Rubens Vidigal Neto

Vista como alternativa de alívio para as contas públicas da União, Estados e municípios neste momento de crise econômica e fiscal, a securitização de créditos públicos tem sido objeto de diversas discussões, tanto no âmbito do Congresso Nacional – notadamente em torno do Projeto de Lei do Senado Federal nº 204/16 (PLS 204/16) –, bem como em diversos veículos de comunicação. 
No artigo “<a href="https://www.jota.info/artigos/pls-20416-e-o-mito-da-securitizacao-da-divida-publica-um-mau-negocio-vista-16102016">PLS 204/16 e o mito da securitização da dívida pública: um mau negócio à vista</a>” publicado no portal Jota em 16 de outubro de 2016, o autor Pedro Henrique de Ramos Sales tece importantes comentários ao PLS 204/16 e a certas questões conceituais referentes às operações dessa natureza. Em que pese a razoabilidade de diversas considerações do autor, com o intuito de contribuir para esse debate, apresentamos, a seguir, alguns contrapontos.
Primeiramente, cabe um esclarecimento acerca das manifestações do Tribunal de Contas da União (TCU) questionando a regularidade da utilização de estruturas específicas para a securitização de créditos públicos. Apesar de haver manifestações do TCU nesse sentido[1], não havia, até o momento em que este artigo foi escrito, decisão definitiva de mérito do TCU condenando qualquer dessas estruturas.
Em um dos últimos andamentos do processo TC 016.585/2009-0 (ao qual foram apensados todos os processos que versam sobre operações de securitização de créditos públicos), em resposta à solicitação do TCU, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal (CAE) se manifestou no sentido de que as operações de securitização de créditos públicos não representam assunção de compromisso financeiro por parte dos entes estatais, exceto quando a estrutura adotada venha a criar passivos para futuros governantes, ou seja, contenha mecanismos de garantia que impliquem compromissos ou comprometimento financeiro por parte do ente estatal.
Referido posicionamento da CAE vai ao encontro das manifestações da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) sobre esse tema[2], e da manifestação do Ministro Bruno Dantas, do TCU, no processo TC 043.416/2012-8, na qual afirma que “a antecipação de recursos futuros, por si só, não é condição suficiente para a caracterização de operação de crédito. A questão deve ser avaliada em cada caso concreto à luz, principalmente, dos aspectos contratuais, a fim de verificar a existência ou não de obrigação por parte do cedente de garantir eventual crédito inadimplido pelo devedor. Havendo tal obrigação, está-se a falar de operação de crédito; não havendo, inexistiria obrigação de pagar por parte do cedente, mas, apenas, obrigação de fazer (repassar ao cessionário o numerário entregue ao credor pelo devedor inscrito em dívida ativa), não se tratando de operação de crédito”. De acordo com nosso entendimento, essa manifestação reflete de maneira adequada o conceito de operação de crédito trazido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
No artigo, questiona-se também a legalidade da vinculação das receitas originadas da venda de créditos a destinações específicas, conforme previsto no PLS 204/16. Como a destinação da receita de impostos é vedada pela Constituição Federal, argumenta-se que se o objeto da securitização forem créditos originados de impostos, a vinculação prevista no PLS 204/16 seria inconstitucional. Muito embora a crítica apresentada seja pertinente e o assunto mereça debate mais aprofundado, diferentemente do afirmado, apresenta-se uma solução para o problema. A receita da venda dos créditos, segundo o PLS 204/16, passaria a ser enquadrada como decorrente da venda definitiva de patrimônio público. Com isso, sobre a destinação dessa receita se aplicaria unicamente o disposto no artigo 44 da LRF, que veda a sua utilização para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.
Outro ponto levantado no referido artigo seria a suposta possibilidade de caracterização da securitização de créditos públicos como uma antecipação de receita orçamentária, modalidade de operação de crédito prevista na LRF. Entendemos que essa caracterização não é possível.
Os créditos inscritos em dívida ativa são referentes a exercícios passados, os quais já deveriam ter sido recebidos, mas que não foram. Essa caracterização não é alterada para os créditos que tenham sido objeto de parcelamentos. As leis que tratam do tema, de modo geral, são claras ao dispor que a constituição do parcelamento não implica novação da dívida[3], de forma que, em caso de descumprimento das obrigações assumidas no contexto da adesão ao parcelamento, todos os benefícios concedidos, como prazos e isenções de multas e juros, são imediatamente cancelados, retornando a dívida às condições originais.
Adicionalmente, como já manifestado pela PGFN em diversos pareceres, assim como pela CAE no parecer acima mencionado, a mera alienação de um ativo – no caso, o fluxo de recebimento de créditos – não pode ser considerada como uma antecipação de receitas orçamentárias. Ao se alienar um ativo, transforma-se uma “receita futura”, real ou potencial, em “receita presente”. Entretanto, isso não se confunde com a hipótese de antecipação de receita que a LRF restringe. De forma elucidativa, a PGFN[4] utiliza-se do exemplo da alienação de um imóvel objeto de locação: com a venda do imóvel, recebe-se hoje o seu preço e abdica-se dos valores futuros dos aluguéis. Da mesma forma, quando o Estado cede um crédito, está simplesmente recebendo um valor presente em troca de potenciais valores futuros decorrentes de seu pagamento.
Como ponto final e, segundo ele, determinante de seu artigo, Pedro Sales argumenta que a securitização de dívida ativa seria um negócio manifestamente desvantajoso. Para defender essa posição, sustenta que o deságio oferecido teria de ser muito elevado para tornar o negócio viável e que, de acordo com o PLS 204/16, no caso de cessão de créditos oriundos de dívida pública cuja receita seja partilhada por mais de um ente federativo, o custo do deságio teria de ser arcado exclusivamente pelo cedente.
Como hipótese, ilustra que na securitização de créditos parcelados de ICMS no valor total de R$100 mil, seria necessário um deságio de 50%. Os municípios têm direito a 25% da receita do ICMS. Para que não fossem prejudicados com a securitização, o que estaria vedado pelo PLS 204/16, o custo do deságio em relação à totalidade do crédito teria de ser arcado exclusivamente pelo Estado. Diante desse cenário, dos R$50 mil recebidos com a securitização, R$25 mil teriam de ser destinados aos municípios. Para o Estado, restariam apenas R$25 mil dos R$75 mil originais, o que seria, na opinião do autor, um mau negócio.
Cabe esclarecer, porém, que a securitização pode recair exclusivamente sobre a parcela dos créditos de titularidade do ente federativo cedente. Desse modo, no caso de uma securitização realizada por um Estado, seria possível ceder apenas 75% do fluxo de recebimentos de créditos parcelados de ICMS. Os municípios não teriam seus recursos adiantados, e continuariam a receber os seus créditos, no valor integral, no momento em que forem pagos pelos devedores. Esse foi, inclusive, o modelo utilizado nas operações de securitização do Estado de São Paulo[5]
Voltando ao exemplo hipotético relatado acima, com um deságio de 50%, seria, portanto, possível ao Estado ceder exclusivamente R$75 mil em receitas futuras para fins de securitização, de modo a receber, em contrapartida, R$37,5 mil à vista. Resta, ainda, enfrentar a questão se esse seria um bom ou um mau negócio.
O percentual de desconto praticado é sem dúvida um elemento essencial para se definir se um negócio de venda de créditos é vantajoso. No entanto, não há como avaliá-lo de forma isolada, sem referenciais adequados. O mesmo desconto pode ser absurdamente alto se o devedor for uma grande empresa com situação financeira confortável e extremamente baixo caso o pagador seja um devedor contumaz sem nenhum patrimônio.
No que tange à venda de créditos por um ente federativo, para se auferir a qualidade do negócio da perspectiva do cedente, seria necessário, dentre outros pontos, avaliar-se a qualidade da carteira cedida de modo a se estimar a expectativa de recebimento e os riscos de inadimplência. Se a qualidade da carteira de créditos cedida for boa, com baixo histórico de inadimplência, a taxa de desconto será certamente menor do que a aplicada para uma carteira de pior qualidade.
Para definição da conveniência da operação, também é recomendável ao ente federativo comparar o custo total dessa venda de créditos públicos (desconto aplicado e demais custos com a estruturação da operação) com o de outras alternativas disponíveis para captação de recursos, como um empréstimo, por exemplo.
Em suma, não nos parece possível se fazer um juízo definitivo e absoluto acerca da conveniência, da perspectiva financeira, da operação de securitização de créditos públicos considerada de forma abstrata. Essa análise somente pode ser realizada para casos concretos, avaliando-se as características específicas que lhes sejam pertinentes. A securitização de créditos públicos não é, em si, um mau ou um bom negócio. Não é a salvação da lavoura, tampouco o diabo encarnado. É apenas mais uma ferramenta para captação de recursos, cuja conveniência de utilização dependerá das circunstâncias específicas atinentes a cada caso.
O tema da securitização de créditos públicos é relativamente novo no Brasil. Não obstante, diante da rápida deterioração da saúde financeira dos entes federativos, a possibilidade de se utilizar dessa ferramenta vem ganhando crescente importância. Na precificação dos valores mobiliários lastreados em créditos públicos, a segurança jurídica da operação certamente será um dos elementos a ser considerado. Quanto menor o risco de questionamento jurídico da securitização, menor será o retorno exigido pelo investidor e o custo para o ente federativo. Nesse cenário, é salutar que o debate qualificado sobre o assunto seja estimulado, de modo a se antecipar questionamentos jurídicos e se aperfeiçoar essa estrutura de captação de recursos, especialmente se considerarmos que o processo legislativo do PLS 204/16 ainda está em curso.
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[1] Incluindo (a) a decisão do Ministro Bruno Dantas no processo TC 043.416/2012-8, que concede medida cautelar determinando à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a suspensão dos registros de todos os fundos de investimento em direitos creditórios não-padronizados (FIDC-NP) destinados a investir em créditos decorrentes de receitas públicas, e (b) a manifestação do Ministro Raimundo Carreiro no processo TC 016.585/2009-0, em voto proferido em 6 de abril de 2016, no qual condena de um modo geral todas as estruturas utilizadas por Estados e municípios em operações de securitização de créditos públicos. 
[2] Notadamente o Parecer PGFN/CAF/nº 1579/2014. 
[3] É, exemplificativamente, o que dispõe o artigo 16, § 2º da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10522.htm">Lei nº 10.522/2002</a>, que disciplina o parcelamento ordinário de débitos de qualquer natureza para com a Fazenda Nacional: “O parcelamento será formalizado, mediante a celebração de contrato de confissão, consolidação e parcelamento de dívida, sem implicar novação, junto ao Banco do Brasil S.A., na qualidade de agente financeiro do Tesouro Nacional.” Os programas de parcelamento de débitos específicos, igualmente, trazem previsões nesse mesmo sentido, cf. artigo 16 da <a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/mpv%2520303-2006?OpenDocument">Medida Provisória nº 303/2006</a>; artigo 8º da <a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/mpv%2520449-2008?OpenDocument">Medida Provisória nº 44/2008</a>; artigo 8º da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/Lei/L11941.htm">Lei nº 11.941/2009</a>; artigo 65, § 22, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12249.htm">Lei nº 12.249/2010</a>; e artigo 25 da <a href="http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&amp;idAto=54706">Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 13/2014</a> (regulamenta a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Lei/L12996.htm">Lei nº 12.996/2014</a>). 
[4] Cf. Parecer PGFN/CAF/nº 1579/2014. 
[5] De acordo com o prospecto da oferta pública de debêntures da 3ª emissão da Companhia Paulista de Securitização – CPSEC, referente à operação de securitização de créditos públicos do Estado de São Paulo, foram excluídos da operação de securitização uma parcela correspondente a, no mínimo, 26% (vinte e seis por cento) do saldo de créditos públicos parcelados devido por cada devedor, que seria correspondente à quota parte dos municípios e às verbas honorárias devidas à Procuradoria Geral do Estado, em razão da cobrança dos referidos créditos.

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