Marcus Barberino

O princípio da segurança dos cidadãos está atrelado à legalidade, ou ao menos aspira estar, desde que os barões da terra propuseram um pacto ao Rei João Sem Terra. Ainda que não tenha sido cumprida, a Magna Carta foi entronizada na história do direito constitucional ocidental como a tentativa de impor limites ao poder absoluto e dar aos cidadãos a sensação de segurança da sua vida e do seu modo de viver. Até o Bill of Rights, a Inglaterra passou por quatro séculos tumultuados.
As limitações construídas pelos textos constitucionais ao longo do século 19 mostraram-se insuficientes para dar contar do espraiamento do "bem viver" para a grande massa de cidadãos. Insuficiência, contudo, não quer dizer descarte. Se a formulação inicial destinava-se a proteger a propriedade da terra e o bem viver dos seus donos, o constitucionalismo contemporâneo buscou dar novos significados e abrangência à relação dialógica da segurança com o bem viver, desta vez para buscar formas que de fato alcancem os cidadãos que trabalham.
O princípio da segurança continuou presente nos textos constitucionais do século 20 e ainda é cláusula presente nos textos vigentes neste século 21. Foi redimensionado, contudo. Não é possível dar conta das relações jurídicas em escala global sem calibrar o poder dos estipulantes. Nem em escala nacional. Não é possível confrontar a liberdade dos cidadãos com o poder técnico, político, econômico, comunicacional e jurídicos dos estipulantes, sem fortalecê-la a seus representantes coletivos. Um desses instrumentos é a limitação da jornada de trabalho. Ela é expressão da liberdade de viver e contratar dos que trabalham.
Nesta semana o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá encerrar um dos julgamentos mais estruturais para a compreensão das relações de trabalho e, atrevemo-nos a dizer, das relações de consumo, ao concluir o julgamento da <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4915149">ADPF 381</a>. Direitos são seres históricos e culturais. Nascem e morrem sobre certa sociabilidade, com suas contradições e seus compromissos pragmáticos. Nessas torrentes e fluxos de interesses e poderes, encontram-se os cidadãos, os seres humanos que com seu trabalho construíram ao longo do tempo todos os objetos culturais que conhecemos, inclusive os direitos.
Certas regras criadas nas convenções e acordos coletivos de trabalho, a pretexto de regular fenômenos sociais e econômicos destituídos de proteção mínima (o trabalho externo sem possibilidade de controle), atuam exatamente para esvaziar o conteúdo jurídico de outras normas de proteção social.
É sempre bom salientar que a limitação da jornada de trabalho é o instrumento jurídico utilizado desde o século 19 para dar concretude a outros direitos fundamentais dos cidadãos. Com efeito, são as restrições impostas às organizações públicas e privadas quanto ao uso do tempo biológico útil dos cidadãos que permitem aos adultos que trabalham exercitar outras dimensões das suas vidas, como frequentar seus cultos religiosos segundo a liberdade de crença; dar atenção aos membros das suas famílias; exercer o direito de associação; ou praticar atividades de lazer e culturais.
Afinal, a extensão sistemática da jornada de trabalho exclui a possibilidade de exercitar as demais dimensões da vida civil dos cidadãos, já que as 24 horas do dia são imutáveis e um terço delas destinadas ao sono e sua função reparadora do equilíbrio físico e psíquico dos seres humanos.
Regra geral contida na Constituição da República é a limitação da jornada. As exceções ao regime da limitação são fenômenos infraconstitucionais regulados pela impossibilidade técnica de exercício da boa fé objetiva. Não por outra razão, a legislação infraconstitucional elegia como exceção ao controle de jornada o trabalho dos que, mesmo sendo empregados, executam o contrato como que substituindo o empregador,  com tal grau de poder sobre o destino do empreendimento que o controle de jornada torna-se impossível.
E também havia, na sociedade analógica, a possibilidade de o trabalho externo ser insuscetível de controle. Mas aqui entramos na casuística de cada conflito, a depender das possibilidades técnicas de cada organização pública ou privada de aferir a jornada de tais empregados. Como se vê, não haveria espaço para a autonomia coletiva transformar o mensurável, ainda que executado externamente, em imensurável ou, melhor dizendo, imunizado pelo poder de estipulação privada, pois as limitações à extensão da jornada são inscritas para dar cabo de especificidades que surgem no cotidiano de fazer a civilização e seus bens culturais, sempre através dele: o trabalho.
A limitação da jornada é a regra de mais conexão do direito do trabalho com a saúde e a segurança não apenas de quem trabalha, mas de todos que tomam contato com a execução dessas jornadas. Para tanto, basta pensar na segurança das estradas e no risco de sinistralidade representadas pelo trabalho extensivo e habitual de motoristas e dos recursos que utilizam para manter-se insone. Afirmar que suposta lacuna da lei pode ser imunizada pela autonomia coletiva, em detrimento da hermenêutica jurídica dos casos concretos, é esvaziar de eficácia semântica o direito à limitação da jornada, à proteção ao meio ambiente do trabalho e às regras de saúde e segurança no trabalho.
Dito em outros termos, mas com o mesmo vetor de proteção aos bens constitucionais sociais, não se pode contratar a permanência do risco sanitário e ambiental para fixar a não incidência para o criador do risco das sanções decorrentes do uso do trabalho. Esta é a noção que melhor aproveita a autonomia de contratar e o curso do tempo sobre a vida dos seres humanos que trabalham e seus direitos.
Sem isso vamos dar apenas mais poder de estipular ou não estipular aos novos "joões sem terra". E, no estágio atual de uma sociedade complexa como a brasileira, sabemos quem são esses novos "joões": grupos industriais que atuam em cadeias nacionais e mesmo globais, grandes proprietários rurais, grandes bancos, fundos financeiros e grandes cadeias de comércio e serviços.
Será mesmo que o princípio da segurança do sistema constitucional e infraconstitucional se destina apenas a esses formadores e estipuladores de regras jurídicas privadas e contratuais?

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Ao concluir julgamento da ADPF 381, STF encerra análise relevante para compreensão das relações de trabalho

Segurança jurídica é direito difuso de todos brasileiros ou só dos estipulantes?

Ao concluir julgamento da ADPF 381, STF encerra análise relevante para compreensão das relações de trabalho