João Colussi
Sócio do escritório Mattos Filho

A decisão do Governo Federal pelo retorno do voto de qualidade a favor da União no âmbito do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), além de estimular insegurança jurídica, afronta preceitos basilares da Constituição e se posiciona contrariamente ao estabelecido com firmeza pelo Legislativo na Lei 13.988/20.
É inquestionável a falta de urgência da medida, requisito fundamental para edição de MP sobre o tema (Art. 62 da CF/88): na justificativa apresentada na exposição de motivos da MP 1.160/23, consta expressamente a necessidade de “reversão do entendimento tribunal em grandes temas tributários” ocasionados pelo voto de desempate em favor do contribuinte.
As alterações no funcionamento do Carf serem anunciadas dentro do plano de recuperação fiscal apresentado pelo novo governo evidencia, por si só, a intenção da medida: o incremento da arrecadação.
Por óbvio, tal objetivo não se presta a autorizar alteração normativa processual, nos termos expressamente vedados no texto constitucional, por instrumento de efeito precário e provisório.
Não por outra razão que diversas entidades, juristas e advogados já se manifestaram publicamente sobre esse ponto e teceram duras críticas à medida adotada pelo Poder Executivo.
Além disso, é possível verificar a existência de inconstitucionalidade material: em havendo o elemento dúvida acerca da legitimidade do ato de lançamento, a exigência do tributo não pode ser mantida.
O contribuinte é hipossuficiente em relação ao Fisco, nesta condição, deve ter a dúvida a seu favor - tal dado é posto com clareza no art. 112 do Código Tributário Nacional (CTN) quanto às discussões sobre penalidades fiscais.
A exigência de tributo com base em prevalência do interesse público diante do empate no julgamento no Carf já foi rejeitada por, ao menos, cinco Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento das ADIs 6399, 6403 e 6415, sendo eles os Ministros Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Não há supremacia ao interesse público na retomada do voto de qualidade fazendário, haja vista que cumpre ao Congresso, democraticamente eleito pela população, defender os interesses da sociedade brasileira por meio de legislação – que não se confundem com os interesses arrecadatórios da Fazenda Nacional.
Neste contexto, houve legítima opção da coletividade, quando da edição da Lei 13.988/20, para extinguir o voto de qualidade fazendário no Carf e corrigir a distorção existente mediante a inversão do ônus do convencimento da maioria para a Fazenda Nacional.
Há anos o voto de qualidade no Carf vinha sendo apontado como uma deformidade no sistema de autotutela do Fisco, que sobrecarrega o Judiciário com discussões que deveriam ser extintas administrativamente e com justos questionamentos de sua validade face ao devido processo legal (Art. 5º, LIV da CF/88) e da imparcialidade e isonomia processual.
A sensação que fica é que a essencial função exercida pelo quase centenário tribunal administrativo no controle da legalidade dos lançamentos tributários se torna mera formalidade na cobrança do crédito tributário, podendo ser distorcida em prol da arrecadação.
É necessário ressaltar o império da Constituição perante o ordenamento no que tange ao voto de qualidade, de modo que a consequência natural seja a aplicação do in dubio pro contribuinte. Tais normas devem ser observadas por todos, não obstante a sua dureza.
Por fim, antes de se discutir eventuais mecanismos de aumento de arrecadação, é urgente que o governo concentre seus esforços na gestão e qualidade dos gastos públicos.