Luis Felipe Salomão

Sobre recomeços, o gênio de Gabriel García Marquez cunhou uma expressão fantástica, “os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga repetidas vezes a dar à luz a si mesmos”.
Por outro lado, Nietzsche apresenta em sua filosofia dois conceitos que se referem aos deuses gregos Apolo (Deus da luz e da ponderação) e Dionísio (Deus dos excessos e da alegria). A partir dessas duas figuras de forças contrárias, ele traça uma dicotomia que resulta em uma ideia de equilíbrio, de complementariedade.
Em uma ponte entre estes dois pensamentos, tenho que o Judiciário brasileiro neste ano de 2022 se reinventou, se fez forte e independente, demonstrou equilíbrio e coragem, fez ecoar a voz da cidadania e garantiu a democracia, em complementariedade às forças vivas e instituições da sociedade brasileira.
A Constituição de 1988 orientou o Poder Judiciário a atravessar o agitado mar deste ano eleitoral, em um dos pleitos mais concorridos e intensos da história republicana, garantindo organização, lisura e transparência ao processo que assegurou a renovação dos membros do Poder Executivo e Legislativo dos Estados e da União. Sob as presidências seguras e corajosas da ministra <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/rosa-weber">Rosa Weber</a> (no STF e CNJ), do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/alexandre-de-moraes">Alexandre de Moraes</a> (TSE), e da ministra <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/maria-thereza-de-assis-moura">Maria Thereza de Assis Moura</a> (STJ e CJF), o Poder Judiciário saiu mais forte e admirado pela sociedade a que serve.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o controle da pandemia da Covid-19 – sempre com a cautela necessária em períodos de transmissão mais acentuada –, permitiu o retorno mais seguro às atividades presenciais de julgamento no Tribunal da Cidadania e o convívio com os pares, advogados e membros do Ministério Público.
O ocaso deste ciclo no atual momento permite-nos olhar para o retrovisor a fim de avançar com segurança para os próximos desafios relacionados às metas e projetos já lançados e em andamento.
Nesse passo, venho procurando destacar a necessidade do debate sobre a responsabilidade social no atual cenário do nosso país, pois a degradação social é um desafio à sociedade e ao Estado, cabendo uma parcela expressiva também ao Poder Judiciário.
É momento de ampliar o foco. A norma orientadora internacional ISO-26000:2010 – vetor da responsabilidade social – enumera como princípios gerais a accountability, bem como o respeito ao comportamento ético, aos interesses das partes, ao Estado de Direito, às normas internacionais de comportamento e aos direitos humanos. 
Ao se contemplar alguns julgados do STJ em 2022, é possível enxergar que tais eixos principiológicos, de alguma forma, nortearam o entendimento adotado para solução de casos particulares, servindo para pavimentar o caminho rumo à responsabilidade social.
Ao apreciar o AgInt nos EDcl no REsp 1.788.290/MS, interposto em ação coletiva de consumo objetivando compelir fabricante de alimentos a inserir em etiquetas, rótulos, bulas e materiais de divulgação de seus produtos alimentícios a informação-advertência de que o glúten é prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca, o STJ assentou que o juízo de verificação da pertinência temática há de ser responsavelmente flexível e amplo, em contemplação ao princípio constitucional do acesso à justiça, mormente a considerar-se a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Vê-se nessa conclusão a vertente do princípio da accountability, referente à necessidade de a organização privada prestar informações relevantes para aqueles que são atingidos por suas atividades – os consumidores.
A Corte cidadã, no julgamento do REsp 1.937.989/SP, reputou antiética e desleal a conduta de empresa que se utilizou da marca registrada de concorrente como palavra-chave em link patrocinado para obter posição privilegiada em resultados de buscas, visando direcionar os usuários daqueles produtos e serviços para o seu próprio sítio eletrônico. A prática desleal, além de causar confusão quanto aos produtos oferecidos ou a atividade exercida pelos concorrentes, conduz a processo de diluição da marca no mercado e prejuízo à função publicitária, pela redução da visibilidade. O estímulo à livre iniciativa, dentro ou fora da rede mundial de computadores, deve conhecer limites, sendo inconcebível reconhecer lícita conduta que cause confusão ou associação proposital à marca de terceiro atuante no mesmo nicho de mercado.
A necessidade de respeito pelos interesses das partes – que não se resume apenas aos do proprietário – foi enfrentada no REsp 1.997.050/SP, em que o locador, invocando as normas de restrição sanitária pela Covid-19, proibiu o funcionamento de imóvel comercial locado com acesso autônomo e independente. A conduta do locador de impedir a entrada do público ao restaurante, quando a medida era possível e estava autorizada pelos órgãos governamentais, configurou ato ilícito, tendo em vista que alijou por completo o locatário de exercer os poderes inerentes ao uso e gozo da coisa. Eventual descumprimento das normas sanitárias pela locatária poderia render ensejo à aplicação de penalidades nos termos do contrato, mas nunca à proibição do acesso ao imóvel.
O respeito ao Estado de Direito desautoriza o exercício arbitrário do poder especialmente por parte dos agentes públicos. Esse princípio esteve em evidência no exame do REsp 1.842.613/SP, no qual se concluiu que o membro do Ministério Público, quando divulga na mídia o oferecimento de denúncia criminal com excesso abusivo, extrapola no exercício do direito de informar e tal conduta resulta em dano moral para o acusado. É que, a pretexto de divulgar o oferecimento de denúncia criminal em entrevista coletiva, utilizou-se de termos e adjetivações ofensivos e marcados pelo desapego à técnica, assim como insinuou a culpabilidade do denunciado por crimes antes que se realizasse o julgamento imparcial, referindo-se ainda a fatos e tipo penal que não constam da denúncia a que se dá publicidade. O oferecimento de denúncia deve orientar-se pelo princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se à sua formação a certeza, a densidade e a precisão, quanto à narração dos fatos, e a coerência, quanto à sua conclusão, além do mister de ser juridicamente fundamentada.
Em juízo de retratação, após o julgamento pela Excelsa Corte do RE n. 636.331/RJ, a Segunda Seção, nos EREsp 1.289.629/SP, reconheceu que a Convenção de Montreal, por força da regra de sobredireito inserta no artigo 178 da Constituição da República – que preconiza a prevalência dos acordos internacionais subscritos pelo Brasil sobre transporte internacional –, afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
A importância de respeito aos direitos humanos também foi marcante em dois casos envolvendo demandas ajuizadas contra a República da Alemanha pelo ataque de submarino nazista à embarcação civil Changri-lá, na costa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial (RO 76/RJ e RO 109/RJ). Em juízo de retratação, depois do julgamento do Tema 944 pelo STF, assentou-se que atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição, mesmo quando praticados em tempos de guerra, sendo imprescritível, inclusive para os sucessores, a pretensão de reparação de grave ofensa à dignidade da pessoa humana causada em virtude de conduta – omissiva ou comissiva – praticada a mando ou no interesse de detentores de poder estatal.
Poucos processos apreciados neste ano no STJ tiveram tanta repercussão e engajamento da sociedade civil como os EREsps 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, relativos ao rol da ANS – se exemplificativo ou taxativo os procedimentos e eventos em saúde suplementar. Esse rol foi considerado, em regra, taxativo, admitindo-se a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e NatJus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS. 
A recente aprovação da Lei n. 14.454, de 21/9/2022, dispondo que o rol de procedimentos constitui referência básica, não retira a importância do precedente; apenas reforça como as instituições da República – Judiciário e Legislativo – devem estar atentas para regular de modo satisfatório as relações e os anseios sociais.
Logo na primeira sessão da Corte Especial do STJ em 2023 deve entrar em julgamento o REsp 1.795.982, no qual se discute se a Taxa Selic deve servir como índice de correção dos valores de dívidas civis, feito com grande impacto e que foi afetado pela Quarta Turma.
Além desses, outros <a href="https://www.stj.jus.br/internet_docs/gab018/Julgados_Relevantes_GMLFS_2022.pdf">precedentes</a> importantes foram julgados neste ano. O breve balanço sinaliza para um período com muitos e novos desafios, mas com resultados bem satisfatórios que permitem olhar para 2023 com confiança e otimismo.

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JOTA

É tempo de celebrar o ano que passou e de reforçar a necessidade do debate sobre a responsabilidade social

Retrospectiva e recomeços – um pouco de reflexão nesta hora

É tempo de celebrar o ano que passou e de reforçar a necessidade do debate sobre a responsabilidade social.