pena passivamente e abdique de sua defesa; nesse caso, o estado lhe nomeará um Defensor Público para defendê-lo, ainda contra sua vontade. E também não importa a opinião pessoal do agente do Ministério Público sobre o crime. Diante dos elementos de convicção necessários, ele está obrigado a oferecer a ação penal. Decerto pode ao final pedir a absolvição do acusado, ou até recorrer em seu favor, mas essa atitude não vincula o juiz, que pode condenar mesmo que o MP proponha a absolvição, assim como pode absolver mesmo que o acusado confesse o crime.
Por razões que aqui não vêm ao caso, surgiram dois grandes sistemas jurídicos no Ocidente: o chamado common law ou anglo-americano, que se estendeu pelos países de língua inglesa, e o chamado europeu-continental, civil law ou romano-germânico, que, da Europa continental, foi transplantado para o Brasil e toda a América Latina. No que aqui nos interessa, a persecução penal do common law oferece ampla margem de discricionariedade ao órgão da acusação, conhecida como prosecutorial discretion, enquanto o sistema do civil law consagra os princípios da legalidade, obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, deixando pouca ou nenhuma margem de opção para o Ministério Público quanto à conveniência (e até a utilidade) de iniciar um processo penal. Assim é no Brasil, com raríssimas exceções, como nas infrações penais de menor potencial ofensivo sujeitas a julgamento pelos Juizados Especiais Criminais, na suspensão condicional do processo permitida para crimes de médio potencial ofensivo, e, por último, nas situações de colaboração premiada, em que um criminoso confesso não é punido, ou não é punido como merece, apenas porque ajudou as autoridades a desvendar todo o crime e os demais autores.
Isso parece uma filigrana mas tem profundas consequências na maneira de encarar a tutela penal nos dois sistemas jurídicos. Ilustrativamente, poderíamos dizer que um promotor brasileiro, quando vê suas denúncias rejeitadas ou seus acusados absolvidos, põe a cabeça no travesseiro e dorme tranquilamente, ciente de que cumpriu com seu dever e que a Justiça foi servida. Um promotor inglês ou estadunidense, ao ver muitas de suas denúncias rejeitadas ou resultar em absolvições, ou não será reeleito na próxima legislatura, nos condados em que o cargo é eletivo, ou será convidado por seus superiores a mudar de profissão, porque está movimentando a máquina judiciária inutilmente. Para um agente do MP do sistema anglo-americano, de minimis non curat praetor (o pretor não cuida de ninharias). Para um agente do MP do sistema romano-germânico, o princípio da igualdade perante a lei não permite que uns sejam punidos e outros não por meras razões de conveniência, oportunidade ou utilidade.
Paradoxalmente, é possível demonstrar que o princípio da legalidade de um lado e o princípio da oportunidade de outro não passam de ideologias inspiradoras dos respectivos sistemas, sem grandes consequências práticas. Alguém duvida de que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, com sua prosecutorial discretion, processa e castiga mais do que um sistema jurídico pautado pelo civil law? As estatísticas estão a demonstrar que esses dois países apresentam as mais elevadas taxas de encarceramento por 100 mil habitantes no mundo. Cabe aqui assinalar que vários ordenamentos jurídicos da Europa continental têm feito consideráveis concessões ao princípio da oportunidade, aumentando o grau de discrição do Ministério Público quanto a deflagrar ou não a ação penal. Assim tem sido na Itália, na Alemanha, na França, dentre outros países que servem de inspiração para o Direito brasileiro.
Quando esses princípios foram inventados, ainda não eram conhecidos os modernos aportes da Criminologia e da estatística criminal, sobretudo a noção de “cifra oculta”, que consiste naquela parcela de crimes que, por diversas razões, não chegam a conhecimento das autoridades, ou, se chegam, não culminam numa condenação, embora possam ser elaborados e até punidos por outros controles sociais menos formais que o Direito penal. Mais grave do que a cifra oculta propriamente é a constatação de que os próprios órgãos da persecução penal – polícia judiciária, Ministério Público e juízes – também selecionam os casos em que vão trabalhar, embora nem sempre o façam de forma consciente ou deliberada, muito menos com emprego de algum critério objetivo. Na chamada “criminalidade de massa”, é sabido que as delegacias de polícia negligenciam notícias de crimes sem violência, forçando algum tipo de composição amigável, remetendo os denunciantes ao Procon e entidades semelhantes, ou qualificando a notícia como matéria cível. Também o Ministério Público seleciona, quando menos porque não consegue abarcar a avalanche de inquéritos que recebe (sem falar dos crimes de que tem notícia mas que jamais resultam sequer em um inquérito) diariamente e acaba priorizando os mais urgentes, ou os mais fáceis, ou os de menor volume, enquanto outros ingressam na vala comum da prescrição. O Judiciário também seleciona quando amplia generosamente os parâmetros do princípio da insignificância, usurpando função do legislador; quando exige dolo específico onde a lei não o prevê (por exemplo, em crimes relativos a licitações), ou a comprovação de dano efetivo em crimes formais ou de mera conduta, sugerindo que o Ministério Pública banaliza o exercício da ação penal. Os precedentes assim criados são posteriormente invocados e utilizados para justificar absolvições em casos de maior gravidade.
Ora, se a seleção acontece inevitavelmente tanto no common law quanto no civil law, até porque o crime é ilimitado mas os recursos para sua persecução são limitados, tudo que a proibição de seletividade faz é impedir a discussão sobre o fenômeno e a fixação de critérios objetivos e republicanos para sua realização. E não se diga que a seleção é em si ruim. Quem conhece o conto genial de Machado de Assis O Alienista e as modernas pesquisas criminológicas segundo as quais todos, sem exceção, alguma vez, cometem infrações penais, mas só alguns são alcançados pelas malhas do controle social penal, haverá de concordar que alguma seleção é útil ou, quando menos, necessária, a fim de que alguém fique do lado de fora, guardando a chave do cárcere.
No Brasil, há um tabu segundo o qual a seletividade oficialmente fixada, seja por critérios legais, ou internos da instituição Ministério Público, ou segundo a discricionariedade do seu agente, é inconstitucional. Todavia, afora a palavra “pública” na expressão “ação penal”, querendo significar que é exercida em regra por um órgão público, não há qualquer dispositivo na Constituição ou nos códigos penal e de processo penal que proíbam algum juízo de oportunidade sobre seu exercício.
Abstraindo-se da discussão sobre a constitucionalidade da seletividade oficial (porque informalmente ela existe e é inevitável, como visto), há fortes razões a recomendarem que os Ministérios Públicos brasileiros a regulamentem internamente. Como visto, a banalização da ação penal acaba levando a seletividade ao próprio Poder Judiciário, com a agravante de que as teses que utiliza, ao se converterem em jurisprudência, acabam estendidas a casos de maior relevância. Em segundo lugar, aplicação irrestrita e cega do princípio da legalidade ou obrigatoriedade (visto que a seletividade vai ocorrer mesmo assim) acaba por reforçar a realidade de que são as classes mais pobres e vulneráveis que constituem a clientela preferencial do sistema penal, embora a prática de infrações penais não seja sua exclusividade. Em terceiro lugar, há uma avalanche de infrações penais de menor importância que sobrecarregam as agências de controle penal, culminando em pedidos de arquivamento, absolvições por falta de prova e prescrição, sem qualquer vantagem para o estado e para os fins da lei penal.
Definir prioridades é próprio de qualquer organização que precise apresentar resultados, e no Ministério Público não deveria ser diferente. Existe um mercado do crime a que as instituições do estado devem reagir com presteza e eficiência. O artigo 37 da Constituição da República informa que a administração pública reger-se-á pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Eficiência, entendida como a capacidade de atender demandas ilimitadas com recursos limitados, compreende efetividade, competência, racionalização e economicidade. Uma vinculação obtusa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal (visto que já sabemos que sempre haverá seleção) não permite o uso racional dos meios humanos e materiais disponíveis, e podemos dizer até que fomenta seu desperdício, se empregamos as mesmas rotinas para processar o ladrão pé-de-chinelo e o crime organizado, por exemplo.
Há várias formas imagináveis de se instituir a seletividade: a partir da própria lei, mediante a eleição periódica de prioridades ou, inversamente, mediante a listagem de fatos que não serão objeto de persecução. Também será lícito indagar quem será o titular da seletividade, se o membro do MP individualmente, ou o Procurador-Geral com efeito vinculante para todos os membros, ou os órgãos colegiados de direção superior da instituição.
Como país latino e ibérico, caracterizado por teias de relações informais por vezes mais poderosas que as próprias leis, como o clientelismo, compadrios e patrimonialismo, o Brasil não está apto a adotar uma seletividade que fique ao puro arbítrio do promotor de Justiça ou procurador da República no caso concreto, sob pena de ver o instituto converter-se em instrumento de opressão, privilégios e prevaricação. Também o Procurador-Geral, por mais independente que seja, não está livre de pressões das cúpulas dos três Poderes e frequentemente não poderá resistir a elas. A melhor solução parece ser a que entrega a seletividade a critérios estabelecidos por órgãos colegiados, que periodicamente definam prioridades em audiência pública. Todos os Ministérios Públicos contam com câmaras de coordenação e revisão temáticas que estão técnica e politicamente aptas a exercer esse papel com maior imparcialidade. Exemplificativamente, poderão estabelecer que não serão perseguidos nos próximos dois anos, enquanto se observa o comportamento das estatísticas criminais, furtos em grandes lojas e supermercados, dotados de segurança pessoal e eletrônica; ou crimes patrimoniais de pequena monta e sem violência, tentados ou seguidos de reparação; ou drogas consumidas por pessoas adultas sem antecedentes criminais; ou o tráfico de maconha por indivíduo primário até uma determinada quantidade; ou infrações penais em geral que só chegarem ao conhecimento das autoridades depois de anos de sua prática, quando já se aproxima o implemento da prescrição; ou situações em que o agente, pelo mesmo fato, tenha sofrido sanção civil ou administrativa considerada suficiente à prevenção e repressão do crime.
Por fim, quanto a indagações de ordem legal ou constitucional, é possível demonstrar que, se o Ministério Público, em sua conformação institucional atual, decidir por aplicar o princípio da oportunidade na sua atuação criminal, não há meio jurídico de coibi-lo. A discussão sobre sua legalidade situar-se-á no plano meramente teórico. Como dominus da ação penal pública incondicionada, segundo deflui do art. 129 I da Constituição, não há mecanismo capaz de obrigá-lo a deflagrar a ação penal, a não ser que aja por dolo, prevaricação ou corrupção, o que não será o caso quando esteja a seguir diretrizes de órgão colegiado da administração superior da instituição. Se, ao invés de permanecer inerte, formular ao juiz requerimento de arquivamento e este dele discordar, o feito será remetido ao Procurador-Geral, que também poderá insistir no arquivamento. Nesse caso, o juiz nada poderá fazer, sob pena de converter-se em acusador perante si próprio. Decerto existe a ação penal subsidiária, conferida pela Constituição (art. 5º LIX), conferida ao ofendido para os casos em que o Ministério Público não a exercita no prazo legal, segundo o ritual do art. 29 do Código de Processo Penal. Tal legitimação poderia até ser ampliada para servir de controle sobre abusos no exercício da seletividade. Todavia, a prática tem mostrado, desde os tempos do sistema acusatório puro, que o particular, notadamente o ofendido, pouquíssimas vezes se interessa pela persecução penal de seu agressor (está mais interessado, segundo mostram algumas pesquisas, num ressarcimento, no registro da ocorrência a fim de receber a indenização devida pelo seguro, ou até num mero pedido de desculpas), que se dirá em relação a infrações penais de pouca relevância.
Com o tempo, a seletividade entrará na rotina do Ministério Público e, a partir dele, na rotina policial. Por outro lado, os juízes estarão cientes de que o MP só acionará a jurisdição em busca de uma pena para casos que realmente mereçam uma sanção criminal, e se sentirão menos autorizados a “legislar” com teses criadas ao sabor das circunstâncias. Tal prática não aumentará nem diminuirá a população carcerária, mas sem dúvida poupará a máquina penal de casos sem importância que acabam em absolvição ou prescrição, permitirá melhor qualidade no trabalho policial, na acusação penal e na prestação jurisdicional. Ser contra esse avanço, por apego cego a um princípio da obrigatoriedade que na prática não existe, pode trazer paz para a consciência de seus adeptos, mas não melhorará a qualidade da tutela penal e do controle penal da criminalidade, que é a única razão legitimadora do castigo numa sociedade em que o Direito há tempos se desvinculou do divino.
*Carlos Eduardo Vasconcelos é Subprocurador-Geral da República e Professor de Ciências Penais

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JOTA

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Seletividade na persecução penal

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