Fábio Lima Quintas

No momento em que se intensificam no ambiente acadêmico e legislativo os debates sobre a reforma da lei de ação civil pública, em vista do PL 4.441/2020 (projeto apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira) e do PL 4.778/2020 (projeto apresentado pelo Deputado Marcos Pereira, a partir de anteprojeto elaborado pelo CNJ), em trâmite na Câmara dos Deputados, a União Europeia acaba de aprovar nova Diretiva, voltada a regular as ações coletivas de consumo (Diretiva 2020/1828, de 25 de novembro de 2020<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>).
No Brasil, parece haver consenso de que o regime jurídico das ações coletivas merece ser atualizado. Não obstante o inegável mérito da Lei nº 7.347, de 1985, depois complementada pelo Código de Defesa do Consumidor, em 1990, e alterada por intervenções pontuais (como as alterações introduzidas pela Lei nº 9.494, de 1997), compreende-se que o tempo decorrido, a modificação da realidade, a vasta jurisprudência que se formou e o advento de novas normas de direito processual e material justificam a atualização legislativa, para conferir nova organicidade ao regime jurídico da tutela coletiva.
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Esse consenso sobre a necessidade de atualização do regime de tutela coletiva não se repete na avaliação sobre a melhor forma de modernizar a legislação, como se vê dos debates que já se iniciaram a respeito dos projetos de lei referidos, nos quais grassa grande divergência.
Pode lançar luzes para a discussão olhar em que termos se pôs o tema na União Europeia, quando menos para fazer um contraponto à visão comumente difundida de examinar o nosso sistema de tutela coletiva à luz das class actions norte-americanas.
Por óbvio, não se deve pretender absorver o que ali se faz (como também se deve evitar mimetizar de forma acrítica qualquer experiência jurídica estrangeira), até porque a experiência brasileira é muita rica e já superamos algumas questões que ainda estão em aberto em outros países. O que merece ser feito é dirigir o olhar para observar as escolhas que foram feitas e as razões para tanto, assumindo que se trata de uma experiência jurídica relevante não só pela dimensão econômica da União Europeia, mas também por compartilharmos, em muitos aspectos, uma visão comum dos valores que devem orientar a compreensão do ordenamento jurídico.
Essa nova diretiva decorreu de um longo, porém consistente processo de amadurecimento, considerando o impacto que a nova norma comunitária terá no ordenamento jurídico dos Estados Membros, que possuem suas especificidades. Em 2008, a Comissão Europeia publicou livro verde sobre a tutela coletiva dos consumidores (COM (2008) 794, de 27.11.2008). Em 2013, a Comissão Europeia publicou a comunicação “Rumo a um quadro jurídico horizontal para a tutela coletiva”. Também em 2013, a Comissão Europeia adotou a Recomendação sobre os princípios comuns que devem reger os mecanismos de tutela coletiva inibitórias e indenizatórias dos Estados-Membros aplicáveis às violações de direitos garantidos pelos direitos da União (2013/396/UE, de 26 de julho de 2013). Em 2018, a Comissão apresentou proposta de nova diretiva, como parte de seu pacote “Novo Acordo para os Consumidores”, como resposta a vários escândalos relacionados ao direito do consumidor. Em 2019, o Parlamento Europeu aprovou proposta de diretiva em primeira leitura. Em 2020, depois de um acordo firmado entre o Conselho e o Parlamento Europeu, o Conselho aprovou o projeto de diretiva no início de novembro<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, ao que se sucedeu a aprovação pelo Parlamento, em segunda leitura, no final do mesmo mês, tendo a nova diretiva sido publicada no último dia 4 de dezembro.
Chegamos, então, à Diretiva 2020/1828, que entra em vigor 20 dias após a sua publicação, impondo, a partir daí o dever de os países da UE realizarem a transposição de seus termos para o direito nacional, no prazo de 24 meses<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. A norma busca criar um marco regulatório comum entre os Estados Membros para as ações coletivas de consumo, na perspectiva de que a criação de um mercado interno comum (sem fronteiras internas para circulação de mercadorias e serviços) deve vir acompanhada de um elevado nível de defesa dos consumidores, o que constitui grade desafio, em vista dos diversos ordenamentos jurídicos dos Estados Membros.
Na Recomendação de 11 de junho de 2013, a Comissão sinalizava aspectos relevantes para o regime processual que se pretendia forjar. Buscando afastar-se de forma expressa e clara da experiência norte-americana das class actions, a Recomendação indicava como sua finalidade “facilitar o acesso à justiça, impedir práticas ilícitas e permitir que as partes lesadas obtenham uma reparação em situações de dano em massa resultante de violações de direitos concedidos pelo direito da União, assegurando, simultaneamente, salvaguardas processuais adequadas para evitar a litigância abusiva”.
No que se refere à forma de atuação das entidades autorizadas a ajuizar na defesa da coletividade (nas ações indenizatórias), a Recomendação indicava a preferência pelo modelo de inclusão voluntária dos interessados a serem alcançados pela tutela coletiva (regime do opt-in). Na União Europeia (diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, que adota o regime do opt-out ou exclusão voluntária), entende-se que a autonomia da vontade e a boa administração da justiça recomendam que se adote o princípio da adesão voluntária dos interessados em beneficiar-se de uma ação coletiva. Também diferentemente do que ocorre em outros países, a Recomendação sugeria a proibição das indenizações punitivas “que conduzam a uma sobrecompensação do dano sofrido a favor da parte requerente”, no âmbito das ações coletivas cíveis.
Grande importância se dava, ainda, à resolução alternativa de litígios e aos acordos coletivos, dispondo a Recomendação que “os Estados-Membros devem assegurar que as partes num litígio relativo de uma situação de dano em massa são incentivadas a resolver o litígio sobre a compensação consensual ou extrajudicialmente, tanto na fase anterior ao processo como durante o processo cível”.
Na mesma linha, a diretiva, na sua origem, na versão proposta em 2018, indicava em sua exposição de motivos, a preocupação de “equilibrar os aspetos que facilitam o acesso à justiça, com vista a salvaguardar os interesses dos consumidores, e os aspetos que asseguram salvaguardas adequadas contra a litigância de má-fé”. E prosseguia, na justificativa: “O modelo de ação coletiva proposto, segundo o qual os Estados-Membros devem designar entidades qualificadas de acordo com critérios de reputação mínimos, constitui uma forte garantia contra ações infundadas”.
<blockquote class="jota-article__eye">Durante todo o período que antecedeu a nova diretiva, a análise dos pareceres e documentos da União Europeia revelam a nítida preocupação de que a proteção dos consumidores fosse feita dentro de um processo justo e que não houvesse a captura da ação coletiva para defender outros interesses ou para prejudicar empresas.</blockquote>
Trata-se de uma importante sinalização, que valoriza a visão do devido processo legal como garantia de efetivação de direitos do autor e do réu e que reconhece os danos que podem advir da simples tramitação de um processo infundado.
A nova diretiva não trai essa preocupação. Em linhas gerais, a diretiva cria dois grandes grupos de ações coletivas: i) ações coletivas nacionais, ajuizadas por entidades legitimadas pelo Estado-Membro para ajuizar ação naquele Estado-Membro; e ii) ações coletivas transfronteiriças, nas quais as entidades são legitimadas para ajuizar ações em qualquer outro Estado-Membro das União Europeia. A distinção é relevante porque a diretiva impõe critérios mais rígidos para as ações coletivas transfronteiriças, criando um dever de harmonização do direito aplicável entre os Estados-Membros. Nas ações nacionais, confere-se maior autonomia aos Estados Membros<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Especial atenção é conferida à definição das entidades autorizadas a ajuizar ações coletivas (em especial nas ações transfronteiriças, nas quais deve haver um regramento uniforme em todos os países da UE). As entidades qualificadas precisarão demonstrar que possuem um certo grau de estabilidade, que exercem atividade pública e que não possuem fins lucrativos. Para além do poder de controle conferido ao Juiz para inibir ações coletivas infundadas, a diretiva estabelece que as entidades qualificadas têm de cumprir uma série de requisitos de transparência, designadamente no que respeita ao seu financiamento por terceiros, para prevenir conflitos de interesses. Isso pode ocorrer, por exemplo, tanto na situação em que a ação coletiva é estimulada por um concorrente da empresa quanto em situações nas quais há um financiador cujos interesses podem se sobrepor aos interesses da coletividade.
Diferentemente do que ocorre hoje no Brasil, chama a atenção que a diretiva adota, em relação aos ônus sucumbenciais nas ações coletivas indenizatórias, o princípio do perdedor pagador, pelo qual a parte vencida suporta as despesas processuais incorridas pela parte vencedora. Isso é feito como forma de prevenir a litigância de má-fé.
Ocupa também papel de destaque na diretiva orientações gerais sobre as formas alternativas de solução de controvérsia. Nas ações coletivas reparatórias, preceitua a diretiva que os acordos coletivos deverão ser incentivados com foco na reparação dos consumidores lesados. Qualquer acordo coletivo deverá ser objeto de homologação judicial (ou da autoridade administrativa competente), sendo que os acordos homologados deverão ser vinculativos para a entidades representativas, a empresa e os consumidores individuais em causa (admite a diretiva que a legislação nacional crie regras para permitir que os consumidores individuais possam exercer a faculdade de recusarem a vinculação a um acordo coletivo).
Sem a pretensão de exaurir todos os aspectos do processo coletivo (ante o princípio da autonomia processual dos Estados-Membros), a diretiva trata ainda de prescrição, estipula a não participação do consumidor individual (como parte processual) nas ações coletivas, traz disposições a respeito da convivência de ações coletivas e dessas com ações individuais, entre outras relevantes questões.
Não cabe nesse espaço posicionar-se sobre cada um desses temas. Mas essa exposição parece ser suficiente para mostrar que, nas discussões que se travarão no Brasil para atualização de nossa legislação, há vários interesses legítimos que devem nortear a formulação das regras processuais do processo coletivo. Revela ainda que não é trivial o desafio de formular um marco legal para a tutela coletiva que possa contribuir para o desenvolvimento econômico e social de um País, oferecendo, a um só tempo, um elevado nível de proteção de direitos (de consumidores, trabalhadores e de outros grupos sociais) e também a salvaguarda adequada das empresas, profissionais e do Estado, evitando que o processo seja um veículo para prejudicar injustificadamente o funcionamento das atividades empresariais e a governança do Estado. A conformação de um processo justo e equitativo não admite, pois, visões maniqueístas ou simplistas, em especial numa sociedade pluralista, comprometida com os valores do Estado Democrático de Direito.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a ações coletivas para proteger os interesses coletivos dos consumidores (COM (2018) 184 final, de 11/4/2018.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/11/04/collective-redress-for-consumers-council-adopts-position-at-first-reading/">https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2020/11/04/collective-redress-for-consumers-council-adopts-position-at-first-reading/</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Inteiro teor disponível em <a href="https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32020L1828&amp;from=EN">https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32020L1828&amp;from=EN</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Confira-se, a propósito, o considerando 23 da diretiva: “(23) Quando o caso o justifique, poderá ser possível, segundo as regras de direito internacional privado, que uma entidade qualificada intente uma ação coletiva no Estado-Membro em que foi designada, bem como noutro Estado--Membro. Alicerçando-se na Diretiva 2009/22/CE, a presente diretiva deverá estabelecer uma distinção entre esses dois tipos de ações coletivas. Quando uma entidade qualificada intenta uma ação coletiva noutro Estado-Membro que não aquele em que a entidade é designada, essa ação coletiva deverá ser considerada uma ação transfronteiriça. Quando uma entidade qualificada intenta uma ação coletiva no Estado-Membro em que é designada, essa ação coletiva deverá ser considerada uma ação coletiva nacional mesmo que essa ação seja intentada contra um profissional domiciliado noutro Estado-Membro e mesmo que no âmbito dessa ação coletiva estejam representados consumidores de vários Estados-Membros. Para determinar o tipo de ação coletiva, o critério decisivo deverá ser o Estado-Membro em que a ação é intentada. Por esta razão, uma ação coletiva nacional não poderá tornar-se transfronteiriça no decurso do processo, ou vice-versa.

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JOTA

Um olhar sobre a experiência europeia em vista da Diretiva 2020/1828, de 25 de novembro de 2020

Rumo a uma nova lei sobre as ações coletivas?

Um olhar sobre a experiência europeia em vista da Diretiva 2020/1828, de 25 de novembro de 2020