Jardes Costa de Oliveira

Há muito se discute acerca da saturação do contencioso tributário no país, ocasionada pela exponencial disputa entre contribuintes e Fisco – seja no âmbito administrativo ou judicial, de modo que começou-se a pensar com mais afinco nos últimos anos em alternativas para solução de conflitos tributários como ferramentas autocompositivas (e por que não heterocompositivas?) para estimular o diálogo entre essas partes.
Uma delas, certamente, seria o instituto da transação tributária – foco dessa narrativa, cuja previsão encontra-se estampada no art. 171 do CTN, ao permitir que, por meio de lei e posteriores regulamentações, sejam realizadas concessões mútuas entre as partes envolvidas – Fisco e contribuinte, para que seja possível o encerramento do litígio instaurado e a consequente extinção da obrigação tributária.
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Apesar dessa disposição autorizativa, foi necessária uma intensa ampliação dos debates acadêmicos sobre a temática, para que só então resultasse na edição da <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.988-de-14-de-abril-de-2020-252343978">Lei nº 13.988/20</a> (conversão da MP n.º 899/2019) – em âmbito federal, bem como de tantas outras por diversos entes federados. A motivação era não só recuperar os montantes devedores dos contribuintes até então considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação, principalmente pela crise econômica vivenciada com a pandemia de Covid-19, como também pela visão próspera que o instituto aspirava.
Para além do caráter arrecadatório – o que não é nenhum pecado, desde que feito dentro da legalidade e à luz dos demais princípios constitucionais –, a regulamentação da transação tributária no ordenamento brasileiro proporcionou o início de uma nova fase dentro da relação entre a Administração Tributária e os contribuintes: o caráter combativo e beligerante refletido em anos de judicialização está, aos poucos, dando espaço ao cooperativismo entre esses personagens.
E é claro, embora ainda nos deparemos com equívocos acerca da diferenciação entre o instituto da transação e dos parcelamentos ordinários e especiais (Refis e outros), nitidamente a proposta aqui (transação) é outra: a de se olhar, sob uma perspectiva mais harmoniosa, para as situações particulares de cada contribuinte, bem como o nível de recuperabilidade dos créditos (não) tributários, sem representar, na mesma medida, a concessão desvairada de benesses aproveitadas pelos contribuintes e incorporadas à governança dos devedores contumazes.
Isto porque, na transação, a Procuradoria costuma levar em conta critérios bastante objetivos, tais como o período em que a dívida está em discussão, a liquidez e aptidão da garantia, as chances de êxito nas esferas administrativas e judiciais, os custos adjacentes ali envolvidos, bem como o grau de saúde financeira do contribuinte para adequação a um dos métodos de pagamento, em busca de uma justiça fiscal mais eficiente.
Diante dessa breve contextualização, trataremos – nesse artigo retrospectivo – um pouco sobre o avanço das transações tributárias em âmbito nacional nesses quase dois anos de positivação na seara federal, analisando alguns dados sobre as transações já realizadas, como também algumas problemáticas que merecem nossa particular atenção e os desafios que se aproximam.
Entre aberturas e reaberturas, há hoje, ao todo, oito opções de transações tributárias em âmbito federal à disposição do público, entre individuais e por adesão do contribuinte, a citar: (i) transação da dívida ativa do FGTS; (ii) transação de débitos do Funrural; (iii) transação extraordinária; (iv) transação excepcional (incluindo-se a aplicável a débitos rurais e fundiários, que deve ser considerada como mais uma modalidade); (v) transação de pequeno valor; (vi) transação para retomada do setor de eventos, além da possibilidade de repactuação das transações já celebradas.
Esses modelos, ao seu turno, têm sido bem recepcionados pelos contribuintes, a exemplo do levantamento realizado pela PGFN<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, ao constatar, por exemplo, que a transação no contencioso tributário referente ao pagamento de contribuições previdenciárias sobre a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) regularizou R$ 820 milhões em dívidas.
A esse respeito, ressalta-se que o Edital nº 11/2021,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que versou sobre a regularização de débitos de contribuições previdenciárias sobre PLR, trouxe o primeiro de uma série de temas que vêm sendo estudados pela PGFN para se tornarem objeto de futuras negociações com contribuintes<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, desde que se encaixem nos critérios previstos na Lei nº 13.988/2020 e na Portaria ME nº 247/2020 para sua eleição.
No contexto geral, um outro levantamento, dessa vez mais genérico, realizado pela PGFN em outubro deste ano<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, aponta que foram celebrados cerca de 650 mil acordos, envolvendo quase 1,8 milhões de inscrições em Dívida Ativa da União (DAU), que perfazem o expressivo montante de R$ 165 bilhões, sendo R$ 4 bilhões decorrentes de transações com pessoas jurídicas em recuperação judicial, o que reforça ainda mais a receptividade do instituto pelo contribuinte inadimplente.
Em âmbito estadual, destaca-se o estado de São Paulo – centralizador da economia do país –, onde houve a regulamentação pela Procuradoria Estadual (PGE-SP) da transação tributária para a cobrança de débitos inscritos em dívida ativa, por meio da Resolução PGE nº 27/2020 e da Portaria SubG-CTF nº 20/20 <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, após instituição por meio da Lei estadual nº 17.293/2020.
Ressaltam-se ainda os estados do Pará, por meio do recém-editado Decreto nº 1.795/21, que regulamentou as disposições da Lei Estadual nº 9.260/2021, ao estabelecer critérios para aplicação da transação naquele estado, e de Mato Grosso, onde tramita o Projeto de Lei nº 1.188/2019, que caminha a passos otimistas para ser aprovado após consultas realizadas.
Já no recorte municipal, o contexto da pandemia auxiliou bastante o impulso das transações nesses entes, cujos destaques vão para São Paulo (SP), com a Lei nº 17.324/2020; Diorama (GO), com a edição da Lei nº 1.022/21; além de Niterói (RJ), por meio da Lei nº 3.605/2021; e a recentíssima Lei nº 7.000/21 com origem no Rio de Janeiro (RJ). Temos conhecimento, ainda, da tramitação de um Projeto de Lei em Joinville (SC), apesar de não ter sido possível identificar o número de controle para consulta.
Nesse particular, embora tenhamos localizado em Rio Verde (GO) a Lei nº 7.073/20, que em sua ementa trata de transação e parcelamento de débitos decorrentes de tributos, multas tributárias e não tributárias administrativas (...) naquela municipalidade – cujo programa é denominado Recupera–, a leitura da citada norma indica tratar-se de um parcelamento comum, com características rígidas que lhe são próprias, a exemplo da tabela de parcelas com descontos pré-fixados, sem estimular a abertura ao diálogo e análise subjetiva pela Procuradoria para cada contribuinte-alvo, distanciando-se, em nossa singela análise, das proposições basilares da transação tributária.
<blockquote class="jota-article__eye">Todavia, numa breve comparação, percebe-se que os municípios têm avançado muito mais do que os estados na regulamentação desse instituto como forma para solução dos litígios tributários.</blockquote>
Apesar desses importantes avanços, é certo que alguns pontos que envolvem a transação tributária naturalmente eclodiram e nos cabe, de forma sucinta, trazê-los à discussão para o aprimoramento de um instituto tão promissor quanto se revela.
No primeiro ponto, temos uma debilidade na transparência e publicidade das transações, sobretudo a nível federal, que pouco elucidam as obrigações, exigências ou concessões que foram acordadas entre as partes, além dos percentuais de descontos ou valores objetos da transação – ressalvadas as informações protegidas sob o sigilo fiscal, cujo tema foi melhor abordado neste artigo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, o que nos alerta para uma dificultosa definição de critérios-base para sua parametrização.
O segundo ponto, tratado em outro artigo<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, diz respeito à nomeação e atribuição de responsabilidade a uma coletividade de pessoas físicas e jurídicas – denominado nos acordos como “Grupo”, ao questionar se a mera conexão entre os agentes seja hábil o suficiente para direcionar a responsabilidade do pagamento pelos débitos transacionados na hipótese de inadimplemento, além dos importantes impactos que isso pode vir a acarretar ao não se observar, com rigor, as proteções estampadas no artigo 124 do CTN.
O terceiro ponto, também alvo de artigo decorrente dos estudos desenvolvidos no âmbito do Comitê Temático de Transação e NJP do IBATT<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, alerta-nos para a previsão, em um dos acordos, da necessidade de sua averbação no competente cartório de títulos e documentos, e se esta seria realmente uma obrigatoriedade da transação ou mero ajuste entre as partes envolvidas, já que, especificamente para a Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registro Públicos), não há exigência nesse sentido.
Já para o quarto e último ponto, voltado especificamente para a transação individual, temos duas situações bastante interessantes sobre os requisitos expostos nos editais de transação e que já vêm sendo levados à discussão no Judiciário quanto à sua validade e razoabilidade:
<ul>
<li>a primeira: liminar proferida pela 9ª Vara Cível Federal de São Paulo<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, que suspendeu os efeitos do artigo 4º, §1º, da Portaria PGFN n. 9.917/2020, para garantir que os impetrantes tenham o direito líquido e certo de propor transação individual por débitos inscritos em dívida ativa da União cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 15 milhões, afastando a trava estabelecida na Portaria em questão e que deixa de fora as pequenas e médias empresas;</li>
<li>na segunda, também decorrente de liminar, desta vez proferida pela 14ª Vara Cível Federal de São Paulo<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, determinou-se as providências necessárias para a inscrição em Dívida Ativa dos débitos indicados pela empresa impetrante, possibilitando a transação prevista na Lei nº 13.988/2020 e regulamentada pelas Portarias PGFN nºs 21.562/2020 e 14.402/2020, caso preenchidos os demais requisitos, afastando-se a necessidade de inscrição em Dívida Ativa até o dia limite para adesão, no caso em que já passados os 90 dias para inscrição em DAU previstos no artigo 2º da Portaria ME nº 447/2018, cujo ato formal da Procuradoria resultaria em óbice à adesão.</li>
</ul>
Particularmente para esses casos discutidos judicialmente, sem adentrar no mérito das ações, cumpre-nos salientar que essas discussões são próprias de uma ferramenta recém-lançada e pouco explorada pelos participantes, cuja adequação obviamente ocorrerá com o tempo. Ela não pode ser comparada com os avanços já conquistados por outros institutos mais antigos que já contam com grande desenvolvimento jurisprudencial para tanto, tampouco com a eiva de possível insucesso do instituto que permitiu uma nova visão sobre a relação entre Fisco e contribuintes.
Nesse sentido, citamos a recente Recomendação do CNJ nº 120/2021, que determina aos(às) magistrados(as) com atuação nas demandas que envolvem Direito Tributário que priorizem, sempre que possível, a solução consensual da controvérsia, estimulando a negociação, a conciliação, a mediação ou a transação tributária, extensível à seara extrajudicial, observados os princípios da Administração Pública e as condições, os critérios e os limites estabelecidos nas leis e demais atos normativos das unidades da Federação, servindo como mais um especial incentivo para a adesão dessa ferramenta pelos possíveis interessados.
Apesar desses debates, houve, nesse lapso temporal, uma outra conquista importante que merece destaque, desta vez para as empresas em recuperação judicial, decorrente das modificações da Lei nº 14.112/20 ora regulamentada pela Portaria PGFN nº 2.382/21, ao prever condições mais benéficas a essa parcela sensibilizada dos contribuintes. Entre elas estão o aumento no prazo para pagamento e descontos, além da suspensão do andamento das execuções fiscais com a mera apresentação da proposta de transação pela recuperanda, evitando a penhora dos bens nesse período suspenso, cf. Lei de Recuperação de Empresas e Falência.
Ao passo em que os avanços devem ser bastante festejados pela comunidade jurídica, na mesma medida, a discussão e reflexão de alguns pontos (não esgotados) aqui trazidos devem ser vistos como impulsionadores – e não inimigos – desse meio autocompositivo de solução de disputas tributárias tão revolucionário para o novo rumo do contencioso tributário, como forma de aprimorar esse recente instituto que comemorará dois anos de existência.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/transacao-no-contencioso-tributario-regularizou-r-820-milhoes">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/transacao-no-contencioso-tributario-regularizou-r-820-milhoes</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/arquivos/2021/edital-11-2021-transacao-no-contencioso-plr.pdf">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/arquivos/2021/edital-11-2021-transacao-no-contencioso-plr.pdf</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>  Vide matérias do JOTA: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/receita-federal-transacao-tributaria-20052021?utm_source=JOTA+Full+List&amp;utm_campaign=803a224a5f-EMAIL_CAMPAIGN_2019_02_15_01_28_COPY_01&amp;utm_medium=email&amp;utm_term=0_5e71fd639b-803a224a5f-381770800">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/receita-federal-transacao-tributaria-20052021?utm_source=JOTA+Full+List&amp;utm_campaign=803a224a5f-EMAIL_CAMPAIGN_2019_02_15_01_28_COPY_01&amp;utm_medium=email&amp;utm_term=0_5e71fd639b-803a224a5f-381770800</a> e <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/casos-subsumiveis-transacao-no-contencioso-tributario-15102020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/pauta-fiscal/casos-subsumiveis-transacao-no-contencioso-tributario-15102020</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide <a href="https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/transacao-regulariza-r-165-bilhoes-no-ambito-da-divida-ativa">https://www.gov.br/pgfn/pt-br/assuntos/noticias/2021/transacao-regulariza-r-165-bilhoes-no-ambito-da-divida-ativa</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Vide <a href="https://www.dividaativa.pge.sp.gov.br/transacao/pages/home/home.jsf?param=928">https://www.dividaativa.pge.sp.gov.br/transacao/pages/home/home.jsf?param=928</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Vide artigo do JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-importancia-da-publicidade-e-da-transparencia-na-transacao-individual-28072021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-importancia-da-publicidade-e-da-transparencia-na-transacao-individual-28072021</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a>  Vide artigo do JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/corresponsabilidade-transacoes-tributarias-breves-reflexoes-21052021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/corresponsabilidade-transacoes-tributarias-breves-reflexoes-21052021</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Vide artigo do JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/averbacao-acordos-transacao-individual-contribuintes-pgfn-30072021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/averbacao-acordos-transacao-individual-contribuintes-pgfn-30072021</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Vide íntegra da liminar em: <a href="https://www.conjur.com.br/dl/juiza-suspende-norma-pgfn-limitou.pdf">https://www.conjur.com.br/dl/juiza-suspende-norma-pgfn-limitou.pdf</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a>  Vide íntegra da liminar em: <a href="https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/9/629B60333C5CDA_dividaativauniao.pdf">https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/9/629B60333C5CDA_dividaativauniao.pdf</a>

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JOTA

Breve panorama das conquistas e desafios nos quase dois anos desse instituto

Uma retrospectiva dos avanços da transação tributária no Brasil

Breve panorama das conquistas e desafios nos quase dois anos da transação tributária no país