Renato Otto Kloss

<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/saneamento-basico">Saneamento básico</a> é sinônimo de preservação ambiental. Não por outro motivo, a conservação de recursos naturais e a proteção do meio ambiente são princípios fundamentais desse serviço público, conforme a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm">Lei 11.445/07</a>. O tratamento de efluentes contribui expressivamente para a preservação de corpos hídricos, evitando-se a alteração ou destruição de seus ecossistemas.
Contudo, assim como a maioria das atividades econômicas, os sistemas de tratamento de esgotos também produzem externalidades negativas, e a necessidade de licenciamento é prova disso. As estações de tratamento de esgoto (ETEs) geram lodos e gases ao final dos seus processos, que são poluentes. Os lodos acabam destinados a aterros sanitários, o que representa um ônus financeiro para a operação, além de sobrecarregar os próprios aterros. E os gases – com destaque para o metano, um dos principais responsáveis pelo efeito estufa – são liberados na atmosfera. Por óbvio, o balanço ambiental da atividade é francamente positivo, mas não é possível ignorar tais consequências.
Todavia, como disse certa vez Henry Kayser: "Problems are only opportunities in work clothes".
A Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) tem buscado soluções no mercado para a valorização ambientalmente adequada dos lodos gerados por suas ETEs, com vistas à constituição de parcerias societárias. É o objetivo perseguido pelo Chamamento Público 00780/22<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Ao mesmo tempo, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) incluiu na minuta de edital de PPP de esgotamento sanitário da Microrregião Centro-Litoral do Estado do Paraná<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que foi objeto de recente consulta pública, disposição que reserva para si o direito de receber os lodos produzidos pelas ETEs da futura concessionária, para o desenvolvimento de novos negócios.
Por certo, quando dois atores deste peso demonstram atenção ao aproveitamento econômico dos lodos, não há dúvida de que algo está a mudar. O descarte em aterros pode estar em vias de deixar de ser uma obviedade, assim como a sua contabilização como despesa.
Se esse cenário já é animador, aponta no horizonte um movimento ainda mais promissor em torno do aproveitamento dos gases decorrentes dos sistemas de tratamento.
Há muito se domina o conhecimento técnico em torno da geração de biogás a partir de ETEs, e dos processos de limpeza e purificação que permitem a produção de biometano. Mas esse processo ainda carece de um ambiente que facilite a sua viabilidade econômica.
Assiste-se hoje, entretanto, a uma conjugação de fatores bastante favoráveis que pode ser preponderante para o fomento à exploração do biometano.
De início, cabe destacar o crescimento da agenda ESG, que tem não apenas exigido das empresas maior cuidado na adequação ambiental de suas operações, mas passa a instigar o surgimento de linhas de crédito e investidores voltados a projetos com esse selo. Como um combustível renovável, o biometano tem plena aderência a essa pauta.
Em segundo lugar, há a expectativa criada com o incremento da participação privada no setor, em vista da abertura de mercado provocada pela Lei 14.026/20. Como já se viu com outros serviços públicos, o ingresso maciço da iniciativa privada ocasiona um potente efeito disruptivo, com ênfase à inovação. Basta lembrar que, antes de serem privatizados e se transformarem em verdadeiros shoppings centers, os aeroportos brasileiros já tiveram na exploração de estacionamentos a sua principal fonte de receitas extraordinárias.
Até aqui, os serviços de água e esgoto sempre foram considerados pouco propensos à geração dessas receitas adicionais<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, mas a produção de biometano pode ser um elemento transformador dessa realidade. Não se pode esquecer que esses serviços são intensivos no uso de energia (uma de suas principais despesas operacionais), o que torna a produção de biometano algo potencialmente valioso.
Finalmente, o ponto alto desse movimento corresponde ao fomento público que se anuncia. Veja-se que o BNDES<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> já possui linha de financiamento especial para a implantação, modernização e/ou expansão de infraestruturas de processamento de biogás e biometano, com taxas subsidiadas.
Além disso, no âmbito da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), tem-se a possibilidade de certificação da sua produção e comercialização de Créditos de Descarbonização (CBIO).
Por certo, o financiamento da produção é uma peça crucial nessa engrenagem. Porém, a disponibilidade de crédito não garante um mercado comprador para o biometano. Só a regulação é capaz de garantir esse resultado.
Por parte da ANP, o marco regulatório já se encontra maduro, com a fixação das exigências para a autorização do exercício da atividade de produção de biometano (AEA) e para a autorização de operação da instalação produtora (AO). Ademais, para ser intercambiável com o gás natural, a ANP também define as características e especificações de qualidade do biometano.
Há ainda a possibilidade da criação de outros estímulos à produção de biometano. Isso decorre do Decreto 11.003/22, que instituiu a Estratégia Federal de Incentivo ao Uso Sustentável de Biogás e Biometano e definiu diretrizes como a promoção de “iniciativas para o abastecimento de veículos leves e pesados, (...) e de embarcações movidos a biometano ou híbridos com biometano”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
É preciso reconhecer, contudo, que a atuação federal, nessa seara, é limitada pelas especificidades do setor de gás brasileiro. Por comando constitucional, o segmento de distribuição de gás canalizado encontra-se sob a competência dos estados, e este último elo da cadeia tem por foco a conexão dos gasodutos de transporte a usuários finais, atribuindo-se à concessionária local a distribuição e comercialização do energético. A interconexão de produtores de biometano a essa rede depende de arranjos regulatórios que foram pensados pela Lei 14.134/21, mas ainda não viraram efetiva realidade.
A boa notícia é que a regulação estadual sinaliza novas preocupações com o tema, o que pode indicar um horizonte mais amigável – e até convidativo – ao biometano.
Nessa linha, a Arsesp<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> acaba de concluir a Consulta Pública nº 08/22, para a discussão de aprimoramentos da regulação do biometano em São Paulo. Dentre os ajustes propostos, a agência concebe estabelecer a priorização da aquisição do biometano pelas distribuidoras de gás canalizado, desde que o preço seja competitivo frente ao gás natural. Com isso, passaria a haver um poderoso impulso à produção de biometano, mediante o fomento ao seu mercado consumidor.
A Arsesp cogita ainda oferecer ao usuário a possibilidade de adquirir exclusivamente biometano (e não um mix com gás natural), em um contrato denominado Selo Verde. Assim, estes usuários poderiam explorar a visibilidade decorrente da utilização desse biocombustível. Pensa-se, também, em incentivos à implantação de redes de conexão dos produtores de biometano às distribuidoras, para facilitar o escoamento das produções.
É bem verdade que esta iniciativa ainda se situa no campo das boas intenções, já que a realização da consulta pública não garante a futura edição da minuta de deliberação divulgada. Mas é improvável que toda essa ação não vá resultar em aperfeiçoamentos regulatórios.
Com isso, espera-se, na sequência, um efeito multiplicador que já foi percebido em relação a outras iniciativas da Arsesp. Como a regulação do mercado de gás de São Paulo acaba servindo de exemplo e tendência para outros estados, pelo pioneirismo em diversas matérias, é razoável crer que possa estar a caminho um movimento mais abrangente. Seria o que se denomina de “precedente persuasivo” para as agências reguladoras de outros estados.
Enfim, a curva dos investimentos privados em saneamento básico neste país está apenas no início, e precisará ser sustentada por uma tarifa de alta sensibilidade para a população. Cabe lembrar que a busca da universalização põe em foco regiões afastadas dos grandes centros urbanos. Em muitas dessas localidades, a cultura do pagamento pela água sequer existe. Uma vez implantada, a conexão às redes de esgotamento não é trivial.
Diante disso, as oportunidades de geração de receitas extraordinárias devem ser cuidadosamente avaliadas, pois podem representar um apoio importante para viabilizar a oferta de serviços que precisam ser regulares, contínuos, eficientes, seguros, atuais, gerais, com cortesia na prestação e tarifas módicas, como idealizou o legislador ordinário.
Para isso, a perspectiva de exploração econômica de lodos e da produção de biometano deve convidar o investidor privado a refletir sobre a conveniência de se desenvolver um novo olhar sobre esses serviços e, mais especificamente, sobre a concepção de seus sistemas. Fatores como o destino dos lodos e o posicionamento das redes de distribuição de gás canalizado podem influir na escolha da localização de ETEs, ou mesmo na quantificação e dimensionamento dessas estruturas, já que disso pode depender o aproveitamento ou não de um novo campo de oportunidades.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Chamamento Público SABESP 00780/22, voltado à seleção de parceiro estratégico para a realização de estudos, desenvolvimento e implantação de soluções para a destinação/valorização ambientalmente adequada de lodos gerados pelas Estações de Tratamento de Esgoto de Barueri, Suzano, São Miguel, ABC, Lavapés, Pararangaba, Taubaté-Tremembé e Campos do Jordão.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Consulta Pública de Parceria Público-Privada, na modalidade de Concessão Administrativa, dos Serviços de Esgotamento Sanitário da Microrregião Centro-Litoral nº 01/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Receitas alternativas, complementares, acessórias e de projetos associados, conforme previsão do art. 11 da Lei Federal nº 8.987/95.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Por meio da linha de financiamento BNDES Finem.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 4º, IV, da Lei.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo.

Parque da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, no Butantã, zona oeste

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Princípios fundamentais do saneamento são a conservação de recursos naturais e a proteção do meio ambiente

Saneamento básico, lodos e biometano: desafios e oportunidades

Princípios fundamentais do saneamento são a conservação de recursos naturais e a proteção do meio ambiente, mas também produz biometano