Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Vi todas as nações do mundo reunidas, e aprendi a não me envergonhar da minha.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Ruy Barbosa</footer>
</blockquote>
<footer>Completou-se na última quarta-feira, 1º de março, o centenário da passagem de Ruy Barbosa (1849-1923), um dos maiores intelectuais que nosso país já teve. Ruy era um polímata e se notabilizou em diversas áreas. Considerava-se sobretudo um jornalista, mas foi no direito, como jurista, que Ruy deixou talvez o seu maior legado na construção do Brasil.Nas faculdades de direito estudamos todos o famoso “Habeas Corpus 300”, impetrado perante o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> (STF) em 1892, no qual Ruy Barbosa desenvolveu a chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”, segundo a qual o remédio, em nosso direito, poderia ser usado contra qualquer “lesão ou ameaça de lesão a direito”, não se reduzindo apenas ao direito de ir-e-vir. A ação de Ruy, apesar de o pedido ter sido negado pelo STF, abriu o caminho para o desenvolvimento do mandado de segurança, remédio incorporado oficialmente em nosso direito somente na Constituição de 1934.O pensamento prático de Ruy Barbosa não influenciou somente o direito brasileiro. Ruy teve, de fato, uma enorme influência também no desenvolvimento do direito internacional público, a partir de sua atuação como jurista-diplomata, na tradição do Itamaraty, a qual já aludimos no artigo “<a href="https://www.editorajc.com.br/justica-e-diplomacia-na-formacao-do-brasil/">Justiça e diplomacia na formação do Brasil</a>”, publicado na Revista Justiça e Cidadania.
Em julho de 1903, por exemplo, foi formada uma comissão entre o Brasil e a Bolívia para negociar um tratado entre os dois países para solucionar a questão do Acre. A delegação brasileira foi composta pelo Barão do Rio Branco, por Joaquim Francisco de Assis Brasil e por Ruy Barbosa. Os termos da negociação final, que ficaram consubstanciados do Tratado de Petrópolis (1903), incluíam uma permuta de territórios entre o Brasil e a Bolívia.
Ruy era radicalmente contrário a qualquer cessão de território brasileiro e terminou por renunciar ao cargo de plenipotenciário brasileiro em outubro de 1903. Passou, então, a fazer oposição à ratificação do Tratado de Petrópolis no Senado. A avença, contudo, foi ratificada em 10 de março de 1904, sob intenso e apaixonado debate nacional.
Mas foi na 2ª Conferência da Paz de Haia (1907) que Ruy Barbosa notabilizou-se internacionalmente pela defesa intransigente do princípio da igualdade soberana das nações perante o direito internacional público. Essa foi a primeira conferência em que estiveram presentes todos os Estados soberanos da época e representou a estreia do Brasil na alta diplomacia global. A conferência tinha por objetivo principal discutir, sob o ponto de vista preponderantemente jurídico, a construção de mecanismos para a preservação da paz e para a solução pacífica das controvérsias internacionais.
Nesse sentido, os Estados Unidos apresentaram uma proposta de reorganização da Corte Permanente de Arbitragem, criada na Primeira Conferência da Paz de 1899. Em lugar dessa corte, avançava a proposta, deveria ser criado um Tribunal Permanente de Arbitragem Internacional, cuja composição se daria de maneira desigual e hierarquizada, conferindo a alguns países o direito a nomear um árbitro único permanente e aos demais o direito apenas a um assento rotativo de base regional ou grupal. Era, em suma, uma proposta discriminatória, que separava os países pelo poderio bélico puro em simples, consagrando o “direito da força” em detrimento da “força do direito”, para usar uma imagem de Ruy, no plano internacional.
A proposta norte-americana significava, nas próprias palavras de Rio Branco, o abandono da igualdade soberana dos Estados e o reconhecimento de que algumas nações seriam potências de quarta ou quinta categoria. A proposta, em suma, reconhecia de jure a diferença entre grandes e pequenas nações.
Ruy Barbosa, assim, em nome do Brasil, defendeu com veemência o princípio da igualdade soberana dos Estados, rejeitando qualquer diferenciação baseada na força militar. O Brasil, dessa maneira, tomou a liderança da conferência, fazendo com que muitos países abandonassem a proposta dos EUA, que acabou por ser taxada de “proposta anônima”.
A posição brasileira também recebeu o apoio de diversos outros países, em especial dos países do nosso continente americano. A atuação brasileira na conferência marcou a consolidação de uma postura internacional do Brasil pautada pela seriedade, pela sobriedade e pela defesa arraigada do direito internacional.
Ruy dominou a conferência tão completamente que recebeu, no retorno ao Brasil, a alcunha de “Águia de Haia”. A sua defesa inabalável do princípio da igualdade soberana dos Estados cristalizou-se mesmo em um dos paradigmas da ação diplomática brasileira, estando atualmente, <a href="http://funag.gov.br/loja/download/II-conferencia-da-paz-daia-1907.pdf">como bem lembra o embaixador Carlos Henrique Cardim</a>, consagrada como cláusula pétrea de nossa Constituição Federal, em seu art. 4º, inciso V. O embaixador Celso Amorim, por sua vez, <a href="https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/1-334-diplomacia_multilateral_do_brasil_um_tributo_a_rui_barbosa_a">ressalta que Ruy Barbosa foi também o pioneiro da diplomacia multilateral do Brasil</a>, encarnando a estreia brilhante de nosso país no concerto das nações.
Com prestígio insuperável após a brilhante atuação em Haia, Ruy Barbosa foi eleito presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros em 1914. Seu discurso de posse, intitulado “<a href="https://iabnacional.org.br/galeria_presidente_discursos/16.pdf">O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira</a>”, entrou para os anais da nossa história jurídica como a principal aula sobre a separação e o equilíbrio entre os Poderes em nosso direito pátrio, cujo papel e modus operandi do STF contrasta em diversos pontos com o do direito norte-americano. Vale lembrar que Ruy fora um dos principais redatores da Constituição de 1891.
Em 1916, o gênio de Ruy Barbosa brilhou novamente no direito internacional público. Ruy fora, então, nomeado embaixador extraordinário do Brasil às comemorações do centenário da independência da República Argentina. Dentre as inúmeras atividades do representante brasileiro na capital portenha, destaca-se uma conferência, proferida em castelhano na Faculdade de Direito de Buenos Aires, intitulada “<a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1033/218071.pdf?sequence=4&amp;isAllowed=y">Conceptos Modernos de Derecho Internacional</a>.”
A conferência teve enorme repercussão internacional, entrando para a história com o título de “O dever dos neutros.” Nela, Ruy apresentava uma nova concepção do direito de neutralidade, em face das inúmeras a intricadas conexões geradas entre as nações, que formavam uma verdadeira sociedade internacional:
<blockquote class="jota-article__citation">A reforma a que urge submetê-las deve seguir a orientação oposta: a orientação pacificadora da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade: é praticá-la. Desde que a violência calca aos pés, arrogantemente, o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime. Em presença da insurreição armada contra o direito positivo, a neutralidade não pode ser a abstenção, não pode ser a indiferença, não pode ser a insensibilidade, não pode ser o silêncio.</blockquote>
Ruy Barbosa defendia, assim, o dever dos neutros de protestarem contra ofensas ao direito internacional:
<blockquote class="jota-article__citation">É essa, portanto, uma situação inquestionável, que os estados afirmaram pelas convenções de Haia. É esse um direito que a neutralidade, por meio delas, conquistou, e um dever a que, por elas, se submeteu: o direito e o dever de constituir um tribunal de consciência, uma instância de opinião, uma jurisdição moral sobre os estados em guerra, para julgar-lhes os atos e reprovar-lhes os excessos. A neutralidade inerte e surda-muda cedeu o passo à neutralidade vigilante e capaz de função judiciária.</blockquote>
E assim definia a sua nova concepção de neutralidade:
<blockquote class="jota-article__citation">A imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a comunhão na manutenção das leis escritas pela comunhão: eis aí a nova neutralidade, que, se deriva positivamente das conferências de Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno. A neutralidade recebeu uma nova missão e tem, agora, uma definição nova. Não é a expressão glacial do egoísmo. É a reivindicação moral da lei escrita. Será, pois, a neutralidade armada? Não: deve ser a neutralidade organizada. Organizada, não com a espada, para usar da força, mas com a lei, para impor o direito. O direito não se impõe somente com o peso dos exércitos. Também se impõe, e melhor, com a pressão dos povos.</blockquote>
Ruy defendia para o continente americano a vocação de ser uma força de união da sociedade internacional com base no direito:
<blockquote class="jota-article__citation">A vocação, pois, que se está delineando para este continente, não é nem a de retrair-se ante a pendência travada, além do oceano, entre a civilização e a militarização do mundo, nem a de absorver-se, também ela, no militarismo, que reduziu a Europa ao dilema de se arruinar sob a paz armada, ou buscar o termo de seus grandes armamentos no desastre de uma guerra por eles imposta. Essa vocação se orienta no sentido de tratar de assumir a iniciativa, e de contribuir de modo influente para a constituição do novo sistema de vida internacional, pela associação ou aproximação das nações, mediante um regímen que substitua a lei da guerra pela da justiça. Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão preparando a paz. Si vis pacem, para pacem.</blockquote>
Essa conferência de Ruy em Buenos Aires teve enorme impacto na quebra da neutralidade brasileira durante os anos iniciais da Primeira Guerra Mundial. Ela foi instrumental inclusive na queda do então chanceler Lauro Müller, germanófilo, particularmente após o torpedeamento do navio brasileiro Paraná, perto da costa francesa. Müller foi substituído no Itamaraty por Nilo Peçanha, próximo de Ruy Barbosa, que rompeu com a política de neutralidade e colocou o Brasil do lado dos Aliados.
A conferência de Ruy Barbosa em Buenos Aires continuou a pautar a posição brasileira nas décadas seguintes, vindo mesmo a ser recuperada por Oswaldo Aranha. Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas conduzia uma política de neutralidade, em tons fortemente ambíguos de admiração pelos países do Eixo. Com a queda da França, Vargas proferiu o seu infame discurso a bordo do encouraçado Minas Gerais, em que elogiava o Reich e prenunciava “o limiar de uma nova era”.
O discurso, proferido de surpresa, foi tomado pelo chanceler Oswaldo Aranha como uma ofensa, vez que ele representava as forças favoráveis ao apoio brasileiro às democracias ocidentais. Aranha, então, escreve ao presidente, entregando o cargo e reiterando os argumentos de Ruy Barbosa em “O dever dos neutros”. A posição firme de Aranha em favor das democracias ocidentais, apoiada nos argumentos de Ruy, foi crucial para que o Brasil quebrasse a sua neutralidade e entrasse na guerra ao lado dos Aliados contra as potências nazifascistas.
Há, por fim, uma última ação de efeito perene de Ruy Barbosa no Itamaraty que merece registro. Em 1918, Maria José de Castro Rebello Mendes foi a primeira mulher a ingressar na carreira diplomática, tendo sido aprovada em primeiro lugar nos exames de admissão ao Itamaraty. A inscrição provocou enorme celeuma na época, tendo sido aprovada pelo chanceler Nilo Peçanha após uma intervenção jurídica de Ruy Barbosa, que defendia que a Constituição de época não impedia o acesso de mulheres aos cargos públicos.
Era o início de uma longa e exitosa história de brilho, lutas e muito suor a serviço do Brasil e dos brasileiros derramado pelas mulheres no Itamaraty, história essa que foi registrada pelo ministro Guilherme José Roeder Friaça em seu “Mulheres diplomatas no Itamaraty (1918-2011): uma análise de trajetórias, vitórias e desafios”, disponível para download gratuitamente <a href="http://funag.gov.br/loja/download/miolo-mulheres-diplomatas-no-itamaraty.pdf">aqui</a> na biblioteca digital da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG).
A passagem de Ruy Barbosa por esta terra deixou marcas profundas e indeléveis. Foi ele, na verdade, um grande revolucionário, apresentando ideias originais sobre os instrumentos de defesa dos direitos fundamentais, o princípio da igualdade jurídica das nações, a nossa arquitetura constitucional, as prerrogativas inerentes ao direito de neutralidade e a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Cem anos após o desaparecimento de Ruy, suas ideias e criações jurídicas seguem firmes a brilhar em nosso firmamento. De mortuis nil nisi bonum dicendum est.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Dos mortos diz-se apenas aquilo que é bom.
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JOTA

Ruy Barbosa e o direito internacional

O centenário da morte da Águia de Haia, Ruy Barbosa