Murilo Meneghetti Nassif

A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), oficialmente constituída desde 2011, tem por objetivo construir um projeto de integração regional entre os países latino-americanos e caribenhos. São 33 países<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que integram um grupo multilateral regional e se reúnem periodicamente para debater e tratar assuntos de interesse comum, tais como, economia, cooperação educacional, democracia, redução de desigualdades, saúde pública, dentre outros.
Especificamente sobre a temática da saúde pública, que é o objeto deste artigo, foi a partir da crise pandêmica da Covid-19 que o tema ganhou espaço na pauta de debates da Celac. Durante a crise sanitária global a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), uma das cinco comissões regionais da Organização das Nações Unidas (ONU), formulou a pedido e para a Celac um trabalho com diretrizes e propostas para a <a href="https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/47252/1/S2100557_es.pdf">autossuficiência sanitária da América Latina e Caribe</a>.
Este trabalho foi objeto de amplos debates ao longo de 2021, mais especificamente na reunião realizada em setembro daquele ano, no México, e que culminou na <a href="https://www.gob.mx/cms/uploads/attachment/file/668541/Celac_2021_Declaracio_n_de_la_Ciudad_de_Me_xico__18sep21.pdf">Declaração da Cidade do México</a> e no compromisso dos países-membros da Celac de atuarem no fortalecimento e promoção do acesso universal, justo, inclusivo, transparente, equitativo e eficiente da saúde pública para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 que, naquela época, ainda não havia arrefecido.
As diretrizes e propostas do plano contemplaram sete macropilares de trabalho: fortalecimento de mecanismos de compra internacional conjunta de vacinas e medicamentos essenciais; utilização de mecanismos de compras públicas de medicamentos para o desenvolvimento de mercados regionais; criação de consórcios para o desenvolvimento e produção de vacinas; implementação de plataforma regional para ensaios clínicos; aproveitamento de flexibilidades regulatórias para acessar a propriedade intelectual; fortalecimento tanto dos mecanismos de convergência e reconhecimento regulatório, quanto dos sistemas primários de saúde.
Por mais que existam críticas sobre as propostas formuladas, fato é que algumas destas diretrizes, se corretamente implementadas, tenderiam a universalizar o direito humano fundamental à saúde e reduzir desigualdades sociais existentes nos países latino-americanos e caribenhos. Ocorre que tais propostas seguem apenas no papel, na subjetividade de discursos políticos e nos anseios abstratos que cercam as aspirações principiológicas sobre saúde pública coletiva.
De qualquer forma, dada a sua relevância e impacto social, a temática da saúde se manteve presente nos debates da Celac e no encontro dos países-membros realizado na Argentina, no último mês de janeiro, e que resultou na <a href="https://www.gov.br/mre/pt-br/arquivos/declaracion-de-buenos-aires-version-final.pdf">Declaração de Buenos Aires</a>. Com 25 temas específicos e multidimensionais, a saúde pública foi abordada nos tópicos de estratégia sanitária, abordagem de problemas mundiais sobre drogas, ciência, tecnologia e inovação para inclusão social, transformação digital e proteção de saúde de grupos minoritários.
A existência de distintas inserções da saúde pública nesta nova declaração decorre, basicamente, de dois fatores. O primeiro é o reflexo direto dos impactos da crise pandêmica sobre todas as dimensões da vida social. Fato que obrigou os Estados, ao redor do mundo, a se ocuparam da pauta da saúde como assunto central de suas políticas. O segundo, as obrigações da implementação da <a href="https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/21252030%20Agenda%20for%20Sustainable%20Development%20web.pdf">Agenda 2030 da ONU</a> e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (<a href="https://brasil.un.org/pt-br/sdgs">ODS</a>) na região, com impactos diretos em saúde coletiva e individual.
Voltando à Carta de Buenos Aires. O que os países da Celac fizeram foi ratificar o discurso político abstrato sobre a busca pela autossuficiência sanitária regional. Com o uso de termos que são dotados de conceitos vagos e indeterminados, a Declaração de Buenos Aires apresenta o que e como pensam as lideranças políticas dos 33 países que integram a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre a temática da saúde pública na região.
Neste pensamento coletivo, que convive com a retórica do papel, está o interesse dos países em promover um trabalho de compras públicas coletivas. De forma direta ou por consórcio. Talvez pelo fato do grande impacto orçamentário que a saúde gera em todos os Estados e que cresceu exponencialmente com a crise pandêmica. Trata-se de um interesse que foi legítimo no auge da crise pandêmica e ante a necessidade de se equilibrar os recursos finitos e manter a sustentabilidade dos sistemas de saúde.
Entretanto, é preciso que fique claro que não são as compras públicas internacionais ou em consórcios que trarão autossuficiência da saúde pública na região. Esta autossuficiência sanitária passa por temas críticos que estão relacionados com o fortalecimento de mecanismos de convergência legal e regulatória, respeito a patentes de inovação, incentivo à liberdade econômica, redução de assimetria informacional, melhoria no <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/planejamento-compra-publica-medicamentos-11112021">planejamento das compras</a>, produtividade, além de elevado investimento em pesquisa e desenvolvimento.
Os países-membros da Celac, em vez de olharem apenas para os recursos orçamentários, precisam concordar, antes de tudo, com a definição de prioridades concretas e ligadas aos anseios dos cidadãos de cada Estado, mediante prévia oitiva das sociedades civis (e o respeito à opinião destas). Precisam aceitar a harmonização de regulamentação partindo de normas já editadas pelas agências sanitárias que são referência no mundo, dentre as quais está a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anvisa">Anvisa</a>).
Enfim, a construção de prioridades concretas imprescinde da participação dos atores sociais que convivem com a temática da saúde, inclusive as indústrias que produzem vacinas e medicamentos e que, como apontado no relatório da Cepal, são inovadoras, produtivas, possuem trabalhadores qualificados, composição de gênero mais equilibrada, respondem por 1,5% dos empregos diretos no setor manufatureiro da América Latina e contribuem, diretamente, com 3,1% do PIB industrial e 0,4% do PIB total da região.
A partir das prioridades concretas – que vão muito além de pensar nas compras públicas ou formação de consórcios em busca de menor preço – é que a Celac construirá uma ponte para o futuro da autossuficiência da saúde na região. Uma ponte que somente será exitosa se dotada de boas práticas de governança institucional, transparência, ética, responsabilidade e o reconhecimento da importância e experiência da oitiva e participação de outros organismos regionais e atores sociais da saúde pública.
O que e como pensa a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre a saúde pública na região da América Latina deveria ser o anseio concreto do povo que integra cada um destes Estados, com respeito a regimes democráticos, transparência, governança institucional e redução de injustiças passíveis de rápida correção, em vez de ideias sem efetividade prática que olham apenas os recursos financeiros e estão, tão somente, no papel e nos vagos discursos políticos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Em 2020 o Brasil deixou a Celac sob a alegação de inefetividade dos trabalhos como um todo e, mais especialmente, na defesa da democracia, dada a presença no grupo de países com regimes não democráticos como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Em 2023 o Brasil retornou à Celac sob o comando de um novo governo federal.

cirurgia, plano de saúde

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JOTA

Países da Celac ratificaram discurso político abstrato sobre a busca pela autossuficiência sanitária regional

Saúde pública na América Latina

Países da Celac ratificaram discurso político abstrato sobre a busca pela autossuficiência sanitária regional