Gabriel Demetrio Domingues

Ultrapassado o “breve século XX”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que se iniciou com a Primeira Guerra Mundial e terminou com a queda do muro de Berlim, e transcorrido o curto período de transição, e absoluta hegemonia norte-americana, apressadamente designado por alguns como o “fim da história”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o século XXI verdadeiramente se inicia com a pandemia do coronavírus (Covid-19), o maior teste de estresse para as economias da comunidade global desde a Grande Depressão.
O clima atual é de guerra contra o vírus e, como em toda a guerra de defesa, as palavras de ordem são: organização, resiliência e, principalmente, cooperação. A cooperação em todos os níveis (comunitário, nacional, global), nas diversas esferas (estado, mercado e sociedade) e nas várias áreas (em especial sanitária, científica e industrial) é, e continuará sendo, a melhor estratégia de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19; o que realmente evitará um sofrimento ainda mais excessivo, quando não uma queda à barbárie.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Toda guerra termina, e com o coronavírus não será diferente. Mas, para além das irreparáveis vidas perdidas, haverá indeléveis cicatrizes econômicas. No plano pessoal, muitas famílias terão suas economias arruinadas de forma permanente e, principalmente, muitos desempregados não retornarão às suas funções originais no mundo pós-pandemia, marcado pela automação e digitalização aceleradas, e em que a vida (e a economia) digital tende a assumir importância preponderante.
A fim de preservar a dignidade e autonomia dessas pessoas mais vulneráveis, o que já seria um valor bastante por si só, mas também para que não sucumbam vítimas dos discursos de ódio e rancor propagandeados pelos populismos dos mais diversos matizes ideológicos – idênticos apenas no viés autoritário – e, assim, proteger as democracias cada vez mais frágeis e ameaçadas, revela-se fundamental pensar em novas políticas públicas para enfrentar os desafios dessa nova realidade.
Há muito se discute sobre um programa de renda básica universal, mas, para além das questões ideológicas, nos países em desenvolvimento, a realidade com que se impõe lidar, em primeiro lugar, é de ordem financeira: como custear um programa como esse e, mesmo que possível fosse custeá-lo de forma sustentável, considerando que os recursos da sociedade brasileira são, agora mais do que nunca, bastante escassos, o que poderia ser aprimorado para tirar essa ideia do papel?
No Brasil, desde o advento da Constituição de 1988, existe com previsão no art. 239, § 1º, um instrumento bastante poderoso: o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A concepção do Constituinte Originário ao criá-lo foi bastante sensata: vincular de forma permanente a arrecadação das contribuições do PIS/PASEP para o custeio das despesas do seguro-desemprego e do abono salarial em benefício do trabalhadores-empregados, mas reservando parte dessa mesma arrecadação (originalmente 40%, hoje 28%) para a formação de uma poupança pública compulsória no FAT (patrimônio público) cujos rendimentos do capital perpétuo aplicado através do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> serviriam para retroalimentá-lo e torná-lo no futuro, com grande possibilidade, autossuficiente para o custeio daqueles benefícios. Surgia, assim, uma espécie fundo patrimonial (“endowment fund”) do trabalhador.
Os investimentos produtivos do capital do FAT executados através dos financiamentos do BNDES, que arcaria com o risco de crédito dessas operações, na medida em que focariam na geração de empregos e renda, também serviriam para esse viés de retroalimentação. Tais investimentos tenderiam a reduzir as despesas do próprio Fundo, devido à criação e manutenção de empregos, e ainda serviriam para aumentar a sua arrecadação, dado ser o PIS/PASEP um tributo incidente sobre o faturamento das empresas que se beneficiaria do crescimento econômico propiciado pelos mesmos investimentos produtivos.
Esse arranjo que tem, de um lado, uma contribuição especial (PIS/PASEP, que, a propósito, merece outro nome, já que desde 1988 este tributo não serve mais para financiar o antigo Fundo PIS/PASEP, e sim o FAT) e de outro lado uma destinação tríplice (poupança/investimentos/benefícios) ao longo dos anos tem funcionado bem<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Contudo, considerando as importantes mudanças ocorridas na estrutura e dinâmica das relações de trabalho nesses últimos trinta anos após a promulgação da CF/1988, e principalmente agora no mundo pós-pandemia, faz-se necessário refletir sobre uma ressignificação do FAT.
Em primeiro lugar, o seu escopo. Em que pese a denominação Fundo de Amparo ao Trabalhador, os principais benefícios desse Fundo hoje (seguro-desemprego e abono salarial) são focados exclusivamente na categoria dos empregados (trabalhadores com carteira assinada), a qual, na economia atual, representa uma minoria dentro de um universo mais amplo de trabalhadores, o qual abrange também autônomos, microempreendedores individuais, cooperados, produtores rurais pessoas físicas etc., e que, comparativamente aos empregados, se encontram em situação mais desfavorecida em termos de direitos e benefícios.
<blockquote class="jota-article__eye">Então, faz sentido repensar o FAT, redesenhando e horizontalizando os seus benefícios, a fim de torná-lo significativo não somente para os empregados, mas também para os trabalhadores de um modo geral.</blockquote>
As perspectivas de automação e digitalização de um mundo pós-emprego no século XXI, com a transformação acelerada pela pandemia da Covid-19, reforçam ainda mais essa necessidade<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Nesse sentido, dentro da estrutura orçamentária atual do FAT, seria possível pensar na substituição do auxílio-desemprego e do abono, por um novo benefício de caráter mais transversal e focado em quem realmente precisa, sob a forma de uma renda mínima garantida de R$ 250/mês para trabalhadores desempregados, autônomos, microempreendedores individuais (MEI), dentre outros, com renda até 1 salário mínimo (SM). A fim de não desestimular a busca por ocupação, seria importante que o benefício voltado para o autônomo e MEI fosse reduzido em escala gradual, por exemplo, diminuído pela metade (R$ 125/mês) quando o trabalhador ascendesse à faixa de 1 até 2 SM, e excluído para detentores de patamar de renda acima de 2 SM. O custo estimado de um benefício desse tipo, considerando um universo de aproximadamente 25 milhões de indivíduos, seria da ordem de R$ 66 bilhões/ano, a depender das condicionantes envolvidas.
Como não se trata de um Auxílio Emergencial, seria fundamental estabelecer contrapartidas razoáveis a fim de induzir a geração de benefícios sociais. Dentre os requisitos e contrapartidas possíveis, além da maioridade civil, poderia se pensar em uma meta de escolaridade mínima a ser perseguida pelo trabalhador (p.ex., se residente em área rural, ter completado no mínimo a alfabetização ou estar efetivamente matriculado em escola ou, se nascido a partir de 2011, ter o ensino fundamental I (5ª série); se trabalhador residente em área urbana, ter concluído no mínimo o ensino fundamental (9ª série) ou, se nascido a partir de 2011, o ensino médio).
Contrapartidas vinculadas à educação podem funcionar como importante estímulo aos jovens para a conclusão dos ciclos de ensino, o que, como resultado, tende a reforçar o capital humano, a participação qualificada na sociedade civil e o exercício dos direitos democráticos, além de reduzir os índices de criminalidade, beneficiando a coletividade como um todo.
Contudo, mesmo com todas essas condicionantes, é possível que o orçamento FAT (hoje da ordem de R$ 60 bilhões/ano, já considerando uma receita de cerca de R$ 13 bilhões/ano resultado dos rendimentos do seu patrimônio) não seja suficiente para suportar integralmente o novo benefício, tornando necessário considerar a remodelagem dos atuais benefícios focados exclusivamente no trabalhador detentor de emprego formal (abono e seguro desemprego).
Quanto a estes dois últimos, enquanto o abono inegavelmente perde relevância em prol da viabilização de um programa de renda mínima, o seguro desemprego não precisaria ser necessariamente descontinuado, bastando, para tanto, uma revisão do atual arcabouço do FGTS, o que poderia ensejar inclusive uma eventual redução da carga suportada pelo empregador ou uma compensação entre as cargas das micro/pequenas e das médias/grandes empresas, de forma que as últimas contribuíssem mais e as primeiras menos.
Em segundo lugar, parece razoável também pensar na criação de um novo tributo e vincular o produto da sua arrecadação ao FAT. Esse tributo poderia assumir a forma de uma nova Contribuição Setorial Especial da Economia Digital (SEED), com uma alíquota de 5% sobre o faturamento ou os pagamentos às grandes plataformas de internet concentradoras da intermediação de serviços na economia digital, tais como publicidade e propaganda, transportes de passageiros, delivery de refeições, hospedagem, vendas de mercadorias, serviços e imóveis etc.).
A fim de não desestimular o nascimento de novas empresas no setor (startups), poderiam ser definidas como contribuintes do novo tributo somente as grandes empresas de tecnologia, assim entendidas como aquelas que apurassem no Brasil um faturamento bruto ou remessas em pagamento (quando residentes no exterior) em volume igual ou superior a R$ 500 milhões/ano. Estima-se, a grosso modo, que um tributo com esses contornos poderia arrecadar algo em torno de R$ 6,5 bilhões/ano<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
A imposição de uma maior carga tributária a estas grandes empresas digitais se justificaria devido à sua maior capacidade concentradora de renda e alto potencial eliminador de empregos formais e outras ocupações na economia em função da acelerada automatização e digitalização.
Assim, parece razoável que os “vencedores” da transformação digital, que passarão a registrar volumes crescentes de faturamento e acumular maior renda após a pandemia, também suportem um maior ônus para mitigar o sofrimento daqueles indivíduos que saíram perdedores ao ter as suas ocupações diretamente atingidas, ou eliminadas, pela mesma pandemia e mais acelerada digitalização e automação que a sucedeu.
Em terceiro lugar, utilizando parte dos recursos do patrimônio do FAT destinados a operações de crédito, mas aplicando-se um redutor sobre a sua taxa base de remuneração<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, seria possível disponibilizar linhas de microcrédito para financiar projetos pessoais dos próprios trabalhadores beneficiários do Fundo, por meio de investimentos em educação ou novos negócios.
Haveria assim, como um segunda modalidade de benefícios do FAT, sob a forma de linhas de Crédito para Crescimento Pessoal, nas modalidades Educação (CCP-Educação), voltada para financiamento de cursos técnicos ou universitários (entidades certificadas), e Empreendedorismo (CCP-Negócio), destinada a viabilizar o investimento empresarial por meio do financiamento à aquisição de celulares, computadores, ferramentas, instrumentos, máquinas, veículos ou outros equipamentos.
Com o objetivo de mitigar o risco de crédito e tornar esses financiamentos atrativos, esses trabalhadores poderiam utilizar como garantia até 50% do valor do seu benefício básico, como espécie de crédito consignado, desde que observados também limites máximos de spread por parte dos agentes financeiros. Há repletas evidências do poder transformador do microcrédito<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> na vida das pessoas e considera-se que, por meio de uma tal estrutura creditícia, pessoas atualmente excluídas do Sistema Financeiro poderiam ter através desses programas a sua porta de entrada.
Por fim, embora não seja possível nesse breve artigo evidenciar todas as particularidades, benefícios e potencialidades que esse Novo FAT representaria para a economia e para a vida dos trabalhadores de um modo geral, é inegável que a discussão é importante e o tempo urge. O século XXI está aí, com novos esplêndidos desafios, mas nada que esteja fora do alcance do poder criativo e transformador da mente e da cooperação humanas.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=WAU2xWiR5DQ&list=PLfhZjWODW9JVuLFe6U_ulxCduBHTeECHC&index=1
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o Último Homem. São Paulo: Rocco, 2015.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Em 2019, o patrimônio do FAT investido por meio do BNDES retornou cerca de R$ 13,3 bilhões em remuneração, sob a forma de juros.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Segundo o Relatório de Efetividade do Banco de Fomento &lt;https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/ bitstream/1408/20141/1/2020_Relatorio%20de%20efetividade_2019_BD.pdf&gt;, suas operações contribuíram com a geração e manutenção de 3,8 milhões de empregos nos últimos 4 anos. De igual forma, agregaram R$ 160 bilhões ao crescimento da renda no mesmo período, sendo que, desta sua contribuição para o PIB, R$ 66 bilhões (41%) resultaram em expansão da massa salarial dos trabalhadores brasileiros.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> De acordo com José Roberto Afonso, atualmente menos de 40% dos trabalhadores ocupados trabalham em empresas privadas e com carteira assinada. O mesmo economista também prevê que, no futuro, “cada vez mais, trabalho não representará, necessariamente, emprego” e aponta, como possível solução, que “os países precisarão construir um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. Um dos eixos dessa mudança estrutural no Brasil deverá passar pelo FAT e pelo BNDES, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas a da carteira assinada. O financiamento de investimentos deverá pensar também em trabalho e não mais apenas em emprego” (AFONSO, José Roberto R. Desenvolvimento, trabalho e seguro social: volta a Keynes para enfrentar novos desafios. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 28, n. 50, dez. 2018). &lt;http://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/16842&gt;
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ultrapassaria os limites deste artigo esgotar todos os possíveis contornos e sutilezas desse novo tributo. Pelo momento, basta dizer que não se confundiria com aqueles dos atuais PL 2358/2020, PL 131/2020 e PLP 218/2020, muito embora o conceito aqui proposto comungue da ideia do último PL de vinculação do produto da arrecadação ao custeio da garantia de renda mínima do trabalhador. Por outro lado, algumas críticas lançadas por outros autores neste portal nos parecem exageradas (vide, por exemplo, este &lt;jota.info/coberturas-especiais/nova-economia/imposto-sobre-servicos-digitais-o-brasil-e-seus-falsos-cognatos-tributarios-20012021#_ftn2&gt;), posto que apontam questões que, a nosso ver, não inviabilizam de modo absoluto o novo tributo e poderiam, com pequenos ajustes e bom-senso, ser endereçadas.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Os recursos do FAT são atualmente remunerados pela TLP (substituta da antiga TJLP), instituída pela lei 13.483/2017, que adota como referencial de custo a taxa de juros das Notas do Tesouro Nacional Série B (NTN-B) para o prazo de 5 anos, acrescida da variação mensal do IPCA. A TLP atual, considerando o custo da NTN-B para 5 anos e o IPCA acumulado em 12 meses, corresponde a um custo efetivo superior a 7% a.a., sem computar eventuais custos administrativos, tributos e spreads de risco repassados pelos agentes financeiros. Isso a torna, no momento, pouco atrativa para o financiamento de projetos de mutuários pessoas físicas, micro e pequenas empresas.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> YUNUS, Muhammad. Micro-Lending and The Battle Against World Poverty. New York: PublicAffairs, 2007.

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