Gustavo Becker Krummenauer

O tema sobre a pacificação do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-rol-da-ans-e-a-dinamica-da-jurisprudencia-do-stj-18042022">entendimento jurisprudencial do STJ sobre a taxatividade ou não do rol da ANS</a> como instrumento de limitação da cobertura nos contratos de planos de saúde é objeto do julgamento que está em andamento nos embargos de divergência EREsp 1886929/SP e EREsp 1889704/SP, ambos de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão.
O EREsp 1886929/SP teve origem em dois recursos especiais, um da operadora quanto à validade da negativa de tratamento terapêutico, e outro do beneficiário, no tocante à indenização por danos morais. Os recursos especiais foram distribuídos para a 3ª Turma do STJ, tendo como relator o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que deu provimento ao recurso do beneficiário para condenação em dano moral devido à negativa e negou provimento ao recurso da operadora para validar a exclusão de cobertura, ambos recursos foram decididos monocraticamente. A operadora apresentou agravo interno, que foi negado pelo colegiado.
Posteriormente, os embargos de divergência distribuídos na 2ª Seção foram admitidos pelo relator ministro Luis Felipe Salomão. O julgamento dos embargos de divergência vem sendo pautado desde 23 de fevereiro deste ano, sendo que no julgamento do dia 16 de setembro de 2021 foram superadas as preliminares e foi proferido decisão de mérito com o voto do relator pelo provimento do recurso, com o reconhecimento da exclusão de cobertura contratual pelo rol da ANS.
Na mesma sessão, a ministra Nancy Andrighi pediu vista, proferindo seu voto-vista pelo não provimento recursal na seção de 4 de maio de 2021, a fim de manter as decisões, que afastaram a exclusão de cobertura pela inviabilidade do rol da ANS e que condenou em indenização por danos morais. Após o voto-vista da ministra, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva pediu vista, sendo adiado o julgamento com vista coletiva para os demais ministros.
O EREsp 1889704/SP tem origem em recurso interposto pela operadora, a fim de reconhecer a validade de ausência de cobertura para fornecimento de terapias intensivas que não contemplam o rol da ANS. O recurso foi distribuído para a 3ª Turma do STJ, com relatoria de Nancy, que negou provimento em decisão monocrática, nos termos da jurisprudência do colegiado, de que o rol da ANS não é instrumento válido para limitação da cobertura de contrato de plano de saúde. A operadora apresentou agravo interno que foi negado pela 3ª Turma. Os embargos de divergência foram distribuídos na 2ª Seção para a relatoria do ministro Salomão, que admitiu o recurso, seguindo o mesmo trajeto do EREsp 1886929/SP.
A 2ª Seção do STJ preferiu não afetar ao rito dos recursos repetitivos os embargos de divergência que estão em andamento, preferindo aguardar o término do julgamento para decidir sobre seus efeitos aos demais recursos em andamento.
Entretanto, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, que desenvolve um trabalho de inteligência na identificação de matérias com potencial de repetitividade ou relevante questão de direito, visualizou aproximadamente 206 acórdãos e 6.060 decisões monocráticas proferidas por ministros da 3ª e 4ª Turma do STJ sobre o tema de aplicação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/rol-da-ans">rol da ANS</a> na limitação da cobertura contratual. A comissão, na busca da correta interpretação da legislação federal, delimitou a questão jurídica infraconstitucional da seguinte forma: “A operadora do plano de saúde é — ou não — obrigada a cobrir tratamento médico e/ou medicamentos que não estejam listados no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS)”.
O presidente da Comissão Gestora de Precedentes, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, admitiu como recurso especial representativo de controvérsia o REsp 1949597/SC, de relatoria do ministro Marco Buzzi da 4ª Turma do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a>, com prevenção para os demais recursos sobre o tema. Também foram selecionados mais quatro recursos para tramitarem na mesma situação: REsp 1950735/SC, REsp 1950045/MT, REsp 1950077/MT e REsp 1950917/SC. O ministro relator dos recursos especiais proferiu decisão no sentido de aguardar a decisão do EREsp 1886929/SC pela 2ª Seção do STJ.
O STJ já formou alguns temas em recursos repetitivos envolvendo contratos de planos de saúde. Um deles é o Tema 990, que firmou a tese de que “as operadoras de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude">Anvisa</a>”.
Outro tema acerca de contrato de plano de saúde é o Tema Repetitivo 1067 do STJ, que firmou a seguinte tese: “Salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear o tratamento médico de fertilização in vitro”.
O Tema Repetitivo 1069 do STJ está afetado, a fim de definir a obrigatoriedade de custeio pelo plano de saúde de cirurgias plásticas em paciente pós-cirurgia bariátrica.
Esses temas são ligados à limitação do rol da ANS, ocasionando necessidade de alteração normativa pela agência quando a jurisprudência traz critérios objetivos e sólidos.
Após a decisão do REsp 1733013 da 3ª Turma do STJ, houve um visível aumento de decisões judiciais da 3ª e da 4ª Turma do STJ, passando de 16 acórdãos julgados pelas duas turmas entre 1º de janeiro de 2015 e 1º de dezembro de 2019 para 113 acórdãos julgados pelas duas turmas entre 10 de dezembro de 2019 e 20 de março de 2022. No primeiro período, foram julgados sete recursos especiais e nove agravos, enquanto no segundo período, foram julgados 12 recursos especiais e 99 agravos no segundo período.
Não há um aumento somente no número geral de julgados, mas uma grande diferença entre o número de julgados de recurso especial e agravo, que demonstra uma inclinação das turmas, cada qual, de fazer valer seus entendimentos. Também há identificação entre os relatores com o tema, como por exemplo, o ministro Luis Felipe Salomão ser relator em 25 de 34 acórdãos de agravo da 4ª Turma e a ministra Nancy Andrighi ser relatora em 39 de 65 acórdãos de agravo da 3ª Turma (período entre 10 de dezembro de 2019 e 20 de março de 2022).
Percebe-se ainda que alguns temas já definidos retornam à pauta, como no caso de cobertura para fornecimento de medicamentos, mesmo após o Tema 990 do STJ. Algumas decisões excepcionam o paradigma através de análises concretas, mesmo sendo vedado ao tribunal análise de matéria fático-probatória. Essa rediscussão sobre fornecimento de medicamento reflete uma alta complexidade dos casos envolvendo a saúde, bem como, uma dificuldade em definir paradigmas mais abrangentes.
Por outro lado, tratando-se de inseminação artificial, objeto do Tema 1067 do STJ, as duas turmas têm validado as exclusões do contrato de plano de saúde.
A decisão do REsp 1733013 da 4ª Turma do STJ trouxe uma proposta de revistar a jurisprudência da Corte e encontrar uma consolidação nos entendimentos jurisprudenciais, tornando válida a regulamentação dada pelo rol da ANS, que tem a formação normativa através da competência legislativa do inciso III do art. 4 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9961.htm">Lei 9.961/2000</a> e do § 4º do art. 10 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656.htm">Lei 9.656/1998</a>. Ademais, segundo a decisão, a limitação estabeleceria maior equilíbrio das obrigações contratuais entre as partes.
Contudo, o REsp 1733013 trouxe um acirramento na divergência de entendimento entre as turmas do STJ, o que é percebido pelo aumento das decisões proferidas após a decisão. As turmas estão enfáticas na defesa de suas teses, como demonstrou o julgamento dos ERESp 1886929/SP e 1889704/SP. A 3ª Turma defendendo o caráter exemplificativo do rol da ANS e sua não vinculação à limitação de cobertura contratual, enquanto a 4ª Turma defende a validade do rol da ANS como instrumento de limitação da cobertura contratual.
A solução do empasse está em aceitar o caráter exemplificativo do rol da ANS ou aceitar o caráter taxativo do rol da ANS.
A hipótese de adotar o caráter exemplificativo do rol da ANS irá afastar um instrumento de regulamentação da atividade de saúde que é instituído pela ANS que tem competência legislativa para definir a ampliação da cobertura do plano de saúde. Também fará com que haja uma supervalorização da prescrição médica do paciente em confronto com o direito de auditoria médica dos planos de saúde.
O afastamento do rol da ANS como limitador de cobertura pode ocasionar uma ampliação desproporcional na obrigação de fornecimento de serviços em saúde não prevista pela análise atuarial que compõe a estrutura da operadora. A perda de instrumento objetivo de controle de cobertura pelas operadoras poderá refletir no aumento de preço de novos contratos e de reajustes de contratos vigentes, ocasionando perda de beneficiários e maior utilização do SUS, bem como maior insegurança quanto à fiscalização pela ANS da cobertura, reajuste etc.
Ao adotar a hipótese de caráter exemplificativo do rol da ANS, porém, o beneficiário ganha maior garantia de cobertura do seu tratamento prescrito por médico, traz maior amplitude de cobertura e possibilidade de buscar o melhor tratamento.
A adoção da hipótese de caráter taxativo do rol da ANS poderá deixar o consumidor menos capaz de entender os critérios técnicos de cobertura, podendo ficar refém das operadoras de planos de saúde. Terá sua cobertura reduzida, necessitando arcar com tratamentos necessários à sua saúde que não contemplam o rol da ANS. O consumidor poderá ficar desassistido, sem tratamento, em casos de não cobertura, ocasionando um problema social grave.
Por outro lado, ao adotar o caráter taxativo do rol da ANS, o plano de saúde poderá ter maior segurança e previsão na cobertura, possibilitando a oferta de planos mais baratos. Irá reduzir a judicialização das relações entre beneficiário e operadora. Poderá haver ampliação do rol através de maior participação dos envolvidos, de maneira gradual e sem impacto financeiro ao sistema de saúde suplementar. Diminuirá oportunidades de prestadores de saúde fornecerem serviços sem a eficácia devidamente comprovada.
<blockquote class="jota-article__eye">Nas duas hipóteses ocorrerá vantagens e prejuízos. De toda a forma, acredita-se que a definição do caráter exemplificativo ou taxativo do rol da ANS não alcançará uma pacificação social.</blockquote>
Provavelmente, a judicialização irá continuar, seja pelo surgimento de novos procedimentos, seja por inaplicabilidade de velhos procedimentos. Ou ainda, seja por falta de conhecimento de critérios técnicos, por questões de gestão e financeira da operadora, por falta de apoio técnico ao juiz, por falta de satisfação do serviço, por relação entre paciente e prestador, por ganância ou outros diversos motivos que tornam a vida complexa.
De toda forma, data venia opiniões diversas, invalidar um instrumento de regulamentação da atividade de saúde suplementar instituído pela agência reguladora é abrir espaço para a falta de regulação e aumento da judicialização, sem qualquer garantia de alcançar justiça.
Talvez a melhor opção seja reconhecer a validade do rol da ANS como instrumento de limitação contratual, dentro de um pensamento sistêmico importante, mas com possibilidade de revisão, seja administrativa ou judicial, a ser analisado no caso concreto. Quiçá o tempo trará maturidade para o diálogo e conjugação dos interesses das partes que formam o sistema de saúde suplementar.
O mais próximo de uma solução nesse sentido podem ser as decisões da 4ª Turma, proferidas após o julgamento do RESp 17033013, que vem reconhecendo a estrutura de regulamentação da saúde suplementar e determinaram o retorno dos autos à origem para que seja realizada perícia técnica, a fim de verificar a adequação da solicitação médica, a necessidade do paciente, o preenchimento ou não dos requisitos para a cobertura do rol da ANS, a existência de outro tratamento possível e eficaz etc. Nesses casos, seria ideal a instituição de câmaras técnicas nas varas ou varas especiais para auxiliar de forma independente a resolução das ações envolvendo a saúde.

fachada do STJ

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Definição do caráter exemplificativo ou taxativo não alcançará uma pacificação social

O rol da ANS na jurisprudência do STJ e a função pacificadora da jurisdição

Definição do caráter exemplificativo ou taxativo do rol da ANS pelo STJ não alcançará uma pacificação social