Acordos de Leniência

Revisão de acordos de leniência: a imposição da realidade aos slogans

O que fazer quando o que foi previsto não corresponde à realidade? 

acordo de leniência
Crédito: Unsplash

Na Operação Lava Jato houve a celebração de diversos acordos de leniência e colaboração premiada. Neles, empresas e executivos envolvidos em atos de corrupção optavam por admitir sua participação e trazer elementos novos para o aparato sancionatório do Estado. O ganha-ganha por trás desses ajustes é simples: o particular volta à legalidade. Por sua vez, o Estado recebe elementos importantes para perseguir envolvidos em irregularidades. A lógica é criar estímulos para que os envolvidos em corrupção passem a ser colaboradores do Estado. Essa é uma ferramenta importante para combater crimes complexos.

Esses acordos trazem maior eficiência para o sistema de repressão de irregularidades estatal, que passa a contar com a possibilidade de negociar com os envolvidos, ao invés de buscar a imposição de sanções de modo unilateral. Ainda, cria-se nova – e profícua – forma de investigação desses delitos, cuja revelação, pela própria natureza da conduta e forma de atuação é complexa.

Aplicar sanções nesses casos é muito mais difícil do que parece. Primeiro, é preciso investigar condutas intricadas, difíceis de serem descobertas e reconstituídas detalhadamente. 

A estrutura desses acordos, em regra, implica admitir as irregularidades e se comprometer a cessá-las, assim como trazer elementos novos que interessam ao Estado na repressão de ilícitos e reparar os danos causados. A conveniência do acordo é avaliada pelas autoridades considerando as vantagens para o Estado.

Por conta da sua estrutura, diversos dos acordos contemplam, a título de reparação de danos, compromissos financeiros vultosos, a serem pagos em um largo período. Os acordos da Lava Jato usualmente previam a necessidade de se pagar montantes vultosos a título de reparação de danos e perda dos lucros lícitos obtidos em decorrência de tais contratações. 

O tema dos acordos de leniência voltou à tona recentemente, em especial com a entrada em vigor do Decreto 11.129/22, que estipulou novas condições de admissibilidade para o requerimento de alteração dos termos do acordo ou substituição das condições impostas para seu cumprimento.

Conforme noticiaram os jornais, cogita-se de uma revisão ampla dos acordos celebrados, inclusive trocando as obrigações de pagamento pela execução de obras ou simples prorrogação dos prazos de adimplemento. Isso é necessário em função da conjuntura das empresas lenientes e dos executivos envolvidos, que alegam que não têm condições de cumprir com os compromissos econômicos assumidos, inclusive pela ocorrência posterior de fatores imprevisíveis (pandemia, crise internacional, a derrocada econômica desses setores, entre outros).

Como tudo que diz respeito à Lava Jato, o tema foi prontamente objeto de manifestações apaixonadas. Em especial, desde logo, foram reverberadas opiniões de que rever os acordos seria ser tolerante com a corrupção e outros argumentos de idêntica fragilidade jurídica. Eis um mantra que muitas vezes mais atrapalha do que ajuda.

O pior jeito de abordar essas questões é a partir de dogmas em que a resposta é dada antes de se entender o problema. Isto é bom para jogar para a torcida mas é péssimo para, de fato, resolver as coisas. A realidade persiste firme, independente de nossas opiniões.

Uma resposta isenta acerca do tema depende de se reconhecer uma obviedade. A de que esses acordos são estipulados a partir de previsões sobre o futuro. Eles encampam as expectativas das partes acerca do mercado em que as empresas atuam e sua condição econômica naquele instante. O problema das expectativas é que elas podem ser frustradas. Esse é um problema central da teoria dos contratos (públicos e privados). O que fazer quando o que foi previsto não corresponde à realidade? 

A resposta a essa questão varia em função do grau de impacto do contrato sobre interesses de terceiros que não os contratantes. Em termos simples, é muito mais fácil pensar no cumprimento de um contrato a ferro e fogo quando os interesses se resumem ao das partes contratantes. Contudo, contratos cujos efeitos impactam interesses de terceiros, exigem soluções menos duras. A flexibilidade é o preço que se paga para preservar interesses além daqueles das partes contratantes. Tanto assim que os contratos celebrados pela Administração se caracterizam pela sua capacidade de mudança. Isto é assim, exatamente porque estes vínculos servem para atender os interesses da sociedade, devendo ser modulados para tanto. 

Posta essa premissa pode-se discutir o tema proposto. Aqui é importante ter claro que as indenizações e obrigações de que se cogita nos acordos de leniência e colaborações premiadas são de interesse da sociedade e não meros ajustes entre as partes. Caso elas se tornem impagáveis, quem será prejudicado não é apenas diretamente o Estado, mas sim a população a sociedade. Quebrar as empresas lenientes pode satisfazer a um certo espírito revanchista, mas é péssimo para a sociedade. Como diz a sabedoria popular, é melhor receber mal do que não receber.

Por incrível que pareça, a incapacidade de pagamento é um dado fático. Se não houver dinheiro, não haverá pagamento. E quem perderá com isso é a sociedade. E aí entra a repactuação como técnica necessária para superar essas dificuldades

Nessas discussões, o contrafactual é importante. Perguntar o que pode acontecer caso não se revejam os acordos é fundamental. O interesse público é melhor tutelado mantendo-se as coisas como estão? Ou revisar os acordos é ainda melhor do que exigir o impossível e perder qualquer utilidade do vínculo? 

Daí que revisitar os acordos é perfeitamente possível, se não natural quando houver alteração da conjuntura em que eles foram pactuados. Esses instrumentos são meios de atender o interesse público. E para que assim persistam, eles podem (quando não devem) ser alterados. 

Outro ponto: leniências e colaborações são compromissos de se seguir adiante. Quem os assina, reconhece que errou e negocia com as autoridades competentes as compensações necessárias para seguir adiante. O espírito de revanchismo é um elemento a ser tirado da mesa aqui. 

Em suma, tratar do tema implica ser pragmático. O apego a slogans fica melhor em palanques do que para resolver problemas complexos. Daí que rever os acordos pode ser um remédio amargo, mas ele seguramente é melhor que inviabilizar seu cumprimento.logo-jota

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