Frederico Augusto Auad Filho

Rodrigo Grieco Penna

Em recente publicação no <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/se-a-tarifa-e-zero-quem-paga-a-conta-06122022">Jota</a>, o professor Egon Bockmann Moreira convida os seus leitores a um debate sobre a proposta de tarifa zero para transportes públicos. O texto apresenta, especificamente, dois argumentos: (i) o de que recursos abundantes e gratuitos tendem a gerar incentivos ao desperdício e, para evitar tal cenário, (ii) o pagamento de um preço pode trazer consigo a moderação do uso. Como a proposta da coluna Publicistas é de compatibilizar o conteúdo de seus colaboradores com textos sucintos e de rápida leitura, o debate é encerrado com cinco parágrafos após a sugestão do debate.
A conclusão que o autor parece induzir é de que o pagamento seria necessário, mas apenas por parte dos usuários, uma vez que não seria adequado contar com o provento de todos os contribuintes
Segundo o autor, a proposta de tarifa zero para transportes públicos não passaria de uma falácia que estabeleceria um raciocínio errado de que algo pode ser de graça, disfarçado de bondade social – dando a entender que políticas públicas poderiam ser resumidas a meros altruísmos ou propostas populistas.
A partir das consequências já abstratamente pressupostas – aparentemente não empiricamente verificadas – de que conceder e cobrar tarifas seria positivo, Egon toma a sua premissa “i” como verdadeira; isto é: de que recursos abundantes e gratuitos geram incentivos ao desperdício. Essa seria a tragédia dos comuns usuários de transportes públicos, traçando um paralelo com a concepção da “tragédia dos comuns” trazida em 1968 pelo ecologista e biólogo neomalthusiano Garrett Hardin<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Ainda que Egon não a cite diretamente, parece ser uma das referências para a sua premissa de que a gratuidade dos recursos tende a levar ao seu uso inconsequente pelo ser humano. Vale anotar, contudo, que a hipótese da “tragédia dos comuns” tem gerado dissensos no meio acadêmico, advindos, em especial, da proposta contrária da cientista política e ganhadora do Nobel de Economia em 2009, Elinor Ostrom, com o seu livro Governing the Commons: the Evolution of Institutions for Collective Action.
Para exemplificar a premissa do gasto excessivo de recursos abundantes e gratuitos, Egon evidencia o que aconteceria com o ar (recurso supostamente “infinito” [sic]) e o tempo (“recurso escasso” [sic] e “excessivo” [sic]). Esses dois recursos podem ser utilizados de diferentes maneiras. O ponto, contudo, é que não são e nem se igualam ao transporte público.
Seguindo essa lógica, seria possível imaginarmos caricaturalmente um indivíduo que opta por tomar um trajeto até o seu trabalho com a utilização de cinco linhas de transporte público, quando o poderia fazer com apenas uma, simplesmente pelo deleite que teria de usá-lo de forma desmesurada e dispendiosa em um município que exista a política pública de tarifa zero. Situação cômica, inusitada, e que por óbvio não condiz com a realidade.
Nessa linha de raciocínio, as finitudes dos recursos só poderiam ser usufruídas por uma finitude populacional. De modo que, seria impossível na concepção neomalthusiana um grande contingente populacional utilizar de recursos limitados. Paralelamente, encontra semelhante fundamento as propostas recorrentes nos debates de serviços públicos no sentido da desestatização irrestrita, uma vez que apenas o parceiro privado teria melhores capacidades de gestão do serviço público escasso, já que a população e o Estado não saberiam usufruir e gerir a prestação do serviço público finito.
O autor parece querer induzir, então, o entendimento de que não seria justo que toda a sociedade pagasse por algo que só alguns fizessem uso. O seu argumento de justiça social pode ser colocado, portanto, sob o mote de que “paga quem usa”, uma proposta um tanto quanto individualista. Nessa linha, o único modelo plausível seria o da concessão comum, em que a receita do concessionário advém diretamente das tarifas. Qualquer outro modelo em que a Administração intervenha, com recursos advindos dos cofres públicos (concessões patrocinadas ou administrativas, as conhecidas PPPs), seria injusto.
Ora, seria igualmente injusto buscar o compartilhamento de custos sociais? Afinal, pela lógica do “paga quem faz uso”, quem tem recursos suficientes para ter um carro próprio não deve arcar em nenhuma medida com os custos junto àqueles que necessitam de fazer uso de transportes públicos.
Justo seria impor a alguns (muitos) de baixa renda a obrigatoriedade de arcar sozinhos com os custos dos serviços, por meio do pagamento das tarifas, muitas vezes consideradas excessivamente altas pelos usuários? Lembremos das manifestações contra o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus em 2013.
E seguindo essa lógica, seríamos levados a questionar qualquer política pública, seja ela de redistribuição de renda, de assistência social, de saúde pública, de educação pública, do regime geral da previdência ou até mesmo aquelas direcionadas à mobilidade urbana – como o passe-livre estudantil e a gratuidade para idosos. Ainda nesta lógica, a efetivação de qualquer direito social nos levaria ao mesmo ponto de injustiça, disfarçadamente social. Afinal, por que o contribuinte deveria arcar com mais estas despesas? Chegaríamos, então, a dois cenários: de extrema individualização em uma sociedade fragmentada ou de ausência da sociedade, cada um vivendo à sua própria sorte.
Isso porque a concepção manifestada é de que o pagamento de um preço traria consigo a moderação do uso, pelo motivo de que o dispêndio de recursos financeiros, escassos que são, acarretariam o racionamento do recurso que é utilizado. Essa concepção pode até servir para mercadorias, mas seria adequada ao serviço público? Isto é, o serviço público poderia ser encarado como uma mercadoria? Lembremos que a finalidade última da produção e circulação de mercadorias é o lucro. No entanto, esse não parece ser o objetivo de um serviço público ou do próprio Estado.
Em que pese a validade da preocupação, Egon parece ignorar as possíveis consequências positivas advindas da política de tarifa zero para a mobilidade urbana, questão cara às grandes cidades, para o meio ambiente e para as finanças das pessoas de baixa renda.
A proposta da gratuidade nos transportes urbanos não é tão atípica e desconhecida como pode parecer à primeira vista. Segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, existem 51 municípios no país que implementam essa política, sendo a maioria destes da região Sudeste. Apenas no estado de São Paulo, aquele com maior número de municípios aderentes a tal prática, são 17. Em Minas Gerais, o segundo estado com mais iniciativas, são 12. No Rio de Janeiro, há o notório caso de Maricá, que optou por criar uma autarquia para a prestação do serviço. Inicialmente, a autarquia prestava sozinha o serviço, mas atualmente contrata outras sociedades empresárias para operar linhas gratuitas, deixando o exemplo de outra forma de parceria entre a Administração e o privado.
Ponto em comum de todos esses municípios é a baixa taxa do contingente populacional e a pequena área territorial, o que pode indicar uma maior adequabilidade da política de tarifa zero a pequenas e médias cidades, mas nada impede que estudos de viabilidade econômico-financeira, sobretudo considerando a tendência de economias em escala e de maior capacidade contributiva, venham a indicar que a política possa também a ser implementada em municípios maiores.
Não obstante, considerando as especificidades do setor de transportes públicos, a tarifa zero financiada com os subsídios estatais pode ser um caminho para garantir a divisão de custos dos serviços de forma equitativa e de modo mais eficiente do que os subsídios cruzados via tarifa (utilizados mais comumente nos serviços de distribuição de água, gás e eletricidade, por exemplo). Afinal, diferente de outros serviços públicos, a massa dos usuários de transportes públicos tende a ser em maioria oriunda das classes de baixa ou média renda, de modo que o seu financiamento exclusivamente via tarifa tende a onerar excessivamente os que têm menos condições de contribuir economicamente. O financiamento dos serviços via subsídios estatais, contudo, pode ser uma alternativa em sentido distinto.
O debate trazido é extremamente interessante e, sobretudo, cada vez mais necessário. Contudo, devemos ter em mente que essa é uma questão muito mais política e discricionária, afeita ao gestor público, e moral, atinente a toda a sociedade, do que propriamente jurídico-formal, muito menos “mágica”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://pages.mtu.edu/~asmayer/rural_sustain/governance/Hardin%201968.pdf">https://pages.mtu.edu/~asmayer/rural_sustain/governance/Hardin%201968.pdf</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://www.ntu.org.br/novo/NoticiaCompleta.aspx?idArea=10&amp;idNoticia=1606">https://www.ntu.org.br/novo/NoticiaCompleta.aspx?idArea=10&amp;idNoticia=1606</a>.

Transporte Público

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