Cássio Casagrande

O Ministro do STF Gilmar Mendes foi fazer uma palestra em Washington, a convite da organização Brazil Caucus, um grupo que tem como finalidade fortalecer as relações entre o Brasil e os EUA.  Na sua intervenção, Gilmar declarou, em referência à CLT, que o Congresso substituiu uma legislação "ainda do período autoritário" e que por isso a Reforma Trabalhista seria uma "revolução", uma das medidas que "explicam a retomada do nosso crescimento".
Não vamos aqui sequer analisar o fato inexplicável de um Ministro do STF ir ao exterior para defender medidas propostas pelo executivo e aprovadas pelo legislativo (será que o presidente da Suprema Corte dos EUA, mesmo sendo o conservador John Roberts, daria uma palestra no exterior defendendo a administração Trump ou medidas por ele encaminhadas e aprovadas pelo Congresso? Medidas que, convertidas em lei, estão sendo questionadas perante a Suprema Corte?  Certamente que não, pois ele sofreria um processo de impeachment no dia seguinte).
Não vamos, tampouco, examinar a afirmação, desprovida de qualquer base factual, de que em menos de trinta dias de sua vigência, a reforma trabalhista estaria contribuindo para a retomada do crescimento econômico (nem mesmo o economista mais entusiasta da "nova CLT" poderia atribuir tamanhos efeitos concretos a uma lei que acabou de entrar em vigor e está permeada de insegurança jurídica).
E, também, sequer vamos adentrar ao fato óbvio de que um Ministro do STF não deve manifestar-se publicamente sobre uma lei que será objeto de julgamento na corte que integra, quanto à sua constitucionalidade (considerando-se que já há mais de dez ações impugnando os mais variados dispositivos da Lei 13.467/17).
Pretendemos apenas questionar se, de fato, a Reforma Trabalhista é uma "revolução democrática", em face da afirmação de que ela representa a superação do autoritarismo da legislação trabalhista.  Ninguém há de negar que a CLT tem um "vício de origem", por ter sido elaborada no Estado Novo, em 1943.
Mas lembremos que foi também na Era Vargas que surgiriam a Justiça Eleitoral (em 1932, durante o governo provisório, de exceção) e os Códigos Penal e de Processo Penal , de 1940/41.
E, apesar de seu "vício de origem", a Justiça Eleitoral, o Código Penal, o CPP e a CLT representaram, em suas áreas, um progresso inegável em relação às práticas "democráticas" da República Velha, em que as fraudes eleitorais dominavam, em que as garantias processuais penais não evitavam o degredo interno de inimigos do regime e o fechamento de jornais de oposição, e em que as demandas trabalhistas e greves eram vistas como "questão de polícia".
Ora, a Justiça Eleitoral, o Código Penal/CPP e a CLT estão aí até hoje porque, respondendo adequadamente a necessidades sociais, atravessaram diversos regimes e constituições e foram sendo "democratizados" ao longo da história brasileira.  A Constituição de 1988, inequivocamente democrática, absorveu e reconfigurou toda a espinha dorsal da CLT (basta ver a extensão dos arts. 7o. e 8o.).
Estudo do Professor Rodrigo Carelli, da UFRJ, demonstra que apenas 15% dos dispositivos originais de direito material da CLT continuam com a mesma redação de 1943, sendo que todos os demais foram alterados por leis e Constituições posteriores. Coisa parecida se passou com a dimensão garantista da Carta de 88, que deu novo sentido ao nosso processo penal, a despeito de permanecer vigente o CPP, com outro sentido.
Bem, e quanto ao "vício de origem", basta pensar o seguinte: os franceses são regidos até hoje pelo Código Civil conhecido também como "Code Napoléon", isto é, o mesmo código que foi adotado na ditadura militar de Napoleão Bonaparte, em 1804.
 E qualquer pessoa que conheça o sistema jurídico francês sabe que, apesar da sua origem autoritária, este é o grande monumento cultural e intelectual do direito daquele país; maior orgulho dos juristas da França, o Código que inspirou todos os códigos civis mundo afora, inclusive o brasileiro de 1916 e o atual.
Evidentemente, da mesma forma como acontece com a CLT, este código atravessou diversas constituições francesas - mais ou menos democráticas - e foi sendo adaptado a elas, isto é, foi se "democratizando" e se atualizando ao longo do tempo, exatamente como ocorreu com nossa CLT!
A história nos ensina que por não raras vezes uma lei feita em um período autoritário pode ser bem elaborada e socialmente adequada (como o Código Civil francês), assim como uma lei elaborada em período democrático pode, em muitas ocasiões, ser mal concebida e ter efeitos desastrosos (vide a Emenda Constitucional que instituiu a Lei Seca nos EUA, em 1919).
Se as leis que conceberam a Justiça Eleitoral, o Código Pena/CPP e a CLT fossem tão espúrias, danosas e dissociadas da realidade social, teriam elas atravessado vários regimes e Constituições, sobrevivendo por mais de setenta anos?
E basta pensar no que está ocorrendo com a "democrática" Lei da Reforma Trabalhista. O governo prometeu que ela iria "modernizar"as relações de trabalho e criar empregos, mas ela está gerando atos de truculência empresarial e demissões em todo o país, com empregados despedidos em massa, sem negociação com os sindicatos, sendo em seguida substituídos por "pessoas jurídicas", "autônomos" e "terceirizados".
Por exemplo, eu gostaria muito que o Ministro Gilmar Mendes explicasse aos norte-americanos os efeitos concretos e "modernizadores" da democrática reforma trabalhista, contando-lhes o que aconteceu na semana passada na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro.
A pretexto de se adaptar à "nova CLT", aquela instituição de ensino despediu 1.200 professores, antes do término do período letivo, sem prévio aviso, a maior parte deles com mais de vinte anos de serviços prestados e média de 50 anos de idade para cima, retirando alguns de sala de aula, impedindo-os de aplicar provas dez minutos antes do horário previsto para o seu início, constrangendo professores que estavam prestes a entrar em bancas de TCC: todos foram instados a se retirar dos campi imediatamente após o comunicado de demissão.
A Universidade não precisou, de acordo com as novas regras, oferecer um PDV ou negociar a demissão com o sindicato, como acontece em qualquer país civilizado.  O leitor pode imaginar o que se passaria caso estes fatos tivessem ocorrido nas universidades norte-americanas privadas de Harvard, Yale ou Princeton: haveria um grande escândalo nacional nos EUA e o reitor teria que renunciar ou seria derrubado - por insanidade.
Não gostaria de recorrer a esse lugar comum, mas as afirmações do Ministro Gilmar Mendes em Washington mostram como alguns ministros do STF estão vivendo em uma torre de marfim completamente dissociada da realidade social.

Gilmarmendes1708_003

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Declarações de Gilmar Mendes em Washington distorcem completamente a realidade

A "revolução" da reforma Trabalhista: truculência e demissões

Declarações de Gilmar Mendes em Washington distorcem completamente a realidade