Lucas Van de Bilt Schiozer

<a name="_GoBack"></a> No dia 6 de junho, o Senado Federal aprovou o texto do Projeto de Lei 3.261/2019 que introduz relevantes alterações no marco regulatório do saneamento básico. O PL incorpora grande parte das inovações trazidas pelas Medidas Provisórias 844 e 868, de 2018, que tiveram por intuito permitir maior concorrência e investimentos no setor<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
Será expressamente atribuída a titularidade sobre os serviços a Municípios e, no caso de Regiões Metropolitanas e aglomerações urbanas, à “estrutura de governança interfederativa”, por alteração na Lei Federal 11.445/2007, marco fundamental do setor.
No entanto, pelo menos na Região Metropolitana de São Paulo – RMSP, a prática mostra que as estruturas de governança interfederativa não exercem o papel a elas atribuído pelo STF e pela legislação. Ao contrário, até o momento, estas mostraram ter pouco ou nenhum efeito sobre os serviços de saneamento básico.
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A atribuição de titularidade sobre serviços de interesse comum, em especial saneamento básico, às entidades metropolitanas não é novidade e decorre do decidido pelo STF em 2013. Esta foi a solução dada pela corte à dúvida quanto a titularidade sobre serviços de saneamento básico, com disputa entre Estados e Municípios. A questão se acirra em conurbações urbanas, onde há elevada interdependência entre os prestadores.
Os principais julgados do STF sobre o tema são a ADI 2.077, proposta em 1999 frente a dispositivo da Constituição do Estado da Bahia que atribuía ao Estado a competência sobre saneamento básico, e a ADI 1.842, proposta em 1998 frente a Lei Estadual que atribuía ao Estado do Rio de Janeiro a titularidade sobre os serviços de saneamento básico em regiões metropolitanas. Os processos tramitaram simultaneamente, com referências cruzadas entre si.
Em 2013, na ADI 2.077, decidiu-se pela titularidade dos Municípios sobre os serviços de saneamento básico, dado o seu caráter local e, na ADI 1.842, que em regiões metropolitanas os serviços deveriam ser prestados em conjunto por Estados e Municípios, dada a existência de interesse comum, por meio de um colegiado interfederativo, com representantes de ambos.
O entendimento do STF foi incorporado ao Estatuto da Metrópole<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>, de 2015, que estabelece diretrizes gerais para as regiões metropolitanas. O diploma prevê o “compartilhamento de responsabilidades” (Art. 6º, II) e a “execução compartilhada das funções de interesse comum”, por meio de “estrutura de governança interfederativa” (Art. 7º, IV).
No mesmo ano, em outro julgamento relevante para o setor, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo declarou inconstitucionais leis municipais de Guarulhos sobre saneamento básico, em ADI proposta pelo Estado de São Paulo<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>. Ao contrário da ADI 1.842, foi o Município que atribuiu a si a titularidade sobre os serviços.
A ação foi proposta frente a três leis de 2012<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> sobre saneamento básico. Em novembro de 2013, foi publicado o edital da concorrência nº 012/2013, para celebração de PPP, na modalidade concessão administrativa, para a delegação pelo Município de Guarulhos de tais serviços
Logo após, em dezembro de 2013, foi proposta a ADI pelo Estado de São Paulo, apontando que a legislação violaria dispositivos da Constituição Estadual ao prever titularidade do Município, em descompasso com a Região Metropolitana de São Paulo e o entendimento do STF exarado na ADI 1.842 meses antes.
A propositura da ADI se deu em meio a contexto conflituoso envolvendo Guarulhos e a SABESP, sociedade de economia mista vinculada ao Estado de São Paulo. Desde a década de 60, os serviços de saneamento básico de Guarulhos foram prestados pela autarquia municipal Serviço Autônomo de Água e Esgoto – SAAE. No entanto, por estar inserido na RMSP, Guarulhos detém uma dependência de recursos hídricos provenientes do Sistema Cantareira, administrado pela SABESP e acumulou dívida bilionária, de aproximadamente R$ 3 bilhões<a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>.
Em paralelo à tramitação da ADI, a SAAE conduziu a concorrência nº 012/2013 e, em setembro de 2014, celebrou o Contrato de Concessão nº 056/2014 com concessionária privada.
Em abril de 2015, contudo, o Órgão Especial do TJ/SP deliberou pela inconstitucionalidade das leis de Guarulhos. A maioria do colegiado entendeu que o saneamento básico constitui “interesse comum” ou “regional” e está fora da competência legislativa municipal, restrita ao interesse local. Sendo interesse comum, seria necessária a participação do Estado para dispor sobre o tema.
A decisão foi objeto de Recurso Extraordinário perante o STF, que negou seguimento por inexistência de repercussão geral, transitando o processo em julgado em setembro de 2018.No mesmo mês, a SAAE e a SABESP celebraram protocolo de intenções para celebração de convênio de cooperação. A SABESP assumiu os serviços remanescentes de saneamento básico em Guarulhos em janeiro de 2019.
A controvérsia envolvendo o Município de Guarulhos e o Estado de São Paulo na RMSP expõe um problema na solução dada à polêmica quanto a titularidade do saneamento básico em regiões metropolitanas: as instâncias metropolitanas não foram concebidas para exercer a titularidade sobre os serviços de interesse comum e não possuem qualquer impacto relevante sobre como estes estão organizados.
No caso da RMSP, a titularidade sobre os serviços cabe ao seu órgão deliberativo, o Conselho de Desenvolvimento – CD/RMSP. Criado em 2011 a partir da reformulação da RMSP, este é composto por 58 membros: 39 prefeitos, 17 representantes (secretários) do Estado e 2 representantes da Assembleia Legislativa.
Passados oito anos da criação CD/RMSP, há registro de apenas 15 reuniões do órgão, cujas principais pautas foram temas como a eleição de seu presidente e vice, criação de câmaras temáticas e, após a edição do Estatuto da Metrópole, acompanhamento da elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado – PDUI, que estabelece as diretrizes para o desenvolvimento territorial das regiões metropolitanas e seus projetos estruturantes.
Após anos de discussões, o PDUI da RMSP foi aprovado pelo CD/RMSP em sua última reunião, em 24 de abril de 2019<a href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a>. Nas minutas finais do Caderno de Propostas e Projeto de Lei, não há menção à gestão compartilhada por Estado e Municípios dos serviços de saneamento básico.
Da atuação do CD/RMSP até o momento, verifica-se que a forma de gestão compartilhada do saneamento em regiões metropolitanas, conforme concebido pelo STF, é inexistente. As soluções são fornecidas individualmente pelos Municípios, sem intervenção do órgão metropolitano.
Os Planos Municipais de Saneamento Básico de São Paulo e Osasco, por exemplo, foram instituídos recentemente, por meio do Decreto Municipal nº 58.778/2019 e pela Lei Municipal nº 4.764/2016, respectivamente. Em Mauá, a agência reguladora Municipal foi reestruturada por meio da Lei Municipal nº 5.027/2015.
Assim, pelo que indica o caso da RMSP, há enorme descompasso entre o modelo concebido pelo STF, reafirmado na legislação, e a prática nas regiões metropolitanas. Simplesmente não existem iniciativas concretas de instituir e consolidar um sistema de gestão metropolitana efetivo de serviços públicos de interesse comum.
Esse é elemento de grave insegurança jurídica e que tem o potencial de prejudicar a expansão de investimentos, em especial privados, em saneamento básico. Como no caso de Guarulhos, pode-se manejar o entendimento vigente para anular futuros projetos, ao mesmo tempo que inexiste deliberação metropolitana.
Seguindo os precedentes existentes, do STF e TJSP, qualquer ato municipal relativo a saneamento básico é inconstitucional, por se tratar interesse comum. É urgente a compatibilização do modelo à realidade, para garantir estabilidade e segurança aos agentes e usuários.
No Rio de Janeiro, após o julgamento da ADI 1.842, replicou-se modelo semelhante ao da RMSP. A recém sancionada Lei Complementar 184/2018 atribui a titularidade sobre os serviços de saneamento básico ao Conselho Deliberativo da RM/RJ. Além dos representantes do Estado e Municípios, este inclui a sociedade civil e prevê peso maior a Municípios de maior população e ao Estado.
Fica a dúvida se a nova governança interfederativa da RMRJ irá conseguir implementar satisfatoriamente o modelo previsto na legislação e no PL 3.261/2019 ou se, como em São Paulo, haverá um “titular ausente” dos serviços.
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Conforme texto divulgado no JOTA em julho de 2018, sobre a MP 844/2018: <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saneamento-basico-avancos-e-desafios-da-mp-844-2018-20072018">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/saneamento-basico-avancos-e-desafios-da-mp-844-2018-20072018</a>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Lei Federal nº 13.089/2015.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2071833-93.2013.8.26.0000; Relator (a): Evaristo dos Santos; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo - N/A; Data do Julgamento: 08/04/2015; Data de Registro: 06/05/2015.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Leis municipais nº 7.095, 7.096 e 7.102, de 20 de dezembro de 2012, que, respectivamente, instituiu a Política Municipal dos Serviços Públicos de Abastecimento de Água e do Esgotamento Sanitário no Município de Guarulhos, permitiu a contratação de Parceria Público-Privada, precedida de concorrência pública, pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Guarulhos SAEE; e criou Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Saneamento Básico de Guarulhos.
</div>
<div id="sdfootnote5">
<a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> Em agosto de 2017, a SABESP divulgou Fato Relevante aos seus acionistas e ao mercado em geral que iria celebrar contrato de interdependência com o SAAE para o fornecimento de água no atacado e acordo para o pagamento da dívida, que a época totalizava R$ 2,9 bilhões, Conforme publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo, seção empresarial, de 30 de agosto de 2017.
</div>
<div id="sdfootnote6">
<a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> Conforme notícia vinculada no site do PDUI: <a href="https://www.pdui.sp.gov.br/rmsp/?p=12503">https://www.pdui.sp.gov.br/rmsp/?p=12503</a>
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