MP 966/20

Responsabilização do agente público: grande novidade ou mais do mesmo?

Preocupação não deve estar focada apenas no atual momento, por conta da conturbação política em que vivemos

lei de improbidade
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A recém-editada Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, que trata da responsabilização de agentes públicos por ação e omissão devido a atos relacionados com a pandemia da Covid-19, vem suscitando grande alarde. Antes de adentrar na questão relativa à pertinência ou não de tais regras, é preciso destacar que, apesar de todo o estardalhaço, a grande maioria de suas disposições já integrava o nosso ordenamento jurídico. Vejamos.

MP Nº 966/2020 LINDB DEC. 9.830/19
Art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. Art. 12.  O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.
I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e

II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

SEM CORRESPONDÊNCIA SEM CORRESPONDÊNCIA
§ 1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:

I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou

II – se houver conluio entre os agentes.

SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12. […] § 6º  A responsabilização pela opinião técnica não se estende de forma automática ao decisor que a adotou como fundamento de decidir e somente se configurará se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica ou se houver conluio entre os agentes.
§ 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público. SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12. […] § 3º  O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.
Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12. […] § 1º  Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:

 

I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. Art. 8º  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos, as dificuldades reais do agente público e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; Art. 22. (acima transcrito) Art. 12. […] § 4º  A complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público será considerada em eventual responsabilização do agente público.
III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; Art. 22. (acima transcrito) Art. 8º (acima transcrito)
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e Art. 22. […] § 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. Art. 8º […] § 1º  Na decisão sobre a regularidade de conduta ou a validade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos, serão consideradas as circunstâncias práticas que impuseram, limitaram ou condicionaram a ação do agente público.
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para o enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas. Art. 22. (acima transcrito) Art. 8º (acima transcrito)
SEM CORRESPONDÊNCIA SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12 […] § 2º  Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.
SEM CORRESPONDÊNCIA SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12 […] § 5º  O montante do dano ao erário, ainda que expressivo, não poderá, por si só, ser elemento para caracterizar o erro grosseiro ou o dolo.
SEM CORRESPONDÊNCIA SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12 […] § 7º  No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.
SEM CORRESPONDÊNCIA SEM CORRESPONDÊNCIA Art. 12 […] § 8º  O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.

 

Do exame das referidas normas é possível afirmar que a LINDB e o respectivo decreto regulamentador já estabeleciam diversas regras voltadas a conferir uma proteção maior ao agente público, contra responsabilizações infundadas. Muitas dessas normas foram consolidadas na MP nº 966/20, conferindo o status de lei àquelas que ainda não o possuíam.

A MP evidencia a aplicação dessas regras, antes esparsas na LINDB e em seu decreto regulamentador, em relação aos atos e omissões associados ao enfrentamento da pandemia, bem como em relação aos atos voltados ao combate dos seus efeitos econômicos e sociais. Esse segundo aspecto confere maior margem aos agentes públicos para atuar no campo econômico e social, com menor receio de que sejam responsabilizados futuramente. Talvez nesse ponto resida a verdadeira intenção da MP: evidenciar que as normas gerais protetivas dos agentes públicos são extensíveis àqueles responsáveis pelas políticas econômicas e sociais em tempos de pandemia, até mesmo em caso de omissões.

Outra (suposta) novidade trazida pela MP consiste na explicitação do alcance da exigência da culpa grave (erro grosseiro) para as esferas cível e administrativa. A rigor, do próprio enunciado do art. 28 da LINDB essa conclusão já poderia ser extraída. Tanto assim que o decreto regulamentador já previa nos arts. 12, § 5º, 11, § 2º, e 14, a necessidade de erro grosseiro para fins de responsabilização por dano ao erário. Todavia, o TCU não vinha acolhendo esse entendimento, restringindo a exigência do erro grosseiro às hipóteses de sanção e afastando a necessidade de culpa qualificada para fins de imputação de débito.

Em suma, para o TCU, o ressarcimento ao erário está condicionado apenas à existência de dolo ou culpa, sem nenhuma gradação, por força do art. 37, § 6º, da Constituição, que não prevê a exigência de erro grosseiro nesses casos (Acórdão 2768/2019, Plenário, Relator Min. Benjamin Zymler, j. 20.11.2019). Por se tratar de argumento de índole constitucional, dificilmente a jurisprudência do TCU será modificada pela MP nº 966/20.

Deve-se atentar, ainda, para o fato de que as regras consubstanciadas na LINDB, no Decreto nº 9.830/19 e na MP nº 966/20, são tão abrangentes que se corre o risco de inviabilizar a responsabilização em casos nos quais o agente público atuou indevidamente e com má-fé, especialmente se uma interpretação rigorosa dessas normas em relação aos órgãos de controle não judiciais, que possuem menos poderes investigativos, for consolidada.

Especificamente em relação aos Tribunais de Contas, as referidas disposições devem ser interpretadas com cautela. Diferentemente da esfera judicial – seja em sede de ação penal, seja em sede de ação cível de improbidade –, onde o ônus da prova é de quem sustenta a acusação, no âmbito dos Tribunais de Contas a demonstração da regularidade dos atos administrativos praticados é ônus do próprio gestor público (arts. 34, VII, “d”, 35, II, e 71, parágrafo único, CR; art. 93, Decreto-lei nº 200/67; art. 113, Lei nº 8.666/93; e art. 87, Lei nº 13.303/16). É que aquele que exerce o múnus público tem o dever indissociável de prestar contas acerca de seus atos.

A aplicação da regra específica relativa à comprovação do elemento subjetivo, nesse contexto, será certamente um desafio por parte dos órgãos de controle externo. Parcela da doutrina já chega a defender a inversão e a ampliação do ônus argumentativo de fundamentação pelo órgão de controle, “que passará a ter de demonstrar, por intermédio de provas concretas, que o ato praticado pelo agente público restou maculado pela intenção de malferir a probidade administrativa”.[1]

Caso essa exigência seja levada ao extremo, serão inviabilizadas as ações de fiscalização pelo controle externo, que não possui os mesmos instrumentos de investigação ao alcance do Poder Judiciário, como a possibilidade de produção de prova testemunhal, pericial, busca e apreensão, e a esfera penal, de interceptação telefônica, prisão temporária, delação premiada etc. A ainda tormentosa questão da comprovação do elemento subjetivo nas ações de improbidade ganhará maiores proporções no âmbito dos processos de contas, que são pautados por uma premissa diversa: a do dever de prestar contas – princípio constitucional sensível.

A rigor, a MP nº 966 consubstancia o ápice do pensamento que aponta para a emergência de um “Direito Administrativo do Medo” – fenômeno referido também como “Apagão das Canetas” –, segundo a qual os administradores públicos estariam acuados pelos excessos dos órgãos de controle, deixando de inovar e de decidir para se protegerem. Isso geraria uma “crise da ineficiência pelo controle”.[2]

O referido movimento deu ensejo às significativas reformas observadas na LINDB, pela Lei nº 13.655/18, regulamentada pelo Decreto nº 9.830/19. Várias de suas disposições postulavam meios ainda mais fortes de “blindagem” dos gestores públicos, que, a muito custo, foram vetadas à época.[3]

Em linhas gerais, o “problema” da Administração Pública morosa, ineficiente e dispendiosa seria o excesso de controle. Obviamente não concordamos com essa premissa. Assim como não há dados empíricos que demonstrem que mais controle gere melhor qualidade no serviço público – argumento por vezes invocado pela referida linha de pensamento –, igualmente não há dados concretos a sugerir a melhoria da atividade administrativa pela restrição da fiscalização sobre ela exercida. Nesse cenário de incertezas, deve-se ficar com o lugar-comum: quanto mais controle, tendencialmente menores serão os desvios e mais bem resguardado estará o interesse público.

Por outro lado, não se pode cair na armadilha de negar todas as razões invocadas pelos partidários do “Direito Administrativo do Medo” e sair numa defesa acrítica de um novo “ativismo”, a ser capitaneado pelo Ministério Público ou pelos Tribunais de Contas.[4] Os dois extremos são perversos. É preciso reconhecer que abusos existem. O Administrador Público não tem vida fácil num contexto onde o ordenamento jurídico beira a insanidade pelo complexo emaranhado de normas que o integram – abrangendo inúmeros princípios e valores colidentes –, e em que há vários órgãos de controle – internos e externos, federais e estaduais – atuando simultaneamente e, não raras vezes, com entendimentos conflitantes. Mas depositar-se a (ir)responsabilidade pelo atual estado de coisas da Administração Pública brasileira apenas na conta dos alegados excessos dos órgãos de controle revela uma percepção hiperdimensionada dos problemas enfrentados.

É preciso ter cautela com alterações que venham a limitar ainda mais o exercício da atividade de controle da Administração Pública. A preocupação não deve estar focada apenas no atual momento – e numa MP específica –, por conta da conturbação política em que vivemos. A atenção deve recair sobre esse movimento “anticontrole” como um todo. Medidas nesse tom devem ser vistas com muita atenção, pois poderão enfraquecer e até inviabilizar a fiscalização mínima necessária a impedir que os parcos recursos públicos sejam utilizados de forma a alcançar resultados efetivos em prol da sociedade, num momento crítico em que as instituições públicas, em especial aquelas integrantes da estrutura da saúde pública, são submetidas a uma demanda poucas vezes observada na história.

Após o afrouxamento das regras de dispensa de licitação, contratação e, especificamente, de pesquisa de preços, operado pela Lei nº 13.979/20, também voltada ao enfrentamento da pandemia, já pululam na imprensa e nas primeiras atuações dos órgãos de controle externo fortes indícios de abusos na condução da coisa pública. Oxalá tais suspeitas não se confirmem e essa flexibilização não nos traga prejuízos irreparáveis logo adiante. Os órgãos de controle precisam estar atentos e dispor dos meios necessários para agir.

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[1]    NETO, Floriano de Azevedo Marques; FREITAS, Rafael Véras de. Comentários à Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para Inovação Pública). Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 137, destaque nosso.

[2]    GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Direito Administrativo do Medo. Revista de Direito do Estado, vol. 1, n. 71, 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle. Acesso em: 14 mai. 2020; NETO, Floriano de Azevedo Marques; PALMA, Juliana Bonacorsi. Os sete impasses da Administração Pública no Brasil. In: PEREZ, Marcos Augusto; SOUZA, Rodrigo Pagani (Coord.). Controle da Administração Pública. Fórum: Belo Horizonte, 2016. p. 21-38.

[3]    Essa tendência vem sendo observada com certa frequência no Direito Administrativo, como na tentativa de afastar de forma amplíssima a possibilidade de responsabilização de agentes públicos, evitada com o veto ao § 1º do art. 28 da LINDB; de instituir uma ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja sentença faria coisa julgada com eficácia erga omnes, evitada com o veto ao art. 25 da LINDB; de permitir a propositura de demanda a fim de obter “autorização” judicial para a celebração de compromisso, excluindo, assim, a responsabilidade pessoal do agente, evitada com o veto ao § 2º do art. 26 da LINDB; e, agora, com o § 3º do art. 7º-I do PL nº 791/20. As diversas presunções inseridas no art. 4º-B da Lei nº 13.979/20, por meio da MP nº 926/20, vão nesse mesmo sentido.

[4]    Aqui o termo “ativismo” foi utilizado no sentido de exacerbação indevida das atribuições constitucionais de determinado órgão, gerando fundados questionamentos quanto à possível violação do princípio da separação dos poderes, a pretexto de fomentar a concretização de algum princípio ou valor que julgue relevante.