Pandemia

Riscos, reequilíbrios, força maior e COVID-19 em contratos de concessão

É preciso levar em consideração as realidades e peculiaridades de cada regime de regulação

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Crédito: Pixabay

Este artigo discorre sobre aplicabilidade de reequilíbrio contratual em contratos de concessão, em razão de eventos decorrentes de caso fortuito ou força maior. Inicialmente, entendemos como necessária apresentação sobre a teoria econômica que fundamenta a distribuição de riscos nos contratos. Apresentamos também como alguns setores regulados pela União tratam o tema e como o reconhecimento do reequilíbrio gera efeitos diferentes, em função do regime regulatório adotado.

A lei geral que rege as concessões de serviço público no Brasil (Lei 8.987/95) prevê que o setor privado assumirá a operação do serviço “por sua conta e risco”. Tal alocação de risco, no entanto, encontra limites postos pela mesma lei, ao dispor que alterações unilaterais feitas pelo poder concedente deverão gerar reequilíbrio contratual, inclusive os casos de alteração nos impostos. É o reconhecimento de que fatos da Administração (ou fatos do príncipe) se enquadram na álea extraordinária do contrato, em que o desequilíbrio da equação econômico-financeira originalmente celebrada deve ser eliminado, sob pena de expropriação ou enriquecimento injusto por uma das partes.

Também se estabeleceu no instrumento legal a proibição de penalizar com caducidade o concessionário que paralisar o serviço nas hipóteses de caso fortuito ou força maior.

Diferentes fontes de interpretação da legislação sugerem que o objetivo do legislador foi de imputar ao concessionário a maior parte dos riscos de operação do serviço, isentando o poder público de obrigações perante a sociedade, exceto aqueles riscos que seriam insuportáveis de assunção pelo privado. Legislação posterior a respeito de normas gerais para contratação de parceria público-privada (Lei 11.079/2004) aprimorou os instrumentos ao dispor que o contrato deverá “prever a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária”.

A alocação de riscos entre poder concedente e setor privado vem sendo bem feita? Quem deve assumir o risco de demanda, ambiental, de construção, de desapropriação, cambial…?

A partir de conclusões da literatura de teoria de contratos e teoria de jogos, já se apontou para recomendações de boas práticas[1] na distribuição de riscos, de forma que deveriam ser alocados à parte que:

  1. melhor tem condições de controlar a ocorrência do risco;
  2. melhor tem condições de controlar o impacto do evento, caso aconteça; e
  3. absorveria o impacto ao menor custo.

Com uma boa alocação dos riscos, seria possível reduzir o seu custo social, atendendo ao interesse público de prestação adequada do serviço a preços módicos. A afirmação deriva do fato de que, ao alocar o risco a quem tem melhor controle sobre ele, haverá incentivos para que o agente mitigue ou atenue o impacto negativo do evento. Para minimizar o prejuízo (ou maximizar os lucros), o agente adotará ações até o ponto em que o custo de agir seja menor que a redução da perda esperada decorrente do evento de risco. Há, portanto, um ponto ótimo de atuação perante a existência de risco, e a busca pela otimização somente ocorrerá caso haja a alocação correta de incentivos (por meio da matriz de riscos contratual).

O exemplo da ocorrência de um terremoto é bastante ilustrativo para o exercício proposto acima. Nenhuma das partes (poder público e concessionário) tem condições de controlar a ocorrência do evento. Já em relação ao controle do impacto do evento, é possível ao concessionário projetar prédios e estruturas que comportem razoável abalo sísmico, o que recomendaria a alocação desse risco ao parceiro privado.

No entanto, para terremotos de proporções bíblicas, controlar o seu impacto pode ser impossível a custos pagáveis. Dificuldade adicional é que, na impossibilidade de estimar cenários probabilísticos para um evento, os benefícios da otimização acima apontada não seriam alcançados, tendo em vista haver uma incerteza, e não exatamente um risco[2].

Outro exemplo diz respeito ao licenciamento ambiental. Trata-se de ato do poder público (a emissão da licença), mas que depende de uma série de ações por parte do parceiro privado, como a realização de estudos de impacto bem feitos e projeto de engenharia que, na maioria das vezes, comporta maleabilidade ao sabor de escolhas do concessionário. Assim, a alocação de risco frequentemente é dividida às partes, de acordo com as ações esperadas de cada ator.

A avaliação das recomendações de boas práticas para alocação de riscos ainda precisa ser ponderada pelo fato de que quanto maior o risco imputado ao parceiro privado, maior o preço do serviço, dadas as demais condições constantes, tendo em vista que a taxa de retorno exigida pelo acionista e o custo de crédito serão maiores.

Assim, é possível que mesmo diante de uma recomendação de alocar o risco ao parceiro privado, pode ser benéfico ao interesse público que a Administração o assuma, para fins de viabilizar a prestação do serviço ao preço que os usuários estariam dispostos a pagar. Essa discussão é feita atualmente no Brasil de forma isolada, na estruturação de cada contrato de concessão de cada setor, em vista das peculiaridades dos projetos e das sensibilidades políticas.

A exposição acima nos remete ao momento atual vivido pelo país, em que a calamidade pública decorrente do Covid-19 obrigou a suspensão de atividades econômicas, interrupção do fluxo de pessoas e queda no consumo geral de produtos e serviços. As concessionárias vêm enfrentando complexo desafio financeiro, em razão de brusca redução nas receitas, existência de custos fixos elevados (principalmente custo de capital) e necessidade de manutenção da prestação do serviço.

Os contratos de concessão federais são, regra geral, silentes a respeito de perdas decorrentes de pandemias e calamidades. Há previsões esparsas em alguns contratos de rodovias e transmissão de energia elétrica acerca da dispensa do cumprimento de obrigações no caso de comprovada calamidade. Por outra seara, prosperam nos contratos referências à expressão “caso fortuito e força maior”, resumidas para os setores de transportes e energia conforme a seguir.

Concessão de Rodovias

A previsão em contrato altera a cada rodada de licitação e, regra geral, há previsão de que é risco do poder concedente i) ocorrências de caso fortuito ou força maior que resultem em acréscimo de custo à concessionário ou Ihe proporcione enriquecimento ou empobrecimento injustificado; e ii) desde que para o caso fortuito ou força maior não possam ser objeto de cobertura de seguros oferecidos no Brasil à época de sua ocorrência (para contratos a partir da segunda rodada de concessões).

Em alguns contratos ainda se afirma que a avaliação considerará a existência de um risco segurável em praças brasileiras, por apólices comercialmente aceitáveis e independentemente de a concessionária as ter contratado.

Concessão de Aeroportos

Em regra, os contratos dispõem que é risco do poder concedente a ocorrência de eventos de força maior ou caso fortuito, desde que impliquem alteração relevante de custos ou receitas da concessionária, exceto quando a sua cobertura possa ser contratada junto a instituições seguradoras, no mercado brasileiro, na data da ocorrência ou quando houver apólices vigente que cubram o evento.

Concessão de Ferrovias

Em contrato mais recente, dispõe que a concessionária não será responsável pelo risco decorrente de caso fortuito e força maior, alocando-o ao poder concedente.

Arrendamentos Portuários

Regra geral, estabelecem que caso fortuito ou força maior são riscos alocados ao poder concedente, desde que não possam ser objeto de cobertura de seguros oferecidos no Brasil à época de sua ocorrência, em condições normais do mercado de seguros.

Distribuição de Energia Elétrica

Os contratos nada dizem sobre alocação de risco decorrente de caso fortuito ou força maior.

Transmissão de Energia

Apenas estabelecem que indisponibilidades da prestação do serviço decorrentes de sabotagem, terrorismo e catástrofes consideradas calamidades públicas, bem como as causadas por caso fortuito ou força maior não implicarão descontos na receita pactuada com o poder público.

Geração de Energia

A maior parte dos projetos são outorgados na forma de autorização. Os contratos de concessão existentes, em regra, nada dizem sobre alocação de risco decorrente de caso fortuito ou força maior.

Concessão de Exploração de Petróleo e Gás

O contrato é claro ao dispor que a concessionária deverá suportar todos os prejuízos que venha a incorrer, inclusive aqueles resultantes de caso fortuito ou de força maior e de acidentes ou de eventos da natureza que afetem a exploração e produção de petróleo e gás natural na área de concessão. Importante ressaltar que tais concessões não se tratam de concessões de serviços públicos.

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Como visto, a opção da Administração Pública Federal[3], na maioria das vezes, foi no sentido de alocar claramente o risco de caso fortuito e força maior ao poder concedente, provavelmente no intuito de aumentar a atratividade para o investidor. No entanto, a responsabilidade é transferida à concessionária nas situações de risco segurável, ou seja, quando for possível a contratação de seguro no Brasil para o evento em questão.

Para os contratos silentes a respeito da distribuição do risco de caso fortuito ou força maior, a possível revisão do contrato exigirá aplicação de dispositivos gerais da legislação e  jurisprudência existente, para definição dos encargos de cada parte, especialmente se considerarmos que o impacto vem sendo relevante também para o usuário (perda de renda, desemprego) e para o poder público (queda na arrecadação de impostos).

Caso se confirme o entendimento de que a calamidade decorrente do COVID-19 é classificada como caso fortuito ou força maior, entendimento compartilhado pelo autor deste texto, caberá aos reguladores avaliarem adequadamente se era possível a contratação de seguros por parte dos concessionários.

Em consulta preliminar feita por este autor ao ente regulador do mercado de seguros no Brasil e a seguradoras com atuação no mercado de infraestrutura, verificamos não existir lei ou normativo permitindo ou proibindo a cobertura de tal tipo de evento.

Também constatamos a inexistência do produto ofertado pelas seguradoras no Brasil para eventos classificáveis como de caso fortuito ou força maior, entre os quais os decorrentes de calamidades ou pandemias. As apólices preveem perda de direito de indenização nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, o que não impede que esse produto seja desenvolvido em momento futuro, caso haja demanda e a partir de limites a serem explorados pelas seguradoras.

Assim, em exame preliminar, parece ser adequado o entendimento de que, para aqueles contratos em que o risco de eventos de caso fortuito ou força maior foi alocado para o poder concedente, caberá o reequilíbrio em favor do concessionário em razão de eventuais  prejuízos decorrentes do COVID-19.

O reequilíbrio deverá ser feito nos termos dos contratos, por meio de variação no pagamento de outorga, pagamento direto pelo governo, alteração de obrigações contratuais, de valor das tarifas, de prazo contratual, entre outros ajustes possíveis. Nada impede que o poder público opte pela realização de reequilíbrios provisórios, com aplicação imediata, em vista das dificuldades financeiras de curtíssimo prazo já verificadas.

A aplicação imediata de cálculos provisórios, sujeitos a ajustes futuros, ao aguardo da obtenção de informações definitivas em momento posterior, tem precedentes em diversos setores e, para o caso em questão, se legitima em razão da conhecida (e justificada) dificuldade do regulador em calcular o impacto de eventos que afetam o equilíbrio contratual por meio da redução de receita da concessionária. Estimar o cenário contrafactual e responder qual seria a receita da concessionária caso não tivesse ocorrido o evento é sempre um desafio aos economistas e estatísticos.

Diferentes regimes regulatórios

Importante ressaltar que os contratos de concessão celebrados no Brasil diferem entre si não apenas na forma de repartição de riscos, mas também no regime de regulação.

Há contratos que permitem ao regulador ampla margem de discricionariedade, tanto para estabelecer parâmetros de qualidade quanto para definição de preços tabelados (tarifas), a exemplo do setor de distribuição de energia elétrica. Também nesse setor há revisões tarifárias periódicas de elevado alcance, baseadas em grande medida nos custos médios do setor, o que implica de certa forma renovação periódica da equação econômico-financeira do contrato.

Já em outros setores, o regime de regulação é fechado em parâmetros objetivos definidos no contrato, a fim de manter exatamente a equação econômico-financeira pactuada originalmente na licitação, a exemplo de concessões de rodovias e de aeroportos. Parte da literatura denomina este regime de Regulação por Contratos, em contraste à Regulação Discricionária[4].

Essa diferença de regimes de regulação está intimamente relacionada às consequências de entendimento entre enquadramento do COVID-19 como evento de caso fortuito ou força maior, passível de acionamento de gatilho de reequilíbrio contratual.

Para os setores regulados em regime de taxa de retorno garantida, como existente em alguns contratos estaduais de distribuição de gás e contratos municipais de transporte coletivo urbano, por exemplo, o regulador revisará as condições financeiras do contrato (custos, metas, parâmetros), independentemente do enquadramento do COVID-19 como caso fortuito ou força maior. Já para os contratos em que não há ampla revisão periódica, no regime de “regulação por contrato”, o impacto financeiro poderá se estender por longo período do contrato, a não ser que haja o reconhecimento do direito a reequilíbrio.

Assim, a aplicação diferenciada entre países e entes federativos brasileiros sobre os efeitos do COVID-19 nos contratos de concessão deve sempre ser lida tendo em consideração as realidades e peculiaridades de cada regime de regulação, adicionalmente à escolha de alocação de risco incorporada no contrato.

 

***Este texto é de responsabilidade exclusiva do autor e não reflete necessariamente a opinião da instituição à qual se vincula.

 

 

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[1] WORLD BANK. PPP Reference Guide Version 3. 2017. Disponível em: https://library.pppknowledgelab.org/documents/4699

Ver também: WORLD BANK Allocating Risks in Public Private Partnerships. 2016. Disponível em:

https://ppp.worldbank.org/public-private-partnership/library/allocating-risks-public-private-partnerships

[2] A diferença entre risco e incerteza se tornou conhecida após publicações de Frank Knight. Ver: https://en.wikipedia.org/wiki/Knightian_uncertainty

[3] Importante ressaltar que o Código Civil brasileiro, ao brevemente dispor sobre caso fortuito e força maior, possibilita que o contrato expressamente aloque tal risco a uma das partes:

“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”

[4] CAMACHO, F.; RODRIGUES, B. Regulação Econômica de infraestruturas como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES. 2014. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/2572/1/RB%2041%20Regulacao%20economica%20de%20infraestruturas_P.pdf