startups no setor público

Revolução silenciosa: o avanço das govtechs na transformação digital da América Latina

Oferta aumentou 275% nos últimos 5 anos e especialistas indicam crescimento exponencial do ecossistema até 2030

19/07/2023|05:00
digital
Crédito: Elements Envato

A tecnologia já transformou diversos setores da sociedade, e agora também está revolucionando a forma de governar. As govtechs – startups e empresas que desenvolvem soluções tecnológicas para o setor público – estão ganhando espaço e transformando a maneira como os governos se relacionam com os cidadãos.

Com soluções que vão desde a automatização de processos internos até aplicativos que permitem a participação direta dos cidadãos nas políticas públicas, as govtechs provocam um impacto positivo na gestão pública, como a redução de custos e do tempo de resposta às demandas da comunidade.

Segundo o CEO do BrazilLab, Guilherme Dominguez, o crescimento desse ecossistema nos últimos cinco anos ocorreu em volume e qualidade, principalmente se comparado ao último estudo realizado em parceria com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).

Em 2019, quando o mapeamento foi divulgado, foram identificadas 80 govtechs brasileiras vendendo de maneira consistente para governos ou atuando em parcerias com o setor público de forma recorrente. Apenas 20 iniciativas de inovação aberta para o governo existiam há cinco anos.

De lá para cá, mais de 300 startups, pequenas e médias empresas foram criadas e passaram a vender ou colaborar com o governo. Um aumento de 275% na oferta de soluções focadas em resolver problemas do setor público. Hoje são 170 iniciativas de inovação aberta ou laboratórios de inovação voltadas para esse mercado, um crescimento de quase 9 vezes, segundo o BrazilLab.

“O ecossistema govtech está num momento consolidado, cresceu três vezes em relação aos últimos cinco anos e nos deixa otimistas de que talvez cresça no mesmo ritmo até 2030”, aponta Guilherme.

O Brasil também tem se destacado no cenário mundial. De acordo com o GovTech Maturity Index de 2022, o país aparece no top 10, mostrando que tem investido em projetos tecnológicos para aprimorar serviços públicos.

A oferta qualificada de soluções tecnológicas, a demanda crescente por transformação digital nos órgãos públicos, o ambiente regulatório adequado e os bons resultados favorecem a entrada de capital nesse ecossistema.

Para Enrique Zapata, coordenador de Inteligência de Dados, Govtech e Governo Aberto do CAF, essa década será um período importante para estabelecer as bases para a maturidade do ecossistema govtech na América Latina.

“Trata-se de um fenômeno global e continuará crescendo exponencialmente. Num mundo em que as tecnologias avançam a cada dia, os governos contam com o setor privado para entender como aplicar e potencializar o uso dessas tecnologias em ambientes onde os orçamentos são escassos”, explica Enrique.

Ele pontua também que o salto para escalar esse crescimento é atualizar os sistemas de compras públicas, o que vai permitir uma relação mais fácil e ágil entre os governos e as govtechs.

Maior investimento na América Latina é do Brasil

A Aprova é uma suíte de soluções que moderniza a gestão pública e agiliza o atendimento ao cidadão, transformando processos físicos em digitais para tornar os serviços mais eficientes. Baseado no modelo Saas (Software as a Service), utiliza integrações, automações e inteligência artificial.

Na carteira, estão serviços como a emissão de alvarás, certidões e licenças ambientais e para empresas, além de processos relacionados ao consumidor, trânsito, fiscalização, saúde, tributos e protocolos. E acaba de lançar um serviço digital para o recolhimento parcelado de impostos.

Fundada em 2017 pelo arquiteto Marco Antonio Zanatta, há cerca de seis meses a empresa paranaense recebeu o maior aporte já realizado em uma govtech da América Latina, no valor de US$ 4 milhões.

A rodada Seed foi liderada pela Astella – que já havia investido na govtech em 2021 – e Banco do Brasil por meio da VOX Capital – a gestora do fundo de CVC de impacto do BB – e também teve participação do CAF e da Endeavor. 

Somente este aporte – equivalente a R$ 22,5 milhões – representa quase metade da quantia captada por govtechs brasileiras em oito das maiores operações divulgadas desde 2020, que totalizou R$ 48 milhões, segundo dados do LAVCA (Association for Private Capital Investment in Latin America) e Sling Hub.

Marco, que também é CEO da Aprova, projeta um crescimento exponencial nos próximos três anos. "Com cinco vezes mais fornecedores e entusiastas, o capital vai seguir esse caminho. Trabalhar com o governo será tão sexy quanto hoje é atuar no mercado de fintechs e healthtech, por exemplo", destaca.

Para ele, o governo como serviço vai empregar o melhor da tecnologia do setor privado para que gestores e servidores públicos melhorem suas operações gerais e ofereçam aos cidadãos a experiência que eles desejam.

Foi o que aconteceu na maior cidade da América Latina. São Paulo utiliza o licenciamento urbano digital e resolveu um problema que se estendia há décadas: a demora de quase um ano para aprovar projetos.

Hoje, 900 servidores de 32 subprefeituras trabalham online e seguem os mesmos padrões de análise. A comunicação digital e homogênea permitiu um salto de 39 mil para 131 mil unidades habitacionais autorizadas em 2021, comparando com o último ano sem essa tecnologia.

Além de São Paulo, a Aprova acumula 100 contratos com órgãos públicos e mais de 20 mil users por dia. A empresa calcula ter gerado uma economia de R$ 50 milhões aos cofres públicos e mais de 300 mil toneladas de papel em cidades brasileiras.

"Vivemos uma revolução silenciosa que está transformando a América Latina em um continente digital, referência global em serviços públicos autônomos e eficientes, com a missão de proporcionar uma experiência tão positiva quanto a já vivenciada (e aprovada) pelas pessoas no setor privado", conclui Marco.

Pioneira na melhoria das finanças públicas

A Gove é uma govtech que moderniza a arrecadação municipal por meio de funcionalidades inovadoras, como enriquecimento de dados e atualização cadastral do município, comunicação em massa multicanal e atendimento virtual.

O software resolve problemas comuns na rotina das administrações municipais e que prejudicam a arrecadação tributária, como dados inconsistentes de contribuintes e a comunicação ineficiente entre governo e cidadão. Com o software, é possível, por exemplo, enviar lembretes de vencimento de tributos por email, SMS e WhatsApp aos contribuintes.

Segundo Rodolfo Fiori, CEO da Gove, um dos grandes vilões da baixa arrecadação são os dados errados e incompletos das bases tributárias. A situação só se agrava quando os órgãos públicos não utilizam meios de comunicação digitais para lembrar o contribuinte sobre datas de vencimento ou dívidas pendentes.

“Muitas vezes o contribuinte fica em débito com o município não por falta de recursos, mas por esquecimento. Em serviços de telefonia, bancos e outros da iniciativa privada, normalmente ele é lembrado e incentivado a pagar suas contas. O setor público ainda está avançando”, explica Rodolfo.

Araguaína, no Tocantins, teve um crescimento médio de 79% na adimplência nos seus tributos utilizando a tecnologia oferecida pela govtech. A empresa já conta com mais de 30 municípios de todas as regiões do Brasil em seu portfólio, incluindo as capitais Salvador (BA) e Manaus (AM). 

Foi seguindo o propósito de modernizar as prefeituras que em 2019 foi selecionada para a lista “100 startups to watch” como uma das empresas com maior potencial de inovação e crescimento no Brasil. E em 2020, com investimento de R$ 8 milhões realizado pela Astella, a Gove se destacou no ecossistema com o maior aporte em uma govtech brasileira, até então.

Transformação digital nos processos de compras públicas

O Portal de Compras Públicas é um marketplace que aproxima a iniciativa privada de negócios públicos. Com ampla expertise em tecnologia e suporte, o portal é uma govtech que tem como objetivo transformar e democratizar as licitações em todo o país.

A empresa visa tornar os processos de compras públicas mais democráticos para os negócios brasileiros de todos os segmentos e portes, facilitando ao poder público a realização da melhor compra, segundo as boas práticas e os princípios da administração.

Com a plataforma, os gestores públicos têm acesso a uma base de milhares de fornecedores de todo o Brasil, o que aumenta a concorrência e, consequentemente, gera economia aos cofres públicos.

Para o CEO Leonardo Ladeira, o Brasil caminha para uma profissionalização do processo interno da compra pública e a nova Lei de Licitações contribuiu para gerar mais transparência, ampliando o conhecimento sobre o que acontece com o dinheiro da população.

“Nós buscamos atuar de forma conjunta para resolver problemas que parecem isolados na administração pública, mas que estão interligados. É possível que a gestão pública seja mais eficiente em suas operações no dia a dia, por isso criamos essa conexão entre o órgão público e a iniciativa privada para que as necessidades de ambos sejam adequadamente supridas”, explica Leonardo.

Através do Portal de Compras Públicas, a Prefeitura de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, obteve ganho de 60% dos valores que pretendia arrecadar em uma licitação, além de vender sete dos 15 itens licitados.

Desde a sua criação, em 2018, já foram realizadas mais de 1 milhão de compras por meio do portal com processos até 76% mais rápidos, gerando economia aos municípios de quase 30%. Presente em mais de 3 mil cidades, a tecnologia já ajudou a economizar mais de R$ 20 bilhões dos cofres públicos.

Participação cidadã nas tomadas de decisões

Outra govtech de destaque na América Latina é a Citibeats, que desenvolveu uma inteligência artificial (IA) que fornece sinais de antecipação social para informar políticas sociais. 

A IA da Citibeats fornece informação em tempo real sobre as necessidades, opiniões e preocupações dos cidadãos para ajudar as organizações – tanto privadas como públicas – a agirem de forma mais rápida e eficiente, melhorando o processo de tomada de decisão.

De acordo com o seu fundador, Ivan Caballero, a visão da Citibeats é criar uma sociedade mais justa e equitativa, criando uma ponte entre administrações públicas e cidadãos para favorecer o desenvolvimento das comunidades.

A ferramenta está presente em mais de 90 países, colaborando em diferentes projetos de saúde, educação, desenvolvimento social, gênero, migração, por exemplo. Além de funcionar em vários idiomas, a IA foi treinada para analisar com precisão expressões linguísticas e culturais em diferentes países e regiões.

Fundada em 2018 em Barcelona, a Citibeats recebeu no mesmo ano a primeira rodada de investimentos – de aproximadamente € 1,3 milhão – liderada pela Adara Ventures, com a participação da Caixa Capital Risc e do Banco Sabadell.

Em 2021 captaram a segunda rodada – mais € 2 milhões – de investidores internacionais, liderados pelo BID Lab: o laboratório de inovação do Banco Interamericano de Desenvolvimento, CAF, Estinvest e General Previsora. Seguido de um investimento de acompanhamento da Everis (NTT DATA) e da Fitalent.

“Podemos avançar em nossa missão e nos tornar referência como desenvolvedor de soluções de compreensão social. Não é uma tecnologia em si, mas uma ferramenta para dar voz a todos os cidadãos e permitir que os tomadores de decisão integrem essas vozes em seus processos de tomada de decisão e investimento”, afirma Ivan.logo-jota

Os artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade de ideias.