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Retidos no exterior: restrições de viagens internacionais adotadas e o direito de retorno

É questionável se o Estado pode se valer de uma derrogação para suspender o direito de retorno

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Desde março de 2020, mais de 130 países adotaram restrições de viagens internacionais e medidas de fechamento de fronteiras com o objetivo de conter o avanço da pandemia da Covid-19. No Brasil, o governo federal prorrogou em 22 de maio de 2020 a restrição da entrada de estrangeiros no país por 30 dias adicionais, por meio da Portaria nº 255/2020.

A adoção de tais medidas de forma generalizada fez com que milhares de pessoas não conseguissem retornar a seus países de nacionalidade ou de residência, principalmente em razão do cancelamento de voos e do aumento significativo dos preços das passagens aéreas para os voos remanescentes. Abordaremos neste texto a conformidade de tais medidas com o direito de retorno de pessoas a seus países, com especial enfoque no caso brasileiro.

O direito de retorno é previsto em diversos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, sendo que o escopo das obrigações dos Estados-partes varia de acordo com as previsões de cada um desses instrumentos. A Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 22, §5º) prevê que ninguém será privado do direito de entrar em seu país de nacionalidade.

Já o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) possui uma linguagem mais ampla, estabelecendo em seu art. 12, §4º, que [n]inguém poderá ser privado arbitrariamente do direito de entrar em seu próprio país”.

A ideia de seu próprio país” tem sido interpretada pelo Comitê de Direitos Humanos, órgão responsável por monitorar o cumprimento do Pacto pelos Estados-partes, como abrangendo não apenas o país de nacionalidade, mas também aquele com o qual a pessoa possui fortes vínculos.[1]

Para a aferição desse vínculo especial, o Comitê considera fatores como o tempo de residência no país, a língua falada pelo indivíduo, onde este possui conexões pessoais e familiares, suas intenções de permanecer no país e a ausência de laços similares em outro país.[2]

Além dessas disposições, o direito de retornar a e permanecer em um país também tem sido reconhecido a estrangeiros com laços menos intensos, por meio dos direitos à vida familiar e privada e à proteção da família (artigos 11 e 17 da Convenção Americana e artigos 17 e 23 do PIDCP).[3]

A diferença é que, enquanto o art. 12, §4º do PIDCP exige laços robustos com o próprio país, levando em consideração uma série de fatores, o direito à vida familiar e privada se relaciona apenas à proteção das conexões pessoais que um indivíduo possui no país – isto é, apenas um dos fatores relevantes para a aplicação do art. 12, §4º.

Portanto, um estrangeiro que não se enquadra no âmbito do art. 12, §4º do PIDCP pode possuir o direito de retornar a e permanecer em determinado país com fundamento na proteção da vida familiar e privada.[4]

A adoção de medidas como restrições de viagens e fechamento de fronteiras interfere diretamente com o exercício de tais direitos. Mesmo em casos em que o Estado não proibiu formalmente o retorno de certos indivíduos, mas estes permaneceram impossibilitados de retornar em razão da ausência de meios de transporte, a responsabilidade do Estado pode ser questionada.

Tal lógica decorre da noção de obrigações positivas dos Estados em relação a direitos humanos. Se o Estado adota medidas que expõem indivíduos ao risco de interferências em seus direitos, de forma direta e previsível, e não toma medidas preventivas adequadas para impedir que esse risco se materialize, ele é responsável pelo dano daí resultante, ainda que esse dano tenha sido praticado por atores privados.[5]

A redução da disponibilidade de voos era consequência previsível e direta das restrições de viagem, de modo que a omissão dos Estados em prevenir esses riscos ao direito de retorno pode engajar sua responsabilidade.

Além disso, Estados possuem a obrigação de adotar medidas para garantir o direito de retorno de forma segura, o que pode incluir, a depender do caso, a realização de operações de repatriação.

Vale mencionar que os Estados em cujo território se encontram os indivíduos não podem negar arbitrariamente pedidos de repatriação, uma vez que também possuem a obrigação de não impedir que pessoas retornem ao seu país.[6]

Não obstante, essas interferências no direito de retorno podem ser consideradas legais do ponto de vista dos direitos humanos caso o Estado consiga enquadrá-las como limitações ou derrogações.

Limitações são restrições ao modo de exercício de direitos humanos, ao passo em que derrogações são medidas adotadas em um cenário de emergência pública que permitem a suspensão total do exercício de certos direitos, enquanto durar a emergência. Ambas possuem requisitos rígidos para serem invocadas.

O direito de retorno de nacionais sob o art. 22, §5º a Convenção Americana não admite limitações. Já o art. 12, §4º do PIDCP e o direito à vida familiar e privada sob ambos os tratados podem ser limitados, contanto que não o sejam de forma arbitrária. A legalidade de uma limitação depende do preenchimento de três requisitos: (1) previsão da limitação em lei; (2) necessidade da limitação para atingir um objetivo legítimo; e (3) proporcionalidade.

No que tange ao primeiro requisito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende ser necessária a promulgação de lei formal, aprovada pelo Poder Legislativo. No caso do Brasil, a limitação à entrada de estrangeiros foi prevista no art. 2, VI, da Lei Federal nº 13.979/2020, autorizando sua adoção pelas autoridades competentes conforme recomendação técnica da Anvisa, enquanto perdurar a crise da Covid-19. Uma vez que a Portaria nº 255/2020 foi adotada com fundamento nesse dispositivo, compreende-se que o requisito da legalidade se encontra preenchido.

Quanto ao segundo requisito, vê-se que as restrições de viagens de fato buscam atender a um objetivo legítimo conter a proliferação da Covid-19. Contudo, para serem necessárias, as medidas devem estar embasadas em evidências científicas.[7] Não é claro se esse seria o caso, uma vez que vários estudos científicos têm sido produzidos questionando a eficiência de restrições de viagens no enfrentamento de doenças contagiosas (por exemplo, aqueles publicados nas revistas Science e Harvard Public Health Review).

Por fim, a respeito da proporcionalidade das medidas, o preenchimento desse requisito dependerá da análise do caso concreto.

Tratando especificamente da Portaria nº 225/2020, as restrições ali contidas a princípio parecem ser proporcionais, por excluírem de seu âmbito de aplicação uma série de pessoas que possuem conexões pessoais ou familiares no país, incluindo, dentre outros, brasileiros, pessoas que residam em caráter definitivo no Brasil, passageiros em trânsito internacional, e estrangeiro que seja cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro.

No entanto, essas medidas podem vir a ser desproporcionais em razão de seus efeitos sobre a viabilidade de pessoas no exterior retornarem ao Brasil, uma vez que, como discutido, afetam adversamente a disponibilidade de voos.

Algumas pessoas relataram terem enfrentado severas dificuldades enquanto retidas no exterior, em especial para obter acomodação, comida e medicamentos de forma adequada às suas necessidades. Além disso, muitos permaneceram no exterior por longos períodos sem saber quando conseguiriam regressar, o que também pode gerar considerável sofrimento psicológico.

Nesses casos, existem fundamentos relevantes para questionar a proporcionalidade da limitação, sobretudo uma vez que alternativas menos restritivas, como a imposição de quarentena obrigatória aos entrantes, poderiam ter sido adotadas.

Sobre a possibilidade de derrogação, observa-se que tal medida pode ser adotada tanto com relação ao direito ao retorno de nacionais quanto de estrangeiros sob a Convenção Americana (art. 27) e o PIDCP (art. 4).

Para tanto, deve existir uma ameaça à independência e segurança do país e as medidas restritivas de direitos devem ser estritamente necessárias para enfrentá-la. A avaliação desses requisitos também exige a análise da proporcionalidade das medidas derrogatórias.[8]

Ainda, o Estado que busca se valer da derrogação deve informar aos demais Estados-partes por meio de notificação ao secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) no caso da Convenção Americana e ao secretário-geral da ONU no caso do PIDCP.

A pandemia da Covid-19 pode ser qualificada como uma ameaça à segurança dos Estados, tendo sido reconhecida como emergência pública em diversos países, incluindo o Brasil.

Todavia, a necessidade e a proporcionalidade das restrições de viagens adotadas podem ser questionadas pelos mesmos motivos já expostos com relação às limitações: é duvidoso se as evidências científicas disponíveis corroboram a eficiência desse tipo de medidas para o enfrentamento da pandemia e os efeitos dessas restrições geraram sofrimento material e psicológico considerável para algumas pessoas.

Ainda, especificamente no caso do Brasil, é questionável se o Estado pode se valer de uma derrogação para suspender o direito de retorno, uma vez que, até a presente data, não comunicou a OEA ou a ONU a respeito.

Embora os efeitos da falta de notificação sobre a validade da derrogação ainda não sejam claros no âmbito do PIDCP,[9] a Corte Interamericana já decidiu, no caso Baena Ricardo e outros v. Panamá, que um Estado que não havia notificado sua intenção de derrogar da Convenção Americana não podia invocar o instituto como defesa contra alegações de violações de direitos humanos.

Percebe-se, assim, que existem fundamentos relevantes para questionar a compatibilidade das medidas de restrição de viagens e fechamento de fronteiras adotadas para o enfrentamento da Covid-19 com o direito de retorno, especialmente no que tange à necessidade e à proporcionalidade dessas medidas.

Em casos de pessoas que permaneceram retidas no exterior por longos períodos como consequência dessas restrições ou enfrentaram condições adversas no exterior, esses indivíduos podem ter argumentos fortes para reclamar reparação dos Estados por violações de seus direitos.


[1] Essa posição encontra suporte nos trabalhos preparatórios do PIDCP, conforme analisa LAWLAND, Kathleen. “The Right to Return of Palestinians in International Law”. International Journal of Refugee Law, v. 8, n. 4, p. 532-568, 1996. p. 544.

[2] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Nystrom v. Australia. U.N. Doc. CCPR/C/102/D/1557/2007. 2001. para. 7.4; COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Budlakoti v. Canada. U.N. Doc. CCPR/C/122/D/2264/2013. 2018. para. 9.2-9.3.

[3] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Mansour Leghaei and others v. Australia. U.N. Doc. CCPR/C/113/D/1937/2010. 2015. para. 10.3-10.5.

[4] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Madafferi v. Australia. U.N. Doc. CCPR/C/81/D/1011/2001. 2004. para. 9.8.

[5] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Valle Jaramilho y otros v. Colombia. São José, 27 de novembro de 2008. para. 76; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Masacre de Pueblo Bello v. Colombia. São José, 31 de janeiro de 2006. para. 126.

[6] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. General Comment No. 15. U.N. Doc. HRI/GEN/1/Rev.1. 1986. para. 8.

[7] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Declaración de la Corte Interamericana de Derechos Humanos 1/20 9 de abril de 2020. 2020. p. 1; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO Guidance on human rights and involuntary detention for xdr-tb control. 2007. Disponível em: <https://www.who.int/tb/features_archive/involuntary_treatment/en/>. Acesso em: 27 de maio de 2020.

[8] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. General Comment No. 29. U.N. Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Add.11. 2001. para. 4. Ver também: QUIROGA, Cecilia Medina. La Convención Americana: teoría y jurisprudência. Santiago: Universidad de Chile, 2005. p. 52.

[9] O Comitê de Direitos Humanos parece ter indicado que a ausência de notificação não comprometeria a validade da derrogação no âmbito do PIDCP: COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Jorge Landinelli Silva et al. v. Uruguay. U.N. Doc. CCPR/C/OP/1. 1984. para. 8.3.