Carolina Allodi

Rafael Alves

O problema da saúde mental no mercado jurídico, particularmente na área de contencioso cível e arbitragem, já era preocupante, mas piorou significativamente na pandemia. Uma das maiores causas desse problema é a forma como esses departamentos estão estruturados nos escritórios brasileiros (replicando modelos estrangeiros), exigindo dos profissionais uma carga excessiva de trabalho (muitas vezes, acima de 250 horas por mês).
Uma das possíveis soluções para esse problema estaria dentro da chave ESG (em inglês, environment, social and governance), no contexto de um capitalismo mais consciente, que valoriza todas as partes interessadas, e não apenas os acionistas. Tais soluções estariam relacionadas não apenas com a quantidade de trabalho, mas também com a qualidade do trabalho.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Nesta chave ESG, deveria haver uma preocupação genuína e efetiva com todos os colaboradores dos escritórios, especialmente os(as) advogados(as), que são o principal ativo de qualquer escritório.
Entendemos que a medida mais efetiva para a redução do estresse e ansiedade, particularmente no contexto da pandemia (mas não apenas nela), é a redução da carga de trabalho. Esse aspecto quantitativo é o mais emergencial e o que produz maior ganho no curto prazo para a saúde.
Mas, para além disso, também é preciso cuidar da qualidade do trabalho, o que envolve múltiplos fatores inter-relacionados e igualmente relevantes para a saúde mental desse profissional, que demandam um processo mais complexo de acompanhamento e aprimoramento contínuo das lideranças:
a) um plano de carreira transparente e objetivo;
b) aprendizado e desenvolvimento do profissional (à luz do plano de carreira);
c) engajamento do profissional e compatibilização entre o seu perfil e a filosofia do escritório;
d) reconhecimento adequado (e verbalizado) do profissional pelos gestores e lideranças;
e) remuneração condizente com a complexidade do trabalho;
f) autonomia e protagonismo para conduzir a sua própria carreira;
g) escuta ativa dos gestores e lideranças e diálogo franco e aberto;
h) respeito ao seu desenvolvimento profissional, o que inclui feedbacks claros, periódicos e construtivos.
Todos esses fatores são a materialização do princípio ESG, de preocupação genuína e efetiva com todos os colaboradores.
Como primeira solução imediata sugerimos a redução drástica da carga de trabalho. No entanto, curiosamente, essa primeira solução ainda é um “tabu” no Brasil, sendo pouco discutida nos meios acadêmicos e profissionais.
Pouco se fala, por exemplo, como um(a) cliente reagiria se soubesse que um caso de extrema importância para ele/ela está sendo cuidado por sócios muito atarefados e advogados cansados demais.
Afinal, não é raro ouvir casos em que um(a) advogado(a) revisa uma petição entre 1h e 3h da madrugada (até mesmo de um domingo!). Esta realidade não é algo excepcional e, infelizmente, ocorre em diferentes escritórios brasileiros, de todos os portes, em diferentes regiões.
Para ficar muito claro: não defendemos aqui que o(a) advogado(a) cível deva trabalhar pouco (advocacia qualificada e de qualidade exige muito empenho e comprometimento em geral), mas sim que o escritório respeite os limites desses advogados, particularmente em relação a sua saúde física e mental.
É possível conciliar uma quantidade adequada de trabalho e preservar a saúde dos advogados. Uma das soluções seria contratar mais advogados se o escritório e a prática em si têm sido bem-sucedidos em atrair novos casos e clientes.
<blockquote class="jota-article__eye">Afinal, o modelo de trabalho atual, em que se despeja cada vez mais casos e preocupações sobre advogados que já estão cansados, não parece ser sustentável a curto, médio ou longo prazo.</blockquote>
No contexto da pandemia, viu-se um crescente número de programas institucionais paliativos (meditação, happy hours virtuais etc.), que são bem-vindos, mas que de nada servem se o escritório continuar “massacrando” (não há outra palavra) seus advogados com uma quantidade irrazoável de trabalho diário.
Aliás, de nada adianta criar uma área ESG se o próprio advogado não se sente apreciado, nem consegue encontrar tempo para fazer uma refeição de qualidade com calma. Como discutir práticas de mindfulness com um advogado que não consegue sequer encontrar tempo para almoçar?
O foco aqui não é discutir medidas institucionais paliativas, mas causas mais profundas, dentre elas (não é a única) o modelo de negócios dos escritórios, que pressupõe que uma parcela relevante da lucratividade recaia sobre a fadiga dos seus advogados.
A realidade de alguns advogados do contencioso cível no Brasil muitas vezes se assemelha ao mito de Sísifo, cujo absurdo foi tão bem captado por Camus<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>: resolvem um processo e já existem tantos outros na fila para serem resolvidos naquele mesmo dia. Prazos e mais prazos, muitos deles encavalados em um único dia.
A situação é ainda pior quando se combinam as práticas de contencioso judicial e arbitragem, sem estabelecer limites claros. Como bem sabem os advogados de contencioso, a condução de uma arbitragem complexa vale por dezenas de processos judiciais.
Por outro lado, às vezes, o contencioso judicial requer um comprometimento substancial, repentino e imprevisto do advogado cível que se choca com o planejamento que costuma ocorrer em arbitragens. Tudo isso requer verdadeiros “malabarismos”, com ajustes constantes (e consequente perda do tempo de lazer).
Aliás, a gestão do tempo talvez seja uma das habilidades mais subestimadas e negligenciadas na formação dos advogados do contencioso. De forma geral, a massificação e o aumento do volume no contencioso cível brasileiro está diminuindo a qualidade do trabalho e prejudicando a vida dos advogados.
É preciso, então, reduzir tal carga de trabalho, o que pode ser feito de forma a não prejudicar tanto a rentabilidade do escritório. É possível que haja alguma renúncia financeira ao sócio-proprietário no curtíssimo prazo (em razão de uma proporção e uma distribuição mais equânime de casos por advogados), mas certamente os benefícios de longo prazo serão maiores (particularmente no atendimento ao cliente, retenção de talentos, redução de afastamentos por estresse ou burnout).
É necessário também que os sócios-proprietários encorajem seus advogados a terem tempo de lazer e longe dos celulares (o direito à desconexão), falando abertamente como eles próprios conseguem essa façanha (o que esperamos seja o caso). Além disso, os advogados precisam entender que estes momentos em off não são vistos como sinais de preguiça, mas de integridade.
Por fim, é importante que todos entendam que a saúde física e mental, e não o trabalho contínuo, é que garantirá a sustentabilidade dos escritórios de advocacia. Afinal, <a href="https://exame.com/revista-exame/a-nova-pandemia/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ao não se lidar com a saúde mental constantemente, as chances de maiores complicações crescem, ocasionando altos índices de absentismo e presenteísmo</a>, que impactam os próprios escritórios.
Como segunda solução imediata para questão, sugerimos o crescente debate sobre o estado mental e emocional dos advogados e a implementação de políticas e iniciativas concretas para se lidar com o problema.
Embora não sejamos especialistas em saúde mental, temos algum conhecimento sobre o mercado jurídico de contencioso cível e arbitragem e, à luz dos estudos disponíveis, entendemos que podemos oferecer à discussão algumas alternativas.
No mercado jurídico, mesmo antes da pandemia, os dados já eram alarmantes: segundo os números de 2019 do Ministério Público do Trabalho, na área jurídica, transtornos ansiosos e depressivos chegam a equivaler a 60% dos casos de afastamento de advogados e procuradores<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O Brasil não está sozinho neste problema. A profissão jurídica é das <a href="https://blog.ulawpractice.com/8-upsetting-stats-about-the-mental-health-of-lawyers" target="_blank" rel="noopener noreferrer">mais estressantes</a> ao redor do mundo, conforme demonstram pesquisas realizadas no exterior<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
E como estamos agora? Muito pior. Por conta do lockdown (ainda que parcial), houve uma mudança de rotina abrupta, forçando milhões de pessoas a terem que lidar com a falta de estrutura de escritório para trabalhar de casa.
Além disso, as incertezas causadas pela pandemia, a diminuição da <a href="https://vocesa.abril.com.br/carreira/isolamento-social-saude-mental/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">interação social</a> e as jornadas duplas (ou até mesmo triplas) daqueles que têm crianças em idade escolar em casa acentuaram o esgotamento emocional. Segundo estudo do Instituto de Psicologia da <a href="https://www.uerj.br/noticia/11028/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">UERJ</a>, em parceria com a Universidade de Yale, dos EUA, casos de depressão dobraram e de ansiedade cresceram 80% na quarentena.
A escassez de artigos e estudos a esse respeito no Brasil, ao contrário do que acontece em outros países, deixa claro que a questão ainda é um “tabu” por aqui. A <a href="https://www.americanbar.org/groups/lawyer_assistance/resources/covid-19--mental-health-resources/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">American Bar Association</a>, por exemplo, possui programas de assistência aos advogados, contando com vídeos, aulas e artigos sobre doenças mentais e como lidar com elas ou evitá-las.
No mesmo sentido, advogados de grandes escritórios norte-americanos criaram o <a href="https://www.lawyersdepressionproject.org/about/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lawyers Depression Project</a>, por meio do qual oferecem aconselhamento (anônimo, se desejável) para advogados com depressão, ansiedade, trauma, dependência química e outras condições de saúde mental.
Seria ótimo se iniciativas como essas também pudessem se desenvolver no Brasil. É um alento, neste sentido, ter a notícia de que o <a href="https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2019/10/28/transtorno-mental-e-principal-causa-de-afastamento-do-trabalho.ghtml?GLBID=16a25bc2d2c2fa54396ae9cfb63040ee9326572724b4c4b4830654e4a6967526836484634767a4e4b2d387a425f5537516a704555715269337967645a61416c486b64704b464d5271427a774872706e6e4f323861384b76365033594e5a47706d3444564d62773d3d3a303a7579796c706d6971736d6e6c71617961736d6268" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA)</a> criou um grupo para debater a saúde mental dos advogados e que a <a href="https://www.oab.org.br/noticia/56707/oab-nacional-lanca-a-cartilha-de-saude-mental-da-advocacia" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Comissão de Saúde do Conselho Federal da OAB</a> lançou, no final de 2018, uma <a href="http://s.oab.org.br/arquivos/2018/10/c8a958b9-c04e-42d3-83b5-e3faa24bee71.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">cartilha</a> sobre a saúde mental para o advogado.
Mas, do ponto de vista das lideranças em escritórios de advocacia, quais seriam as possíveis soluções e providências a serem tomadas? Em primeiro lugar, precisamos de líderes que se preocupem, efetivamente, com a saúde mental das pessoas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A forma pela qual os escritórios de advocacia estão organizados no Brasil e, particularmente, o modo pelo qual os setores do contencioso cível e arbitragem estão estruturados é um terreno fértil para problemas na saúde mental. Diante desse diagnóstico, quais seriam, então, algumas das medidas que poderiam ser tomadas pelas lideranças dos escritórios de advocacia?
Como antecipado, a qualidade do trabalho envolve múltiplos fatores inter-relacionados que também dizem respeito à saúde mental dos advogados. Certamente, nenhum escritório pode dizer que já atingiu a perfeição em todos esses fatores simultaneamente. Normalmente, o que ocorre é um trabalho de evolução constante, estando alguns escritórios mais avançados que outros em determinados aspectos.
Inclusive, o diálogo franco entre escritórios para compartilhar boas práticas poderia ocorrer com mais frequência, sem desrespeitar nenhuma política, regulação ou legislação.
Neste sentido, os departamentos de recursos humanos podem ser aliados poderosos, particularmente quando for necessária uma mudança da cultura interna. O mais importante é que as lideranças estejam preocupadas, de fato, em evoluir em cada uma dessas práticas.
Dentro da chave ESG, é preciso entender que, velhos paradigmas estão caindo para surgirem novos. Não é “bonito” ficar trabalhando exaustivamente, nem elogiar sobrecarga de trabalho ou mesmo se vangloriar dela. Quando o excesso é esporádico e urgente, não há o que fazer: a maioria das profissões exige (e espera) certa flexibilidade e disponibilidade dos profissionais.
O problema está quando o modelo de negócios pressupõe que haja uma sobrecarga de trabalho como sua rotina normal. O trabalho excessivo deve ser extraordinário, e não a rotina.
Quanto mais advogados se questionarem e questionarem seus escritórios, menor será o estigma de que estes que questionam são “preguiçosos” ou possuem algum problema de saúde mental permanente que possa influenciar na qualidade de seu trabalho. É fundamental buscarmos, coletivamente, a humanização da advocacia cível em nosso país, passo a passo.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O mito de Sísifo, Albert Camus (Autor), Ari Roitman (Tradutor), Paulina Watch (Tradutor), Record 18ª ed, 2018.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Você RH, edição out/nov 2020, p. 25.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> De acordo com um estudo da American Bar Association sobre saúde mental, de 2016, mais de um quarto dos advogados norte-americanos sofrem de depressão; 19% dos advogados demonstravam sintomas de ansiedade; e a quantidade de advogados com problemas de vício ou dependência química era 2,5 a 3,5 vezes maior do que para pessoas de outras áreas.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Segundo a revista Você RH, edição out/nov 2020, os “[g]estores desempenham papel-chave na promoção do bem-estar” (p. 26).

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JOTA

É fundamental buscarmos, coletivamente, a humanização da advocacia cível em nosso país, passo a passo

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